“As histórias em quadrinhos continuam sendo uma forma autêntica de arte e literatura, capazes de tratar tão bem de assuntos importantes quanto do humor”, escreveu Will Eisner, autor americano de quadrinhos nascido em 1917 e falecido em 2005. O papel preponderante da imagem e das redes sociais na Primavera Árabe colocou em evidência a capacidade revolucionária do desenho – e os quadrinhos representaram muito mais do que um simples meio de divertimento, foram testemunhas do seu tempo.
Na Tunísia, a Revolução do Jasmim deu um novo fôlego à produção de quadrinhos. Por meio da internet e das redes sociais, os autores e desenhistas se reagrupam, se encontram, trocam figurinhas. Hoje, há até um programa de rádio dedicado aos talentos emergentes dos quadrinhos, como Yassine Ellil, que bancou a edição de seu Good bye Zaba, e Nadia Khiari, criadora de Willis from Tunis.
Nadia Khiari sempre criou histórias em quadrinhos. Foi necessário um discurso do presidente Ben Ali, em 13 de janeiro de 2011, para que ela decidisse publicar na rede seus primeiros desenhos: as aventuras e comentários de um gato tunisiano bom de papo e cheio de irreverência. Willis from Tunis nasceu no Facebook em plena Revolução do Jasmim, que derrubou o ditador. Muito mais do que uma charge de jornal, Willis é uma criação gráfi ca única e original. Reagindo aos eventos e sendo inovada quase a toda hora, foi e ainda é hoje uma testemunha direta da atualidade tunisiana.
Traços simples
Com humor e ironia, um traço simples e uma liberdade total de expressão, Nadia Khiari mostrou o quanto o desenho e a caricatura são meios de resistência. Posteriormente publicados na coletânea Chroniques de la révolution [Crônicas da revolução], os desenhos de Willis from Tunis são desde já uma obra memorável. O volume reúne os rascunhos publicados entre 13 de janeiro e 1º de março de 2011. Hoje, Willis from Tunis continua vivo na internet.
Como a autora contou na entrevista que nos concedeu, ela publicou anonimamenteno início, produzindo diversos desenhos por dia. Foi somente após a publicação do livro – e a queda de Ben Ali – que ela revelou sua identidade. Nadia Khiari continua a alimentar a sua página no Facebook, para resistir sempre, permanecer vigilante enquanto o país ainda vive momentos confusos.
Khiari contou ao Mediapart como surgiu o Willis: “Willis from Tunis nasceu na noite de 13 de janeiro, durante o último discurso de Ben Ali. Ele dava sua última cartada e nos prometia a queda de preços para os alimentos básicos, a suspensão da censura, assim como a liberdade de expressão. Eu o peguei pela palavra e comecei a fazer os desenhos. Naquele momento, as pessoas próximas a mim pediram que eu criasse um perfi l no Facebook: de fato, estando todos enclausurados durante o toque de recolher, era necessário que nos comunicássemos e trocássemos nossas impressões.”
Durante os primeiros dias, cerca de vinte amigos e conhecidos haviam acessado suas publicações. Porém, ao final de uma semana, e com a difusão dos desenhos na rede, Nadia Khiari recebeu 900 pedidos de amizade – efoi um efeito de bola de neve. “No início, eu não pensava em publicar os desenhos todos os dias, mas as dezenas de e-mails de incentivo (os tunisianos, todas as noites, trancados em casa, grudavam no Facebook, Twitter etc.) me impulsionavam a produzir cada vez mais”, disse.
O sucesso na rede a levou a editar uma coletânea, paga de seu próprio bolso. Como ela lembra, o momento era bastante incerto (o lançamento foi em março), e ninguém sabia o que aconteceria em seguida. “Queria aproveitar a brecha na censura (eu não precisava, como antes, de uma autorização de publicação emitida pelo ministro do Interior) para publicar meu livro. No dia da primeira sessão de autógrafos, revelei minha identidade e encontrei todas as pessoas que conhecia apenas no mundo virtual.”
Atualmente, sua página no Fecebook já conta com 9.600 seguidores. E a artista já prepara um segundo volume, mas – conta ela – só sairá na reabertura política. “Estou esperando as eleições. Também planejo fazer uma exposição coletiva neste verão com o tema das eleições, cuja mensagem em comum será ‘Vote’.”
Embora existisse uma verdadeira tradição de quadrinhos de língua árabe destinados aos jovens desde os anos 40 e 50, a guerra árabe-israelense de 1967 teve como consequência o descrédito dos quadrinhos aos olhos do público, por causa do embargo dos governos sobre a mídia. Até os anos 90, fortemente marcados pelo nacionalismo e o espírito guerreiro, os quadrinhos não pareciam mais do que um prolongamento da propaganda do Estado.
Proposta humanista
Atualmente, os quadrinhos kuaitianos, libaneses e egípcios passam por um novo impulso, com uma vontade real de ultrapassar as fronteiras. Além disso, até então destinados (e também limitados) a leitores jovens, eles esperam crescer e falar a um público mais amplo. Com destinos diversos. No Egito, Magdi El-Shafee foi censurado, acusado de perturbar a ordem pública e de atacar os bons modos com a publicação de Métro, primeiro romance gráfico árabe para adultos e vencedor do prêmio da Unesco para quadrinhos africanos de 2008. Métro conta a história de um jovem especialista em informática que decide assaltar um banco para pagar uma dívida contraída junto a funcionários corruptos. O discurso livre e os desenhos realistas irritaram muito as autoridades egípcias, gerando interdições e perseguições judiciárias. Todos os exemplares do livro foram apreendidos e a venda, interrompida. Hoje, Magdi El-Shaffe é editado na Itália, onde continua sua atividade como autor.
Elogiado pelo próprio Barack Obama, que destacou a proposta humanista e pacifi sta do projeto, The 99, publicado pela Teshkeel Comics, é o exemplo perfeito de uma certa renovação nos quadrinhos árabes. A história de The 99 tem fonte no Corão (os 99 nomes de Alá, cada um correspondente a um atributo em especial: força, sabedoria, coragem, justiça…). Ela tem como início a invasão de Bagdá pelos mongóis em 1258, durante a qual os livros da biblioteca foram jogados nas águas do Tigre. Em The99, os guardiões sábios da biblioteca imergem 99 pedras preciosas norio para que elas fi quemimpregnadas com a sabedoria dos livros desaparecidos. Oitocentos anos depois, 99 pessoas vindas de 99 países diferentestornam-se super-heróis de repente pelo poder dessas pedras.
Além do assunto principal da história – a luta entre dois grupos em meio aos eleitos –, a série pretende ser uma mensagem de união e de cooperação no mundo islâmico: ela não se declara religiosa, mas “humanista e universal”, mesmo estando enraizada na religião mulçumana. Se considerados apenas os membros da sua equipe de criação (os desenhistas e autores americanos que trabalharam para a Marvel e a DC Comics, como Fabian Nicieza, Stuart Moore, June Brigman, Dan Panosian, John McCrea), The 99 não é propriamente um quadrinho árabe. Mas sua origem gem kuaitiana e sua difusão pan-arábica formam um exemplo muito representativo da vontade de superar modelos antigos, e de se apropriar novamente de um gênero que serviu durante muito tempo à causa militar, foi acessório da política do Estado e ferramenta de propaganda de guerra. A tal ponto que a série será adaptada como desenhoanimado; um cross-over com a Liga da Justiça (Batman, Super-Homem…) deve mesmo aparecer. Assim, The 99 se tornou o primeiro desenho árabe exportado para o país dos quadrinhos.
Barreira do idioma
Os quadrinhos originários do Magreb tiveram um desenvolvimento limitado no mundo árabe por causa da barreira do idioma. No entanto, o norte da África teve seus pioneiros e suas fi guras emblemáticas, e a Argélia viu um forte desenvolvimento em meados dos anos 60. Como explica Leila Slamini, do site Jeune Politique, pode-se citar de M’quidech, quadrinho argelino criado em 1969 por Georges Abranche Texeira (conhecido como Kapitia) e Lamine Merbah, autor do bastante politizado Poulet au pied, ao desenhista tunisiano Habib Bouhaoual. Nesses três casos, o francês foi imposto, o que se explica pelo contexto linguístico: a língua falada é chamada “coloquial”, em oposição à escrita (o árabe literário), mais rígida e menos expressiva. Além disso, os assuntos tratados de maneira satírica e caricatural adequam- se melhor à língua dasruas, para alcançar mais pessoas. Esse impulso foi, contudo, quebrado ao longo dos anos 90, em especial na Argélia, onde as condenações públicas dos islamistas visavam aos artistas e intelectuais.
Atualmente, parece que os quadrinhos estão ganhando certo espaço na sociedade, com os esforços conjuntos e as tentativas (às vezes efêmeras) dos apaixonados e dosautores, que criaram exposições e festivais (a exposição de Tazarka, na Tunísia, o Festival Internacional dos Quadrinhos, na Argélia…). Concursos destinados a jovens talentos dessa arte são organizados e a participação cresce de um ano para o outro (mesmo que o número de 11 mil visitantes possa parecer curioso), demonstrando um aumento do interesse do público pelo gênero.
Porém, sobretudo, com uma divulgação quase instantânea e a desmaterialização que permite a libertação das restrições de custo e do controle do Estado, a internet tem um papel importante. Assim, as iniciativas coletivas ganharam vida no Marrocos (como o coletivo Bédo em Casablanca, que pretendia ser um fanzine de divertimento 100% marroquino, praticante de um humor absurdo e subversivo), e algumas publicações com forte infl uência dos mangás japoneses começam a encontrar certo sucesso.
Tradução Bárbara Menezes
Texto publicado originalmente no site Mediapart
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