Não foi apenas uma vaga de deputado federal que Paulo Cezar Fonteles de Lima perdeu no final do ano passado: derrotado na eleição de novembro, em março terminaria seu mandato de deputado estadual, assumiria oficialmente sua vinculação ao Partido Comunista do Brasil, deixando o “guarda-chuva” do PMDB, e retornaria à advocacia fundiária, como defensor de posseiros, atividade que o levou à Assembleia como o mais combativo dos representantes da esquerda.
Para um grupo de proprietários de terras, era a oportunidade do ajuste de contas: sem a proteção do mandato político, Fonteles, 38 anos, se tornava um alvo menos complicado. Era preciso aproveitar a oportunidade, antes que a dedicação exclusiva às lutas do campo pudesse refazer seu suporte e novamente
transformá-lo num inimigo perigoso.
Provavelmente o assassinato de Paulo Fonteles começou a ser preparado em março. Entre o final desse mês e o início de abril dois homens, ambos aparentando 30 anos, um deles alto, forte, barbudo, o outro magro e baixo, se hospedaram no Hotel Milano, um hotel de segunda categoria,mas encravado num ponto estratégico da avenida Presidente Vargas, a mais importante do centro da cidade.
Saiba o que mais foi publicado no Dossiê #03: Alternativas verdes
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A trama para matar Paulo Fonteles (foto) envolvia pistoleiros e latifundiários do Pará
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José Roberto Vasconcelos, o Betão, e Marcos Antonio Nogueira, o Marquinhos, não poderiam ficar em melhor local para desempenhar sua missão. Eles deveriam observar Paulo Fonteles e checar um plano de ação para dois outros homens, que só viriam depois, com uma outra tarefa: matar o ex-deputado.
Betão e Marquinhos estiveram no Milano mais duas vezes: entre 17 e 19 de maio e de 3 a 11 de junho, dia do assassinato. As duas primeiras estadias foram pagas pelo chefe deles. Na última, saíram do hotel sem quitar a conta, às pressas. O chefe também deixaria Belém apressadamente naquele dia, embora num voo regular da Transbrasil, que sai às 4h20min da madrugada para São Paulo. Nos dois dias que antecederam o atentado, Betão e Marquinhos teriam no hotel a companhia de mais dois integrantes do plano: Antonio Pereira Sobrinho, um paraibano de 38 anos, muito forte e parecido com Betão, que daria três tiros precisos na cabeça de Fonteles, e Osvaldo R. Pereira, 44 anos, que ao se hospedar apresentou-se como militar, motorista do carro usado no crime.
A missão especial
Para que eles pudessem estar em condições de executar o advogado comunista na manhã de 11 de junho foi necessário preparar uma articulação demorada. Ela pode ter começado em junho de 1986, quando James Sylvio de Vita Lopes retornou a Belém, depois de um ano e meio de ausência do Pará. Em São Paulo, onde nasceu em 1947 e fez uma tortuosa carreira até 1981, quando deixou de vez a advocacia — sua habilitação formal — para se transformar em agente de segurança, James foi contatado e aceitou trabalhar para o grupo Jonasa. Voltava a Belém para exercer sua especialidade: resolver problemas de terras enfrentados por proprietários.
Ele criara fama de homem decidido e violento durante pouco mais de três anos em que atuara como “gerente do complexo residencial das empresas estabelecidas às margens da BR-316”, na divisa do Pará com o Maranhão, corno declarara no inquérito policial. Ali, numa gleba chamada Cidapar, com pretensão sobre um terço do município de Viseu, empresas como a Agropastoril Grupiá, Comercial do Pará, Comepar e Propará, tendo como carro chefe o Banco Denasa de Investimentos (ao qual o ex-presidente Juscelino Kubitscheck esteve ligado) litigavam judicialmente com o Estado — que considerava as terras devolutas — e, no dia a dia, com quase dez mil famílias de posseiros com ocupação antiga na área.
Muitos conflitos e várias mortes ocorridas durante os confrontos foram debitadas na conta de Vita Lopes. Andando às vezes com cinquenta homens, sempre fortemente armado (com pistola 7.65 ou metralhadora), usando motocicleta ou helicóptero, trajando uniforme de campanha, não foi difícil para ele passar a ser tratado como capitão James. Teria estabelecido seu domínio na área se não surgisse em seu caminho outro bando com propósitos conflitantes.
Quintino da Silva Lira, um caboclo da região, também queria ser o dono do local, mas através de outra clientela, a dos lavradores, para os quais passou a ser uma espécie de Robin Hood, que tirava dos ricos para dar aos pobres (embora com uma adaptação moderna: cobrando comissão). O “capitão” James e o “gatilheiro” Quintino testaram sucessivamente suas forças nos atalhos da mata, mas quem pôs fim à contenda foi um terceiro personagem, a Polícia Militar, não sem orientação de um dos contendores. Quintino foi morto em 4 de janeiro de 1985 com um tiro de fuzil pelas costas, depois de cair numa armadilha.
Mas James não poderia comemorar pessoalmente essa vitória. Preocupado com o grau de independência que ele havia conferido a si mesmo, passando a prestar serviços para outras empresas ou agindo por conta própria, a Propará — que teria sofrido “pressões governamentais”, segundo o próprio James — dispensou os serviços do seu chefe de segurança e ele voltou para São Paulo. No retorno ele deu o que os sambistas chamam de “volta por cima”.
James foi do aeroporto para o Hilton, o único hotel cinco estrelas de Belém, de onde só saiu algum tempo depois para um bom apartamento de subúrbio. Mas era um assíduo, gastador e generoso frequentador do hotel, que transformou num de seus pontos de encontro. Ali almoçava e jantava periodicamente, recebeu um cartão de cliente especial e passou a ser associado do Top Bel, um clube de ginástica, musculação e sauna.
Um crime perfeito?
O Hilton foi escolhido para os contatos especiais, refletindo uma das faces de James. Desde janeiro ele organizava uma firma própria, a J.V. Segurança Privada, e por isso também podia ser encontrado no seu escritório, numa rua central de Belém, a Rui Barbosa. Mas também ia muito ao Hotel Milano, onde o bom cafezinho era o pretexto para trocar informações com muitas outras pessoas que ali vão para saber de negócios de terras, pistoleiros ou tóxicos, entre muitos outros assuntos que conferem hoje ao lugar a mesma função que o Café Avenida, mais adiante, desempenhou até alguns anos atrás. Em duas dessas visitas, James pagou as despesas de Betão e Marquinhos, os homens de cobertura do plano. Mas evitou qualquer ligação com Antonio e Osvaldo, que seriam os executantes. Os dois, depois de matar Fonteles dentro do posto de gasolina Marechal IV, na saída da cidade, voltaram ao hotel, pagaram a conta e saíram, dizendo que iam para São Paulo. Já Betão e Marquinhos se esconderam na sede da J.V., enquanto James viajava horas antes para São Paulo. A presunção era de que o crime, executado conforme o planejamento, jamais seria esclarecido.
Dois meses depois o delegado Otacílio Mota, 52 anos, anunciava a reconstituição integral do atentado, vencendo uma barreira de ceticismo ou descrença que surgira no curso da investigação. Dispondo apenas de três investigadores e um escrivão, o chefe da Delegacia de CrimesContra a Pessoa conseguiu identificar os dois homens que mataram Fonteles e o organizador do atentado.
Mota obteve o mandado de prisão para os três, concedido pela juíza Maria de Nazaré Souza da Silva, mas agora está diante de uma tarefa maior: chegar aos criminosos. Todos estão foragidos, embora o mais importante deles, o capitão James, tenha mandado uma carta de São Paulo. Pode ser despistamento, mas o delegado tem que agir com rapidez e eficiência se quiser chegar aos executantes antes de qualquer tentativa de “queima de arquivo”, que enfraquecerá os elos de ligação com o intermediário e impedirá a concretização do que permanece sendo urna hipótese: a completa elucidação, pela primeira vez em muitos anos, de um crime político.
O agente de segurança especial
No dia 2 de junho James Sylvio de Vita Lopes, advogado, divorciado, 40 anos, foi à 2ª Seção da 8ª Região Militar, que cuida de informações e costuma ser chamada de serviço secreto. Queixou-se de ter sido roubado entre os dias 28 e 29 de abril. Descreveu o roubo: um fuzil Colt, calibre 7.65, de fabricação norte-americana; quatro pentes de munição com noventa balas; seis granadas ofensivas, que têm efeito moral, só matando quando acertam diretamente o alvo; uma caixa de bala 38; de trinta a quarenta balas calibre 45; uniformes camuflados de areia e selva; camisetas e gorros.
As declarações de James foram transformadas em “informe”, que levou o número setenta e um, de natureza confidencial, avaliado no grau três. Isto quer dizer que não mereciam ser consideradas como uma informação, exigindo antes uma checagem para avaliar sua fidedignidade, mas foram repassadas – como algo a ser analisado – aos órgãos da “comunidade de informações”, entre os quais a Aeronáutica, a Marinha, o SNI, a Polícia Federal e a Secretaria de Segurança Pública.
Manifestação em Belém: suspeita de participação de fazendeiros da UDR no crime, o que não ficou provado
Arsenal misterioso
O “informe” começa com a observação de que o declarante é “o famoso capitão James”. Não se tratava, na verdade, de um capitão das Forças Armadas (ou pelo menos não do Exército), mas o próprio Vita Lopes não apenas parecia satisfeito com o tratamento, comoo induzia. Agia de várias formas a parecer-se de fato um oficial do Exército. O traquejo pode tê-lo estimulado a adotar uma iniciativa na qual um outro civil jamais pensaria: comunicar ao órgão de informações do Exército que lhe foram roubadas armas que ele simplesmente não poderia ter, por serem de uso privativo das Forças Armadas ou exigirem, para o porte, uma licença especial, que ele não possuía.
Para o “famoso capitão James”, um ato desses, porém, não era mais inédito. Em novembro de 1983, quando chefiava a segurança das empresas da gleba Cidapar, ele conseguiu que o DOPS instaurasse inquérito para apurar outro desfalque no seu bem sortido arsenal. Na época, haviam desaparecido três rifles 38; duas cartucheiras cano duplo, calibre 12; uma pistola de calibre 7.65; um rifle 22 com mira telescópica, e vinte e uma balas.
O desaparecimento incluía também uniformes camuflados de campanha, que James usava — como explicou ao depor no inquérito — “procurando resguardar-se de iniciativas antagônicas de pessoas moradoras da região, permanentemente em conflito com o pessoal daadministração” das empresas. Argumentou que as roupas roubadas — boné, camiseta, calça verde e botas — não eram uniformes das Forças Armadas “e sim são roupas apropriadas para caçadores vendidas livremente no comércio do ramo, assim como as armas selecionadas”.
Numa carta que enviou ao jornalista João Malato, às vésperas de ter sua prisão preventiva decretada, James contradiz as declarações de quase quatro anos antes: informa que o uniforme camuflado foi “adquirido nos Estados Unidos”. Já na 2ª Seção da 8ª Região Militar dissera que todo material, incluindo as armas privativas, lhe haviam sido dados, “como presente”, por um certo capitão Airton, do Exército, em 1974. Não falou sobre o sobrenome do oficial ou o que motivara esse suposto capitão Airton a uma doação que constitui infração disciplinar e ilegalidade. Nem lhe foi perguntado. Apenas deu a declaração e foi embora. Nove dias depois ocorria o atentado.
Segundo uma fonte militar, muitas pessoas procuram os órgãos de informações para fazer todos os tipos de denúncias ou relatar as mais variadas histórias, muitas delas absurdas ou fantasiosas. O “famoso capitão James”, de acordo com essa interpretação, seria um tipo megalomaníaco, que não se deve levar muito a sério, ou “ao pé da letra”, mas cujas informações convêm registrar para averiguações.
Talvez por esse princípio metodológico, a descrição de um arsenal que inclui até granadas não mereceu maior atenção. Mas James referiu-se também às atividades do deputado estadual João Carlos Batista (PMDB), acusado de insuflar invasões de terras e tirar proveito pessoal desse fato, e aos quatro guarda-costas que o acompanham, entre os quais Mão de Sola e um irmão do “gatilheiro” Quintino, o rival de tiroteios de James em Viseu.
Amizades influentes
É possível que o Exército desconhecesse os registros do DOPS sobre o “famoso capitão” e seu arsenal, continuamente exposto a saques. Mas na carta a Malato, datada de 14 de agosto e teoricamente postada três dias depois, James faz questão de mostrar que não é um neófito nesses caminhos tortuosos. Ele arrola entre os amigos “policiais civis, militares e federais”, com os quais “mantinha bom relacionamento, trocava informações importantes e vitais para o bom desempenho de certas missões”. Acrescenta que informava esses amigos “sobre os passos, reuniões e decisões daqueles que incitavam à invasão de propriedades privadas”.
Na carta que mandou, James tenta caracterizar a perseguição que sofre como resultado de sua posição e atribuí-la aos responsáveis por essas invasões que “sabiam e sabem o quanto posso afetá-los com o meu trabalho”, insinuando que a morte de Fonteles poderia ter sido arquitetada pelo próprio PCdoB, como uma “queima de arquivo” ou para criar um mártir que os comunistas poderiam usar. A única pessoa acima de qualquer suspeita seria ele mesmo, que não se arriscaria a praticar um crime, e ainda por cima deixando tantas pistas, abusando, assim, “da confiança de tantos bons amigos, dentro ou fora do Governo”.
Entre os amigos, poderia estar o diretor geral da Polícia Federal, Romeu Tuma. José Antonio da Silva, que trabalhou com James na empresa de segurança J.V., disse ao delegado Otacílio Mota que seu patrão almoçou com Tuma no Hilton Hotel. O próprio José Antonio não presenciou o almoço, mas quem deu a informação foi Walter Cardoso, segurança do Hilton. Cardoso, no seu depoimento no inquérito, também informou que James “regularmente almoçava com Joaquim Fonseca”, o dono do Grupo Jonasa.
O proprietário do Hotel Milano, o francês Jean François Le Cornec, 37 anos, declarou ao delegado Mota ter sabido, “por terceiro”, que James “seria pessoa ligada ao Serviço Nacional de Informações”, boato esse reforçado pelo fato de que James foi visto no hotel conversando com Rubineti, “pessoa ligada ao serviço de informações”. Um dos agentes da empresa de segurança de James, que trabalhou para ele na fazenda de Joaquim Fonseca, um segundo-tenente da reserva do Exército conhecido apenas como Paulo, foi declarado como informante do SNI por José Antonio da Silva, também contratado como segurança por Vita Lopes.
O SNI mesmo teve urna intervenção na apuração do assassinato. O órgão informou o delegado Otacílio Mota que os pistoleiros tinham saído de Belém no Santana de propriedade de James no dia 15. Mas o delegado pegou uma pista errada: o carro, provavelmente com uma bala na porta, havia sido recolhido à Belauto para conserto três dias antes do atentado e lá permaneceu até um mês depois.
Na carta a Malato, James não chega a confirmar o almoço com o chefe da Polícia Federal. Diz apenas que cumprimentou Tuma, “porque já tinha sido apresentado ao mesmo há muitos (anos) mais, quando era diretor do DOPS paulista, pelo amigo comum, doutor Quass”, mas se apressa a dizer que a tentativa de envolvimento dessas “diversas personalidades ilustres” não passa de uma “manobra típica de esquerda”. Discretamente, a Polícia Federal do Pará está investigando a história, por ordem superior.
A carta revela detalhes novos na biografia, mas deixa claro que está omitindo muito mais, fiel ao estilo do “capitão James”, entre o mistério e a grandiloquência, estilo muito usado alguns anos atrás. Defendendo-se da acusação de “falso capitão” (que ele usou antes de ter sido acusado), de ex-agente do DOI-CODI ou membro da Rota, a violenta patrulha policial de São Paulo, Vita Lopes diz ter sido procurador jurídico da pequena prefeitura de Penápolis, no interior paulista. Como pertencia à Coordenadoria da Defesa Civil, “sempre estava no Palácio dos Bandeirantes”, ao tempo em que o inquilino era o governador Paulo Maluf. Isso foi entre 1979 e 1981, período em que a história de Vita Lopes projeta alguma luz. Sobre a fase anterior há apenas sombras – e ele não parece nem um pouco interessado em dissipá-las. Sabe-se que se formou em Direito com idade já razoavelmente avançada para um estudante comum, 27 anos. Foi justamente nesse ano que se credenciou a receber um arsenal de um capitão amigo, já falecido, infelizmente, do qual não lembra mais o sobrenome.
Agente “da pesada”
Tais traços biográficos indicam seguramente que o “capitão James” não era urna pessoa convencional. Walter Cardoso, o detetive do Hilton, confessou ao delegado Mota que ficou impressionado com o homem, que não parava de falar na montagem de um “esquema”. Os dois estavam em frente ao hotel, vendo passar urna passeata de protesto de professores, quando James fez um comentário que Cardoso não esqueceu:
— Comigo não tem dessa. Jogava logo uma bomba de gás lacrimogêneo, jogava logo uma granada, dava uma rajada de metralhadora.
James enfiara ainda outras armas nessa reação, como escopetas e pistolas. Cardoso, cinco mil cruzados por mês para ser segurança no hotel cinco estrelas, concluiu dessa linguagem que estava diante de um guerrilheiro. Não era urna dedução de todo incorreta: James, como num drama literário igualmente trágico, era personagem à procura de um autor. Só que não levaram a sério — ou quiseram camuflar — o enredo que ele desfiava.
Policiais ajudam os criminosos
Dois delegados e um investigador de polícia mantiveram James de Vita Lopes sempre bem informado sobre as investigações do delegado Otacílio Mota, que se reportava apenas a um reduzido número de integrantes do governo. O próprio James admite na carta datada de 4 de agosto que estava “prestes para embarcar para Belém” quando recebeu “telefonemas de amigos para que não retornasse porque era suspeito” de envolvimento no assassinato de Fonteles. Os amigos disseram que ele seria preso no aeroporto e, quando fosse colocado na cadeia, poderia ser linchado por militantes do PCdoB e pelo deputado João Batista.
Entre esses amigos policiais está um ex-delegado do DOPS, que atuou durante a repressão a posseiros da gleba Cidapar, a grande missão que James desempenhou entre 1981 e 1984. O investigador ainda está até hoje no DOPS, mas o então delegado foi remanejado para outro posto. Foi desse setor da polícia que saíram os primeiros “vazamentos” de informações para a imprensa.
Na carta supostamente enviada de São Paulo, James diz que “as suspeitas sobre o meu envolvimento iniciaram-se quando o delegado Otacílio Mota apegou-se a uma notícia dada por um dos jornais da cidade, de que dois suspeitos teriam se hospedado no Hotel Milano”. Quando A Província do Pará publicou a informação, dada por um delegado, Mota na verdade fazia diligências em Belo Horizonte, tentando justamente aproveitar-se do sigilo. O “vazamento” prejudicou a investigação alertando os criminosos. Mas James não poderia dizer que a publicação levara o delegado à suspeita.
Um outro fato mostra que ele estava recebendo as informações antes mesmo que elas chegassem à imprensa, quando ainda era privilégio de um reduzido grupo de quatro autoridades. No momento em que James estava se preparando para voltar a Belém, uma semana depois do crime, nenhum jornal havia publicado uma vez sequer o nome dele como suspeito. No entanto, ele já sabia que o delegado Mota começava a investigá-lo.
Esse invejável canal de informações deve ter estimulado Vita Lopes à iniciativa de enviar uma carta, na qual revelou dados que nem a polícia conhecia. O destinatário foi escolhido a dedo: além de ser um intransigente defensor dos fazendeiros e de suas organizações, o jornalista João Malato é pai do delegado Mário Malato, tido como amigo de James. Recebendo a carta, Malato enviou-a ao jornal O Liberal, não sem antes submetê-la a uma atenta copidescagem (revisão), mas retendo o envelope, onde estaria o registro do despacho postal.
Mas o que ainda causava especulação eram os motivos que levaram o “capitão” James a fazer revelações tão comprometedoras. Ele disse, por exemplo, que as despesas com o conserto de seu carro, um Santana 1985, foram pagas pela Jonasa. É um dado perturbador: embora dizendo tê-lo dispensado em 16 de abril, no dia 8 de julho a empresa se responsabilizou por despesas de James e ainda mandou entregar-lhe em São Paulo o carro, mesmo sabendo — porque já então as especulações haviam sido publicadas pela imprensa – que ele estava sendo acusado de envolvimento no crime.
Na carta, James diz que as notas de despesa “devem estar arquivadas na contabilidade” da Belauto. De fato, um investigador da Delegacia de Crimes Contra a Pessoa viu no computador, no dia 10, o registro da responsabilidade pelo conserto em nome de Joaquim Fonseca Navegação S/A. Era sexta-feira e pediu um documento de comprovação. Na segunda-feira, já apareceu no vídeo do computador o nome de James Sylvio de Vita Lopes. Num ofício de 15 de agosto a empresa diz que ele foi quem pagou o conserto.
Por que o “capitão” James tornou públicas informações embaraçosas como essa, que a polícia ou a opinião pública ignoravam? Talvez com a intenção de mandar recados para destinatários certos, avisando que poderá dizer ainda mais se faltar-lhe o apoio de que precisa para livrar-se de mais essa complicação.
Mandante: entre empresários
Se havia alguém que o empresário Francisco Joaquim Fonseca poderia ter interesse em mandar matar, essa pessoa seria o deputado estadual do PMDB João Carlos Batista e não o ex-deputado Paulo Fonteles. A observação foi feita na semana passada por um dirigente da UDR (União Democrática Ruralista) em Paragominas, membro também da Associação Rural de Pecuária do Pará, que raciocinava “apenas como hipótese”, manifestando a opinião de que Fonseca não teve qualquer participação no assassinato de Fonteles.
“Mas se ele quisesse matar alguém visaria o Batista, que já lhe causou muitos problemas”, disse o membro da UDR, não vendo lógica no envolvimento do chefe do Grupo Jonasa com a morte de Fonteles, “que nunca atuou na região da Belém-Brasília”. Um membro da família Fonteles reconhece que Fonseca não teria motivos para encomendar um atentado ao ex-deputado, mas está convencido de que o empresário foi envolvido por fazendeiros do Sul do Pará e de Paragominas, “que o desafiaram a aceitar a empreitada e ele aceitou”. No meio das acusações difusas de cumplicidade que a família faz aparecem os bancos Real e Bamerindus.
Mas, se nenhum desses possíveis aliados aparece em qualquer momento do inquérito policial presidido pelo delegado Otacílio Mota, Joaquim Fonseca já tem nos autos uma posição delicada. Ele poderá ser chamado a explicar as contradições entre suas afirmativas e as de James Vita Lopes. Fonseca diz que deixou de ter relações comerciais com James em 14 de abril, mas em 2 de junho, quando foi ao quartel-general da 8ª Região Militar, o ex-segurança assegurou que ainda trabalhava para a Jonasa. E declarou na carta que Fonseca pagou o conserto do Santana em 8 de julho, enviando-lhe o carro — provavelmente de carreta — para São Paulo.
A nota que Fonseca publicou pela imprensa sugeria que ele não tinha qualquer intimidade com James, mantendo com ele um relacionamento puramente comercial. No entanto, o segurança José Antonio da Silva disse, em seu depoimento, que James “regularmente almoçava com Joaquim Fonseca” no Hilton, baseado em conversa que tivera com o detetive do hotel, Walter Cardoso.
Fonseca, o maior armador da navegação fluvial em todo o país, foi buscar James em São Paulo para tentar resolver, ainda que à força, problemas em três fazendas que possui na Belém-Brasília: a Vale do Capim Agro Industrial, a Companhia Agropecuária do Rio Jabuti (a maior, com vinte e um mil hectares), ambas incentivadas pela Sudam, e a fazenda Del Rey, com doze mil hectares.
Na entrada dessa fazenda, em julho do ano passado [1986], foi assassinado José Bernardo Pinto. Ele era um dos ocupantes da fazenda, contra os quais a Polícia Militar e policiais civis investiram numa ação de desarmamento e retirada de invasores. Duas semanas depois José Bernardo foi morto a tiros, às onze horas da noite, quando carregava uma motosserra para conserto.
Fonseca queixava-se de que as pessoas invadiam suas terras apenas para tirar madeira, servindo àsmadeireiras, e que, ao resistir, havia sido ameaçado de morte. Os ocupantes se declaravam agricultores e denunciavam a conivência da polícia com a violência. Foi justamente quando o conflito estava agudo que chegou à área o “capitão” James, disposto a reeditar por ali os métodos vitoriosos da gleba Cidapar.
A ação dos sindicatos do crime
O governador Hélio Gueiros tem se queixado a assessores mais próximos de que a Polícia Militar forma pessoal para as agências particulares de segurança. Elas pagam um pouco mais e atraem os soldados da PM depois que eles passam pelo centro de formação. E podem fazer isso: afinal, poupam todo o dinheiro investido pelo Estado em treinamento de pessoal.
Mas o problema não seria tão grave se se reduzisse a essa drenagem. Mas as próprias autoridades sabem que oficiais intermediários da PM, mesmo sem deixar a função, estão organizando milícias para empresas particulares. A polícia civil também participa desse tipo de trabalho duplo, um público e legal, o outro informal e ilegal. Na região de Paragominas e no Sul do estado já existem milícias, como as que James Vita Lopes comandava na Cidapar e sob a camuflagem de sua agência de segurança, a J.V.
Quando a empresa não tem condições de suportar as despesas com esses grupos organizados, recorre a pistoleiros autônomos. Há centenas deles em vários pontos da Amazônia e o principal centro é Imperatriz, no Maranhão, onde o chefe de uma das quadrilhas virou político e exerce inquestionável liderança na região, por motivo mais do que óbvio. São os sindicatos do crime.
Esses pistoleiros estão muito longe de corresponder à imagem deles projetada pelos filmes sobre o faroeste norte-americano. Só andam armados quando estão em serviço e, ainda assim, a arma que usam não é deles: o mandante do crime é quem a fornece. Um pouco antes e um pouco depois do crime encomendado, o pistoleiro fica sob a proteção do “cliente”. Feito o serviço, volta para o seu trabalho rotineiro, como lavrador ou garimpeiro. Calcula-se que só na região de Imperatriz haja algo em torno de quinhentos pistoleiros profissionais.
Com o anúncio do plano nacional de reforma agrária, em maio de 1985, o mercado da “pistolagem”, como a atividade é conhecida no interior, entrou em alta, multiplicaram-se personagens como o capitão James. Um “trabalho” como o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles pode custar várias centenas de milhares de cruzados. Mas há pistoleiro disposto a “apagar” alguém por não mais de dez mil cruzados. Tudo fica mais caro, porém, quando torna-se necessário, além de matar, “queimar” arquivo. O assassinato de Fonteles já está nesse nível.
* Texto publicado originalmente setembro de 1987 no Jornal Pessoal, criado e escrito pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto; a publicação é bancada por doações de leitores
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