Livro ditado em parceria pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário traz registro da luta camponesa
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O gaúcho João Machado dos Santos, que morreu em 2010, virou um dos símbolos do movimento dos trabalhadores rurais, ao ganhar a alcunha de João Sem Terra. Ele é um dos personagem da relação de camponeses mortos, torturados e desaparecidos incluídos em livro editado em parceria pela Secretaria de Direitos Humanos e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e relançado durante o congresso da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), em março. Faz parte da iniciativa o projeto Memória Camponesa e Cultura Popular, com sede no NuAP (Núcleo de Antropologia da Política), que reúne pesquisadores de várias instituições, sob supervisão do antropólogo Moacir Palmeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A obra abrange inclusive período anterior à ditadura: vai de 1962 a 1985.
Também estão no livro nomes como o paraibano João Pedro Teixeira, a também paraibana Margarida Maria Alves, os paraenses Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, e Expedito Ribeiro, todos assassinados. Ou dom Pedro Casaldáliga, de Mato Grosso, ainda hoje vítima de ameaças. “É a memória viva da luta camponesa no Brasil, que não tem o devido registro histórico. Estamos tentando suprir essa falta”, diz o coordenador do projeto Direito à Memória e à Verdade da SDH, Gilney Viana.
Insistir para que o Estado reconheça a violência cometida contra trabalhadores rurais, com a devida reparação, foi uma das resoluções de encontro unitário realizado em agosto de 2012, com “trabalhadores e trabalhadoras e povos do campo, das águas e das florestas”. Ali também se decidiu pela criação de uma Comissão Camponesa da Verdade, formada por diversas organizações, com o objetivo comum de fazer com que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos inclua mais nomes na lista de atingidos pela repressão. “Só assim vamos tirar da invisibilidade a luta camponesa. Só assim os direitos serão restabelecidos”, afirma Gilney, lembrando que a grande maioria dos camponeses foi excluída da chamada justiça de transição, conceito que compreende mecanismos para atribuir responsabilidades por atos de violência e garantir reparações.
Segundo Gilney, de 1.200 camponeses mortos e desaparecidos, só 49 entraram na comissão especial — e, dos 49, apenas 27 foram reconhecidos. A comissão camponesa, que já se reuniu com a Comissão Nacional da Verdade — o primeiro encontro ocorreu em novembro —, quer incluir 602 nomes à lista de mortos e desaparecidos, entre líderes comunitários, sindicalistas, advogados e religiosos. “O camponês era meio 'invisível'. As leis foram pensadas mais na luta urbana”, observa o representante da SDH. Além disso, em muitos casos os rurais tinham maior ligação com a igreja do que com partidos políticos.
No primeiro encontro entre a comissão nacional e a comissão camponesa, os dois lados lembraram que o problema não acabou com o fim do período autoritário. “Todas essas formas de violência no campo, que tiveram seu apogeu na ditadura, ainda continuam”, lembrou Maria Rita Kehl, que na CNV coordena o grupo de trabalho sobre violações de direitos humanos ligadas à luta pela terra e contra populações indígenas. “Esses fatos deverão estar presentes nas nossas recomendações, que deverão estabelecer elos entre passado e presente, visando a não repetição desses fatos.”
Trata-se, como se diz no apresentação do livro, de uma violência com dupla face, “uma comandada diretamente pelo Estado, pela ação das forças policiais e do Exército, e outra, privada, expressa pela ação de milícias e jagunços a mando de latifundiários”. Uma espécie de “terceirização” da repressão.
* Texto publicado originalmente na Revista do Brasil
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