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A vida é dura para Kerim, de 14 anos. Brigado com o pai, a quem culpa pelo suicídio da mãe, Kerim passa o tempo vagando pelas ruas de Diyarbakr, uma das maiores cidades do sudeste da Turquia. Sua tia Sultan, que o cria, acaba de abrir um restaurante no mesmo terreno dos restaurantes da família. A concorrência é brutal. Na semana passada, o pai de Sultan quebrou as janelas do restaurante dela, furioso por Sultan ter permitido que sua amizade com uma pessoa de Istambul e sua atração por um professor nascido nos Estados Unidos se sobrepusessem à lealdade familiar.
Para sorte de Kerim, sua vida é, literalmente, ficção — uma das tramas de Ayrlk Olmasayd/Ben-U Sen (Eu queria que nunca nos separássemos, eu e você, em tradução livre), novela do Kanal D de televisão que entrou em cartaz no fim de março na Turquia. Hüseyin, o menino que interpreta Kerim, também tem sorte: o Kanal D paga-lhe 650 liras turcas (cerca de US$ 350) por mês. Até o ano passado, a vida de Hüseyin não era muito diferente da de seu personagem — tumultuada, miserável e condicionada pela geografia. Diyarbakr é uma cidade profundamente politizada, no coração da hostilidade entre o Estado turco e a minoria curda do país; é também a capital simbólica do Curdistão, uma região que abrange áreas da Turquia, Irã, Iraque e Síria.
Os curdos correspondem a 20% da população da Turquia e lutam por direitos constitucionais — língua, identidade e representação política — desde a fundação da república turca, em 1923. A resistência armada do proscrito PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) nasceu em 1978 em Diyarbakr. Um conflito entre culturas transformou-se em uma guerra total entre o PKK e as Forças Armadas Turcas. Esforços das duas partes por um mútuo envolvimento político frcassaram; até agora o BDP (Partido Paz e Democracia), que é legalizado, pró-curdo e goza de apoio local, tem pouca autoridade no Parlamento. Os 1,5 milhão de habitantes de Diyarbakr ficam isolados do oeste da Turquia; eles são menosprezados, caluniados, temidos. Agora eles estão na TV.
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Papéis negativos
As telenovelas são enormemente populares na Turquia, e estão entre os mais importantes produtos de exportação do país, tanto em termos de lucro quanto de relações públicas. As novelas tratam de assuntos sérios — o cotidiano dos presos políticos, o declínio da vida rural, o papel das mulheres – com o habitual tom melodramático e muitas insinuações.
Dentro dessa tradição, os curdos geralmente interpretavam papéis negativos — na melhor das hipóteses, como contrapontos caipiras aos personagens urbanos; na pior, como terroristas. Ayrlk Olmasayd propõe-se a ser a primeira novela turca sobre curdos a evitar caricaturas racistas. Diyarbakr foi melhorada na tela, e sua identidade dissidente foi moldada em um lar feliz e familiar.
“Vamos nos afastar da imagem política de Diyarbakr. Mostremos às pessoas que há amor aqui, que somos gente de verdade”, diz Handan Çapanolu, sentada na sala de aula do centro comunitário do Sümerpark, em Diyarbakr. Çapanolu dá aulas no centro para menores em situação de risco, e foi ela que encorajou Hüseyin, então seu aluno, a fazer um teste para o papel de Kerim. Ativista, Çapanolu incorpora o idioma curdo — outrora proibido, ainda marginalizado — em suas brincadeiras, motivando os alunos a manterem viva uma cultura que alguns consideram uma afronta ao Estado modernista turco.
Ayrlk Olmasayd começou a ser gravada em agosto de 2011, e alguns meses particularmente violentos se seguiram. Em outubro, militantes do PKK assassinaram 25 soldados turcos, e no final de dezembro o Exército turco matou 34 jovens contrabandistas curdos. Hoje, a paz com a população curda é o mais premente desafio da Turquia. Embora a violência e as violações dos direitos humanos sejam vistas como uma mácula sobre as autoridades do país e mesmo que o governo possa estar preparado para ir adiante com os curdos, milhões de turcos não estão. E esses turcos assistem ao Kanal D.
Novos astros
“Até agora, todos os filmes e programas de TV olham para nós de cima para baixo e tiram sarro de nós”, diz Abdullah Demirba, prefeito de Sur, que é parte da cidade de Diyarbakr. “Mas eles estão aqui para mostrar a verdadeira Diyarbakr.” Demirba espera que Ayrlk Olmasayd reabilite a imagem da cidade, e vai além: “Talvez o programa seja benéfico para a paz entre turcos e curdos”.
E há ainda o argumento do turismo. Apesar do seu apelo histórico, a reputação violenta de Diyarbakr afasta os visitantes — e as telenovelas turcas têm bons antecedentes em atrair turistas. Demirba também vê a novela como uma injeção de moral para os moradores, mais acostumados a serem vistos como terroristas do que como astros de TV. “Ela vai permitir que a nossa gente se veja no espelho”, diz Demirba. “Eles verão a sua própria realidade.”
Özlem Özsümbül, diretora de vendas e aquisições do Kanal D, deleita-se com o êxito da emissora e da sua mensagem. “Somos um país muçulmano, mas somos modernos. Temos amor, paixão e vingança. Usamos locações reais, homens de boa aparência, e moças bonitas sem véus.”
Na Diyarbakr do Kanal D, política é palavrão. O retrato mais brando representa uma grande melhoria em relação aos velhos estereótipos, mas, ao despolitizar Diyarbakr, o Kanal D pode confirmar um equívoco nocivo — o de que os curdos não têm nada do que se queixar —, e ao mesmo tempo ignorar algumas queixas importantes. A palavra “curdo” também é evitada. Ao descrever seus personagens, os atores são contratualmente obrigados a recorrer a eufemismos. “Digamos apenas que ela é de Diyarbakr”, disse uma protagonista. Ou, como coloca Özsümbül: “Não é da nossa conta”. Isso a deixa “desconfortável”, mas Özsümbül prossegue: “Não é uma questão curda. É a nossa história cosmopolita turca. Há 75 milhões de pessoas neste país. É claro que haverá drama”.
Tradução por Rodrigo Leite
* Texto publicado originalmente na revista indiana The Caravan
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