Operação Condor: Itália defende ‘condenação exemplar’ a ex-militar uruguaio
Durante audiência em Roma, advogado do Estado italiano afirma que Jorge Troccoli tem 'responsabilidade irredutível' por crimes nas ditaduras latinas
“Quem entrega conscientemente uma vítima a um sistema criminoso compartilha da responsabilidade”, afirmou Luca Ventrella, advogado do Estado italiano, durante audiência em Roma contra Jorge Néstor Troccoli, ex-oficial da Marinha uruguaia acusado de sequestro, tortura e assassinato durante a Operação Condor.
Ventrella, que tem experiência em processos contra criminosos nazistas, não poupou críticas ao comportamento de Troccoli, que novamente não compareceu ao tribunal nesta quinta-feira (26/06). Para o advogado, essa ausência física é também simbólica e representa a recusa em confrontar a própria responsabilidade. “A responsabilidade moral e penal do réu é irredutível. Nenhuma das justificativas oferecidas, ‘seguia ordens’ e ‘não sabia’, resiste diante da vastidão e sistematicidade dos crimes cometidos”, afirmou.
Opera Mundi é o único veículo da imprensa brasileira que, desde 2015, acompanha presencialmente os julgamentos na Itália dos crimes cometidos no Cone Sul no âmbito da Operação Condor.
Segundo ele, o ex-oficial jamais demonstrou arrependimento ou empatia e “tentou apagar ou minimizar seu papel” diante do fatos apresentado. “O processo termina com uma afirmação clara da culpa”, disse.
Ventrella também destacou a importância do julgamento como reparação histórica: “é uma oportunidade para reconhecer as vítimas, restabelecer a verdade e afirmar a justiça. Não se trata apenas de uma sentença, mas de impedir que o horror nunca mais se repita”.
Troccoli cumpre atualmente prisão perpétua na penitenciária de Carinola, na Campânia, após ter sido condenado em 2021 por crimes da Operação Condor. Neste novo julgamento, responde pela morte do casal Rafaela Filippazzi e José Agustín Potenza e pelo desaparecimento de Elena Quinteros.
Filippazzi e Potenza foram sequestrados em Montevidéu, entregues ao FUSNA e posteriormente transferidos para Assunção, onde foram assassinados. Quinteros foi capturada em 1976 e levada a um centro de tortura clandestino. Tentou fugir buscando asilo na embaixada da Venezuela, mas foi recapturada e desapareceu desde então.
Entregues á repressão
Representando Silvia Potenza, filha de José Agustín Potenza, o advogado Arturo Salerni descreveu o sofrimento prolongado da família Potenza, que viveu por décadas sem notícias do paradeiro de José.
“A tragédia foi dupla: primeiro o sequestro e o assassinato, depois o desaparecimento e a ausência de respostas, que devastaram filhos e neta.” O destino de Potenza só foi confirmado anos depois quando identificaram seus restos mortais em Assunção.

Salerni detalhou a atuação de Troccoli como chefe do Serviço de Inteligência da Marinha uruguaia. Segundo ele, o réu ordenava diretamente sequestros, selecionava alvos e colaborava com as polícias repressoras de outros países do Cone Sul, como Argentina e Paraguai. “No caso de Potenza e sua companheira, sequestrados em Montevidéu em 27 de maio de 1977, Troccoli ordenou a captura e os entregou à repressão paraguaia, onde foram assassinados”.
O advogado destacou que mesmo quem não executa diretamente uma morte pode ser penalmente responsabilizado quando essa morte é consequência previsível de um sequestro. “A jurisprudência é clara: o agente que inicia a cadeia de um crime responde por suas consequências. Por isso pedimos a condenação total de Jorge Troccoli, penal e civil, e o reconhecimento da responsabilidade pelos danos causados à família”.
Já Andrea Speranzoni, que representa Beatriz García Filippazzi, filha da ítalo-argentina Rafaela Filippazzi, e que também atua no processo relacionado ao desaparecimento de Elena Quinteros em nome da Frente Ampla do Uruguai, usou sua fala para ressaltar o caráter sistemático e coordenado da Operação Condor.
“Dizia-se ‘nunca mais’ em 1945. Depois, com o fim das ditaduras latino-americanas. Mas hoje assistimos a novas violações massivas dos direitos humanos nos noticiários, tratados com indiferença. Este julgamento tem valor histórico não porque estamos distantes dos fatos, mas porque reafirma a função da justiça diante da barbárie”, disse.
Speranzoni pediu que o tribunal avalie as provas à luz dos princípios constitucionais italianos e do direito internacional. “Estamos diante de um processo por crimes internacionais. A responsabilidade de Troccoli está bem documentada nos dois casos: o desaparecimento de Elena Quinteros e a morte de Rafaela Filippazzi. É dever desta Corte reconhecer a gravidade dos fatos e aplicar uma sentença que afirme o valor inviolável da vida e da dignidade humana”.
Também participaram da audiência as advogadas Alicia Mejía Fritsch, representando os familiares de Elena Quinteros, e Silvia Calderoni, em nome do Estado argentino. Ambas reforçaram que o julgamento não é apenas um ajuste de contas com o passado, mas uma afirmação do presente: de que crimes de Estado, mesmo tardios, não devem permanecer impunes.
A próxima audiência está marcada para 11 de julho, quando será a vez da defesa de Troccoli apresentar seus argumentos. A sentença deverá ser anunciada em setembro.