A casa é como um grande caixote de madeira, com duas partes: uma é o quarto – três camas pequenas, televisor num canto, páginas de mulheres nuas nas paredes, espiando deslocadas; a outra é a sala-copa-cozinha – uma mesa, fogão e mais nada. São nove horas da noite, num bairro operário modesto, entremeado de cortiços e favelas miseráveis. A cidade é São Bernardo do Campo, acredite ou não o general Figueiredo, que vive chamando a classe operária do ABC de uma elite de privilegiados.
No cubículo mal iluminado, quatro operários falam de suas condições de vida, o papel de Lula e as vantagens do sindicato. O sergipano, baixinho e forte, cerca de 20 anos, cabelos curtos e enrolados, é um dos que estiveram no ato de ocupação do sindicato, quando alguns milhares de operários puseram oito viaturas policiais e o interventor para correr, na sexta-feira, 23 de março, um dia após o governo ter cassado a diretoria dos Metalúrgicos de São Bernardo. Ele – como uns vinte por cento da categoria – ganha 13,26 cruzeiros por hora, 3.320 por mês, antes do dissídio de maio. “Tomei umas borrachadas, mas aprendi”, relembrava animado. “A gente pegava as bombas da polícia no ar e enfiava de volta nos filhos da gota.” Está eufórico com o sindicato: “Os quarenta cruzeiros que a gente paga por mês não é nada. Umas pingas que a gente deixa de tomar, e pronto. O que se obtém em troca é muito mais: remédio com desconto, corte de cabelo mais barato, um baile de cento e vinte por cinquenta cruzeiros”, diz sem pensar muito.
Cai uma chuva fininha. No corredor de terra batida que leva à latrina que serve a vários “cômodos”, um operário gargareja ao lado de uma torneira nua, lavando a boca coberta de espuma de creme dental. O vento frio penetra no quarto por muitos buracos. O sergipano conclui seus pensamentos:“A gente chama greve, mas o que é, é a união de todos nós. Mesmo o Lula estando fora, o que ele fala nós fazemos. E se ele não fala nada, a gente faz por conta da gente.”
O seu sentimento é comum por todo esse vasto mundo de duzentos mil metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, municípios onde se concentra a maior parte da classe operária que trabalha na grande indústria automobilística de São Paulo. É um sentimento que não varia muito se a casa é outra, a de um operário especializado que ganha dezoito mil por mês e mora em casa de três cômodos pequenos, como o próprio Lula. “Lulas” – operários corajosos, dispostos à greve por seus direitos, insatisfeitos com o governo, com o modelo econômico e com a marginalização de sua classe, sem saber como resolver esses problemas – são dezenas de milhares. E essa é a força desse famoso sindicato que agora completa 20 anos e que “assombrou o Brasil”, como diz um velho operário.
“O governo era menos carrasco, mas as patas dos cavalos eram as mesmas.”
“Lula fez coisas que admiraram o mundo, não apenas no Brasil.” O velho operário que fala é Antônio Raimundo de Oliveira, 61 anos, nascido no Rio Grande do Norte e que, nos agitados idos de 1935, era sindicalista em Grossos, fazendo greve para ver se os donos da salina pagavam trezentos – e não duzentos – réis pelo alqueire cortado de sal. Naquelemesmo ano, como ferroviário na linha Baixa Verde-Angico, soube quando uma insurreição liderada pelo Partido Comunista tomou Natal e a governou por quatro dias, até que o seu inexperiente governo revolucionário dirigido por um sargento, um estudante, um sapateiro e dois funcionários, foi sufocado em sangue. O elogio que faz a Lula vale muito: hoje morador de um casebre de madeira no bairro de Ferrazópolis, em São Bernardo, Antônio Raimundo é considerado o símbolo dos metalúrgicos da região. Foi ele que, com mais seis companheiros, numa reunião secreta em fins de 1958, reuniu gente para lançar a ideia da Associação dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, origem do atual sindicato. Na época, nascia a grande indústria automobilística na região e os abusos contra a classe proliferavam.
São inúmeros os depoimentos sobre a dureza da vida fabril naqueles anos. “O regime de trabalho era absurdo”, diz Antônio Raimundo. “Se trabalhava das seis da manhã às dez, onze horas da noite. Isso não é Brasil, eu pensei. E o gostosão da subsede ainda dizia que a gente não podia ser contra o Mauro porque ele estava dando uma profissão para quem vinha do Nordeste sem nada.” “Mauro” era o dono da Mercantil Suíça, firma de capital nacional que fabricava bicicletas e peças para a indústria automobilística. Assim como Lula perdeu o dedo menor da mão esquerda numa prensa, aos 18 anos, Antônio Raimundo tem o dedo mínimo da mão esquerda atrofiado por um panarício, de um espinho enfiado durante a limpeza de um carnaubal, quando tinha 26 anos. É um velho rijo, alegre, que olha as pessoas nos olhos e raciocina rapidamente sobre as coisas. Não foi, no entanto, a figura de maior influência nos primeiros anos de vida do sindicato e da associação. O homem forte, como o chamam hoje muitos inimigos de ontem, era Ourissom Saraiva de Castro, secretário- geral do dia em que a Associação foi fundada, 12 de maio de 1959, até o golpe militar, a 31 de março de 1964, quando sumiu pelo mundo afora — Bolívia, Argélia, o Brás, ou não se sabe onde.
O nome desse primeiro secretário do sindicato foi encontrado nas cadernetas de Luis Carlos Prestes, o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, e Ourissom foi condenado a vários anos de prisão. Muitos sindicalistas antigos guardam dele impressão favorável. Paulo Vidal elogia sua inteligência. Antônio Francisco Manzatto, hoje suplente de vereador em São Bernardo, velho e perseguido militante sindical, que em 1964 viu-se obrigado a doar um dia de trabalho para o governo militar na campanha “Ouro para o bem do Brasil” (“minha mulher estava doente de pneumonia, meus três filhos doentes de sarampo”), também guarda dele boas lembranças. Recorda-se, por exemplo, de que em março de 1964, após a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” – procissão de uma ou duas centenas de milhares de mulheres que desfilaram pelo centro de São Paulo em protesto contra o governo –, o advertiu, em vão, de que a coisa estava ficando preta. Lembra-se de vê-lo organizando caravanas de ônibus em São Bernardo para levar os companheiros à exposição de máquinas da URSS no Rio, no campo de São Cristóvão. E recorda-se, mais ainda, de como o sindicato na época era diferente do que prevaleceu de 1964 a até recentemente. “Era um sindicato progressista. Contribuía para elevar a consciência nacionalista dos trabalhadores e não para iludi-los com médico e dentista. Lutava em favor da Petrobrás. Lembro-me bem da grande festa do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, quando o governo encampou a refinaria de Capuava.”
Eram tempos melhores ou piores do que agora? A pergunta não tem resposta fácil. Manzatto, hoje dono de oficina, lembra que, naquela época, até ser sindicalizado era coisa malvista. “O salário era muito baixo e mesmo assim tinha muito trabalhador que era contra a greve. A greve não resolvia o problema do trabalhador. A gente pegava um aumento de sessenta por cento e o custo de vida o comia em pouco tempo. Só num aspecto hoje está pior: naquela época, o sujeito fazia a greve, brigava, e não era preso.” Antônio Raimundo diz coisa parecida: “O governo era menos carrasco, mas as patas dos cavalos eram as mesmas. Quando Jânio Quadros foi governador, foi quando mais o trabalhador apanhou da polícia. O que melhorou”, diz ele, “é o esclarecimento do operário. Por isso é que é preciso valorizar a luta de antes. Antes, a gente fazia muita greve na marra. A Volks parou em janeiro ou fevereiro de 1964, mas foi de fora pra dentro, à base de piquete”.
“A esquerda pensava que o 1° de maio era um começo, e não um fim.”
Os militares colocaram um interventor no Sindicato de São Bernardo logo após o golpe. Era Clemiltre Guedes da Silva, hoje suplente de diretoria do poderoso Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. O interventor foi maneiroso e moderado: atraiu para o sindicato um grupo de operários cristãos que fazia oposição a Castro e agiu com os depostos de forma cavalheiresca – dizem que mandou até pagar seus salários atrasados. Três pessoas se destacariam do grupo. O primeiro foi Afonso Monteiro da Cruz, funcionário da Scania, pernambucano de Salgueiro, filho de uma família de camponeses pobres e ligado ao movimento cristão da Frente Nacional do Trabalho; na época com 24 anos, Afonso tornar-se-ia presidente do sindicato do fim da intervenção (agosto de 1964) até o início de 1969. O segundo foi Paulo Vidal, mandrilador da Mollins, o homem que em 1969 iria trazer Lula para o sindicato; Vidal, então com 21 anos, viria a ser a figura mais discutida da história da entidade, e esteve em sua direção por onze anos, sendo por seis anos o seu presidente. O terceiro foi José Barbosa Monteiro, da Scania Vabis, cearense, negro, alto e forte, que em 1963 participava da oposição cristã ao Partido Comunista; Zé Barbosa seria diretor do sindicato até 1967; aí desiludiu- se das possibilidades da vida legal e depois do 1° de maio de 1968 passou à vida clandestina – hoje é exilado na Suíça.
De 1964 a 1968 foi o período, no Brasil, em que se implantaram os mecanismos que possibilitariam o arrocho salarial: a lei de greve, que praticamente tornou ilegal qualquer parada de serviço; a que estabeleceu índices oficiais para os reajustes de salário; a que criou o FGTS e a rotatividade de mão de obra para permitir a redução dos salários; a que tornou obrigatórios os atestados ideológicos para concorrer às eleições nos sindicatos; e a que deu às diretorias sindicais poderes para controlar suas próprias sucessões.
Nas fábricas, foi o período da resistência passiva, das operações “tartaruga”, que chegaram a ficar famosas, sobretudo nas grandes fábricas como a Mercedese a Volkswagen. “Às vezes, a produção chegava a cair cinquenta por cento e eles não podiam fazer nada, pois o cara estava sempre ali, na máquina dele trabalhando”, diz Zé Barbosa [1].
É um período de vida sindical violenta, de assembleias tumultuadas. Paulo Vidal lembra-se de ele e Afonso serem escorraçados da mesa diretora dos trabalhos, “a pauladas”. Zé Barbosa diz que a diretoria, a qual ele passou a opor-se, tinha “grupos de provocadores para tumultuar as assembleias” e que o PCB, “que tinha uma política de conchavo com a diretoria e nos chamava de provocadores”, participava desses grupos [2]. O 1º de maio de 1968 é um coroamento desse processo. Ele deveria encerrar uma grande campanha de vários sindicatos – o MIA, Movimento Intersindical Anti-arrocho, iniciado em 1966 em São Bernardo – e fora preparado por forças divergentes que iam desde o Sindicato de Osasco, de José Ibrahim, que mais tarde iria participar da oposição armada ao regime, até o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, de Joaquim dos Santos Andrade, considerado um dos maiores pelegos do Estado.
A solenidade de 1º de maio estava programada para as nove horas, na Praça da Sé; às 9h15min já era um quebra-quebra que envolvia uns poucos milhares das vinte mil pessoas presentes. O governador Abreu Sodré foi atingido por uma pedrada na cabeça, seu palanque incendiado e umas cinco mil pessoas sairiam dali em passeata “contra a ditadura”. Em outra direção foi um conjunto de dirigentes sindicais, chefiados por Frederico Brandão, dos bancários de São Paulo e depois deputado do MDB. Estes organizaram um ato de desagravo no Sindicato dosMetalúrgicos, ali perto, na rua do Carmo. E à noiteiriam ao palácio do governo levar suas condolências ao chefe do Estado.
Sodré, diz Paulo Vidal, mostrou-lhes um filme feito pela CIA em que aparecia toda a pancadaria e a passeata. E os líderes sindicais que a tinham liderado, como Ibrahim. “Parte da esquerda pensou que o 1° de maio de 1968 era o início do fim do governo militar”, diz um ferramenteiro de São Bernardo, hoje na Comissão de Salários do Sindicato. Não era. Em 13 de dezembro daquele ano, vinha o AI-5; o golpe militar revelara sua verdadeira natureza. E uma repressão feroz caía sobre o país e sobre São Bernardo.
Do 1° de maio de 1968 até as eleições no Sindicato de São Bernardo em fevereiro de 1969, a oposição continuou no seu trabalho miúdo, fazendo jornais e os distribuindo por fábricas em operações heróicas. O Zé Barbosa lembra ter participado de oito jornaizinhos, entre agosto e dezembro. Um deles, o Macacão, com tiragem de dez mil exemplares, foi distribuído por dezesseis militantes operários, protegidos por mais sessenta, na hora do rush da Volks, então com vinte mil operários.
“Houve algum progresso mesmo nos anos mais negros.”
As eleições de 1969 foram muito disputadas. Gente como Zé Barbosa, no entanto, praticamente ficou afastada do sindicato. Afonso também ficou de fora, desiludido com o AI-5 e a repressão política (em meados de 1969 faria um discurso de improviso em São Bernardo, homenageando os companheiros presos e processados e quase foi cassado). Assim, o campo ficou livre para Paulo Vidal, um jovem então encantado com as possibilidades do movimento militar de 1964.
Paulo ganhou a eleição com uma pequena margem de votos, atraiu alguns elementos novos para a sua chapa – Lula foi um deles – e iniciou um trabalho de natureza administrativa e formal. Colocou como seus objetivos: “Recuperar o sindicato como entidade jurídica; conter as despesas e incentivar as receitas; restabelecer o respeito pela entidade junto aos empresários e ao governo, para demonstrar que o sindicato defendia o trabalhador sem outros interesses; e organizar os trabalhadores a nível de base.” Entre 1971 e 1972, com base em poderosa receita, na ajuda oficial e no trabalho administrativo, ergueu a enorme sede atual do sindicato. Em junho de 1971 lançou a Tribuna Metalúrgica, tabloide oficial do sindicato onde pontificava com editoriais de apoio ao governo e condenação dos “extremismos”:
Em 1964, quando institui-se no Brasil o regime revolucionário, ainda vigente, muitas foram as contestações feitas, principalmente por aqueles que foram destituídos ou despojados de suas regalias ou até de seus inconfessáveis meios de vida. (n° 2, agosto de 1971)
O que Jesus fez para ser o que foi? Pegou em armas e fez revolução? Tentou os caminhos da subversão ou foi um terrorista? (n°5, dezembro de 1971, número especial de Natal e Ano Novo).
Seu estilo de trabalho era “impopular e irritante”, como lembra um dos funcionários do sindicato. Quando ouvia algum membro da oposição contestar agressivamente a política do governo ou propor a greve, dizia claramente que o companheiro estava falando em nome de grupos. Com isso, mesmo inconscientemente, favoreceu a repressão. A sua oposição, em 1969, foi presa e torturada. Antônio Raimundo lembra-se de ter acordado um dia com “os pés amarrados”. Passou vinte e oito dias na prisão, tomando choque elétrico “nos bagos”. Saiu depois com parte da audição destroçada.
A oposição a Paulo Vidal em 1972, quando ele foi reeleito, foi presa em junho e torturada no DOPS. Um dos seus líderes disse a Movimento que não teve condições de resistir e confirmou como “subversivos” inúmeros companheiros. Ficou tão abalado que não pôde mais exercer sua profissão de controlador de qualidade, obrigado a lidar com medições de décimos de milímetro: suas mãos tornaram-se trêmulas e ele não conseguiu mais passar nos testes práticos.
A repressão, contudo, não parece ter sido a única e nem mesmo a principal das causas das derrotas da oposição. Após 1968 e até o começo da década de 1970, os oposicionistas parecem ter deixado de lado a atuação dentro do sindicato, diz um jovem militante operário da região. E, no entanto, a classe operária de São Bernardo continuava travando suas lutas através do sindicato. “Houve algum progresso, mesmo no período mais negro da repressão”, diz Almir Pazzianotto, advogado do sindicato desde 1970. As lutas encaminhadas por esse advogado, tido unanimemente como um moderado, parecem encerrar uma lição para todos aqueles que menosprezam o trabalho no sindicato. Almir é um “individualista”, como se autoqualifica, um homem original que não fuma, não bebe café e é contra os cafeicultores – que considera uma praga da Nação. Elegeu-se deputado estadual em 1974 e 1978 com votos espalhados por todo o estado (trinta mil votos em 1978, só quatro mil na região do ABC). Neste período repressivo, Almir conseguiu vencer, na Justiça do Trabalho, várias causas pequenas como:
1) a estabilidade da gestante após a concepção; 2) o “salário do substituto”, obrigação de a empresa pagar salário igual ao do operário substituto na função, para difi cultar o rebaixamento de salários; 3) a obrigação de no envelope de pagamento fazer constar o que foi pago e o que foi descontado (antes havia fi rmas que pagavam com “recibos” feitos até em papel de embrulho).
Hoje, Almir não é muito bem-visto pela liderança de base do sindicato. Na greve passada, adotou uma posição conciliadora e foi com Paulo Vidal à Comissão de Salários defender a volta ao trabalho, na sexta-feira após a intervenção. Sua luta miúda dos “anos negros” não pode, no entanto, ser minimizada.
“Quando lutava pela estabilidade da gestante”, lembrou Almir, havia aqueles que diziam “precisamos lutar é pela estabilidade para todo mundo”. Com isso, diz ele, se fi cava de braços cruzados. “Eu tentei o outro caminho. E fi cava muito contente de ver a Federação das Indústrias perder para mim na Justiça do Trabalho. Era eu sozinho contra uma equipe de advogados.”
Outra ação do sindicato dirigido por Paulo Vidal, que na época não foi completamente entendida por seus adversários, foi o processo na Justiça para desvincular São Bernardo da Federação dos Metalúrgicos, durante as ações por aumento de salário. Fazer São Bernardo lutar à parte por aumento de salário signifi cava, por um lado, dividir a categoria, favorecer a ideia de uma elite operária, preocupada apenas com seus problemas. Por outro, signifi cava mobilizar os metalúrgicos de São Bernardo em defesa de reivindicações sentidas, que não aparecem em outros sindicatos operários. E signifi cava, também, desvincular uma categoria combativa de uma Federação há muito tempo “apelegada”. A chapa de oposição a Paulo Vidal, em 1972, ergueu-se em defesa da unidade com a Federação; mas os exemplos que a Federação deu, até agora, não podem justifi car a unidade – e hoje o Sindicato de São Bernardo, com suas reivindicaçõesespecífi cas, está puxando o conjunto do movimento sindical operário.
Perto do final da segunda gestão de Paulo Vidal, o país estava entrando em uma nova fase. Em 1973, devendo quinze bilhões de dólares, com a infl ação disparando de novo, com a crise do petróleo e os mercados mundiais em recesso, estava chegando o fim do “milagre”.
O governo cria as condições para a política de uma etapa do regime militar. Inicialmente, procura garantir a extinção dos últimos focos de contestação ao regime, com um “arrastão” de prisões generalizadas. (Este último rapa é sangrento e atinge de forma insólita o Sindicato de São Bernardo: o mesmo “rapa”, que prende e mata Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho, leva à prisão Frei Chico, o metalúrgico de São Caetano, irmão de Lula. Frei Chico é torturado e Lula é levado a vigílias de oito horas em cadeiras do DOPS). O esforço principal de Geisel é, no entanto, o de preparar o recuo organizado.
Essa nova conjuntura tem um refl exo imediato no sindicato. Em 1972, Paulo Vidal trabalhou para o candidato da Arena a prefeito de São Bernardo, Geraldo Faria Rodrigues. Até hoje, o prefeito Tito Costa tem mágoa: lembra que, na época, fi cou com três mil votos contra dez vezes mais dos arenistas. Em setembro de 1974, no entanto, Paulo Vidal estava organizando o 1° Congresso dos Metalúrgicos de São Bernardo – até então uma ousadia inimaginável. E, se não fossem as pressões policiais e do Ministério do Trabalho, ele teria levado ao Congresso conferencistas considerados “comprometidos com o regime anterior a 1964”, como Chico de Oliveira, sociólogo e oposicionista. E, embora faça parte da nova diretoria que se elegeu em 1975, Paulo Vidal começa a retirar- -se da testa do sindicato. Para tentar uma carreira política de oposicionista. (Em 1976 elegeu-se vereador pelo MDB com três mil votos. Em 1978, não conseguiu promover-se a deputado federal: fi cou como suplente com vinte e nove mil votos, mesmo tendo sido ajudado à última hora por Lula).
Certas ocasiões parecem exigir certo tipo de pessoas, diz o ditado. No caso, parece certo dizer que o tempo oposicionista que o Brasil passou a viver a partir de 1974 exigiu Luís Inácio. Lula já estava na diretoria do sindicato desde os anos duros de 1969. Até 1971, no entanto, ficava na base, isto é, na chapa de vinte e quatro dirigentes sindicais; não era dos nove que podem desligar-se da produção para trabalhar exclusivamente para o sindicato. Em 1972, como parte da Diretoria efetiva, “moleque” ainda, com 26 anos, tornou-se diretor do Departamento de Previdência do Sindicato. Hoje ele tem a impressão que o cargo que lhe deram visava queimá-lo – que futuro político pode ter a assistência social no sindicato? Isso se deveria ao fato de ele ter “namorado” a oposição a Paulo Vidal em 1972, tendo comparecido a várias de suas reuniões.
De qualquer forma, logo Lula mostraria que ia saber aproveitar o seu indesejado departamento de doentes, órfãos e viúvas. Aproveitou tanto que se casou, pela segunda vez, com a viúva de um metalúrgico que frequentava o sindicato. (Sua mulher morrera após o parto, de hepatite). Mas, no essencial, dedicou-se a ganhar influência sobre a massa que busca assistência social no sindicato. “Você sabe quantas pessoas passam pelo sindicato, por dia? Quando pouco, mil e quinhentas. Os trabalhadores vêm ao sindicato, por muitas razões. E nós temos que usar o serviço médico para falar do sindicato”, explica ele hoje. “Na minha gestão, a partir de 1975, não aumentei nem um dentista, nem um médico. Mas não se pode extinguir um serviço desses de uma hora para outra. Quando ouço essas oposições sindicais dizerem em seus programas que vão eliminar a assistência médica no sindicato, eu fico pensando: sabe quando eles vão ganhar as eleições? Nunca!”
Lula tinha outra característica que o tornava o homem indicado para presidir o sindicato num período de crescimento das lutas de classe. “Sempre achei que os líderes sindicais esfriavam muito a luta dos trabalhadores. Quando o trabalhador chegava com um problema, o líder dizia que era muito difícil. Pintava um mundo negro, amedrontava o sujeito que vinha brigar. Para mim, só havia um jeito: quando alguém chegasse para brigar, devia estimulá-lo a brigar mesmo.”
Em 1977, o país vivia o clima da “Carta aos brasileiros” – manifesto dos advogados e juristas em defesa do Estado de Direito e da Constituinte –, do manifesto dos bispos, das greves e passeatas dos estudantes. Nesse ambiente, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo lançou uma bomba. Conta Paulo Vidal, que deixava de ser presidente, mas continuava como secretário com influência junto a Lula: “O Lula e eu vivíamos estudando fórmulas para lançar a classe trabalhadora no noticiário. Foi quando surgiu a nota da Gazeta Mercantil sobre o cálculo da inflação brasileira feita pelo Banco Mundial. E vimos que os trabalhadores haviam sido lesados em 1973 porqueos números usados na fórmula do reajuste salarial estavam errados”.
Surgiu então a campanha pela reposição dos 34,1% que foi o estopim das greves de maio do ano seguinte. A campanha lançou Lula e o sindicato nacionalmente. Ainda em 1977, Paulo Vidal insistia em dizer em assembleia que, se alguém propusesse greve para o trabalhador, ele devia denunciar ao sindicato; na campanha dos 34,1%, o entusiasmo da massa foi tão grande que a diretoria acabou aceitando uma Comissão Salarial aberta a todos os interessados, para redigir boletins e mobilizar os trabalhadores. A partir daí, surgiram dezenas de assembleias por fábrica, ônibus parando na porta de empresas no fim do expediente para levá-los diretamente à reunião do sindicato.
A “Elite de privilegiados: a classe operária de S. Bernardo.”
“Só as assembleias de Comissão de Salários reuniam mais de cinquenta pessoas”, lembra Antônio, operário da Detroit, demitido na última greve. Ainda assim, mesmo bem aberto à participação, o sindicato foi surpreendido com as greves de maio. “Nesses últimos dias, eu aprendi mais do que se estivesse dez anos em uma universidade”, dizia Lula no final de maio: “Os trabalhadores estavam muito mais preparados do que eu pensava”.
As greves de maio em São Bernardo não foram planejadas pelos sindicatos – embora alguns de seus diretores de base participassem delas ativamente. E nem a mediação feita pelo sindicato ao final do movimento agradou a maioria das fábricas. Na Schuller, por exemplo, o acordo feito pelo sindicato – 11,5% de aumento mais treze por cento de antecipação – foi considerado ruim. Na Volks, onde não se conseguiu fazer greve em maio, o sindicato se desgastou muito; primeiro, porque os diretores que o sindicato tinha na empresa atrapalharam o movimento; depois porque os operários não entenderam imediatamente a expulsão desses diretores, que a empresa havia subornado. Além disso, o sindicato não convocou uma assembleia geral para discutir o acordo final firmado com os patrões, após as inúmeras greves por fábrica.
Por todos esses fatos se tem a impressão de que, em São Bernardo, a classe operária está, como sempre esteve, geralmente à frente do sindicato. Mas, que classe operária é essa que tem mostrado tanta combatividade? Em primeiro lugar, não é a classe dos privilegiados tanto citada pelo general Figueiredo e todos os seus ministros econômicos. Em relação aos salários, embora quase não exista mais ninguém ganhando o salário mínimo, uns vinte por cento da categoria ganham por volta de dois salários – pouco mais de três mil cruzeiros, numa região onde o quarto e cozinha, em rua sem asfalto, com banheiro fora e coletivo está custando dois mil e quinhentos cruzeiros. E cerca de setenta por cento dos peões – os horistas – ganham menos de cinco salários mínimos, perto de sete mil cruzeiros até antes do acordo – numa região onde a casa modesta de quatro cômodos do operário especializado está custando, de aluguel, três salários.
Em segundo lugar, é ilusório também acreditar que o trabalhador de São Bernardo é um cidadão disposto a conformar-se com o que tem, ao ver que na roça, de onde teria vindo, estaria prejudicado. “Em São Bernardo do Campo existe uma geração industrial, os filhos dos caras que vieram para cá em 1956, que não compara a vida daqui com a que tinha na roça. Compara com a que levava aqui mesmo. Até 1970-1972, nos éramos muito privilegiados. A partir daí, passamos a perder o que havíamos ganho. O trabalhador aqui tinha cinco a seis aumentos por ano, recebia de graça lanche, leite, suco de laranja durante o trabalho. As empresas cortaram tudo isso para não reduzir os seus lucros.”
É uma categoria com experiência e iniciativa. O sindicato sempre pregou, por exemplo, que os trabalhadores não tratassem com violência aqueles que insistiam em fazer hora extra, boicotando a preparação dessa possível nova greve. A paciência dos operários na Volks se esgotou, no entanto, no fim de semana anterior ao 1º de maio. Na sexta, operários da ala 14 invadiram em massa a ala 13 onde ficam normalmente os bombeiros e a guarda de segurança. Para afastar os bombeiros e os guardas, os operários da ala 5 fizeram soar o alarme de incêndio: enquanto os bombeiros e os guardas corriam para lá, a massa da ala 14 exemplificava os furadores da operação boicote às horas extras.
Para ficar à frente da categoria, Lula tem-se deixado levar por ela. “Quando vou para uma assembleia, eu nunca levo as coisas prontas. Às vezes, nem minha diretoria sabe o que eu vou levar. Quando vou falando nas assembleias, vou tentando peneirar o bom senso dos trabalhadores.” Foi assim na assembleia no estádio de Vila Euclides, na quinta-feira anterior à intervenção no sindicato. Lula e o advogado do sindicato, Almir Pazzianotto, tinham passado a quarta e a parte da quinta-feira preparando o texto de um acordo a ser aceito pela assembleia. Naturalmente, o ministro esperava que Lula fosse defender o acordo diante da massa. Foi o que ele tentou fazer. Mas não pôde. “Comecei a falar dizendo que era um bom acordo e sentindo que pesaria muito eu dizer uma coisa e a categoria fazer outra. Antes de terminar, porém, eu já sabia, pelos gestos e olhares, qual era o sentimento da massa.” Aí propôs a rejeição do acordo.
Lula deixa-se levar pela classe
Assim como tem sido levado pela classe, Lula poderia ter contribuído mais para elevar o nível de organização dos trabalhadores, tarefa que não se esgota nas questões econômicas. A posição de nem sempre contar ao conjunto da diretoria quais são as suas propostas tem deixado na ignorância até mesmo boa parte dos diretores. E, na diretoria, ao lado de antigos líderes sindicais da época de Paulo Vidal, há muitos elementos combativos – operários simples que têm apenas o curso primário, sem qualquer experiência de representar os trabalhadores em situações mais complexas. Por outro lado, a Comissão de Salários praticamente desapareceu após a intervenção: não se reuniu mais e não sabe sequer quais os termos do acordo que Lula persegue. As contrapropostas que os advogados do sindicato fazem aos patrões vêm diretamente de Lula e mais um ou outro diretor. Assim, os trabalhadores só podem opinar diante de situações já prontas.
Além disso, Lula é pressionado pela polícia, pelo governo e pelos patrões a exercer um papel destacado no controle das manifestações dos trabalhadores. Na véspera do 1° de maio, um investigador foi visitá-lo em nome do delegado geral do DOPS para adverti-lo e pedir sua colaboração, a fim de evitar excessos que repetissem um novo 1° maio de 1968. A manifestação do 1° de maio foi pacífica e ordeira porque os próprios manifestantes o quiseram – Lula não usou de nenhum recurso para reprimi-los. Duas semanas antes, porém, diante da igreja matriz de São Bernardo, Lula praticamenteinibiu a massa de reunir-se livremente, ao propor que ela denunciasse ao sindicato todos os grupinhos – evidentemente de esquerda – que tentassem reunir os trabalhadores.
À medida que cresce o movimento operário e procura transformar o país, Lula está, portanto, sob esses dois fogos: de um lado, o governo e os patrões querendo pô-lo para controlar o movimento operário; de outro, os próprios operários, a base de São Bernardo do Campo, que, embora avançada, nãotem consciência clara do que fazer para resolver os problemas graves que tem pela frente. E para isso, ela não precisa apenas de alguém que esteja à sua frente; mas de alguém que a ajude a encontrar os caminhos que procura.
Notas
[1] Do depoimento de Zé Barbosa em Memórias do exílio, vol. 1: “De muitos caminhos”, EDET e Livraria Livramento Ltda. lª edição, novembro de 1976, páginas 129 e 130. (Nota do autor)
[2] Ibdem, idem.
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Publicado originalmente no jornal Movimento em 14 de maio de 1979 e reproduzido no número 02 da revista Samuel
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