[ATUALIZAÇÃO IMPORTANTE: um dia após a publicação deste texto, Manning, 25, afirmou que é uma mulher. “Eu sou Chelsea Manning”, disse, pedindo também que, a partir desse momento, seja tratada como Chelsea e citada sempre com pronomes femininos. À exceção de um pequeno trecho em itálico acrescentado no 2º parágrafo, a Revista Samuel optou por não modificar o texto.]
“Meu Problema”: foto foi anexada a um email enviado por Manning a seu superior; semanas depois, foi preso
Apoie a imprensa independente e alternativa. Assine a Revista Samuel.
Mais de 3 mil pessoas já se ofereceram para cumprir parte da pena do soldado Bradley Manning nos Estados Unidos. Em diversas línguas, páginas e mais páginas de jornais e revistas foram preenchidas com manifestos contra a sua prisão. Na internet, entidades recolhem assinaturas pedindo que Manning receba o Nobel da Paz, prêmio ao qual já foi indicado várias vezes. A campanha encabeçada por celebridades, cujo vídeo já foi visto por centenas de milhares de pessoas, foi batizada de “I am Bradley Manning”. Todos são Bradley Manning. Todos querem ser Bradley Manning. Exceto, talvez, o próprio Bradley Manning. (E pouco se fala sobre isso.)
Bradley Manning na verdade gostaria de ser Breanna Manning, uma mulher [agora, sabe-se que o nome escolhido foi Chelsea Manning.]. Pelo menos é o que indica uma série de informações de fontes próximas ao ex-oficial norte-americano, de 25 anos de idade. Condenado a 35 anos de cadeia, o ex-analista do exército dos EUA, responsável por vazar 700 mil arquivos secretos ao Wikileaks, não se sentia bem em seu próprio corpo, o que o teria levado a procurar informações sobre como mudar de sexo e dar a seu corpo traços considerados femininos.
Em 21 de maio de 2010, Manning começou a se corresponder com o hacker Adrian Lamo — que viria a entregá-lo às autoridades apenas alguns dias mais tarde. Todo o histórico da conversa entre os dois foi repassado pelo hacker e publicado pela revista Wired (uma cópia idêntica também foi encontrada nos computadores pessoais de Manning, o que comprovaria a autenticidade do conteúdo). Além de detalhes dos vazamentos de Manning ao Wikileaks, informações pessoais e íntimas dos dois interlocutores — como alguns pormenores da relação de Manning com seu ex-namorado — tampouco foram poupadas.
(1:13:10 PM) bradass87: Eu não me importaria em ir para a prisão pelo resto da minha vida, ou ser executado, se não fosse pela possibilidade de ter fotos minhas… espalhadas por toda a imprensa mundial… como um garoto…
(1:14:11 PM) bradass87: eu não faço o menor sentido… esta CPU não foi feita para esta placa mãe…
(10:20:53 AM) bradass87: eu questionei o meu gênero durante vários anos… a orientação sexual foi fácil de descobrir… mas eu comecei a aceitar isso durante os primeiros meses da minha missão [no Iraque]
(10:33:58 AM) bradass87: já estou começando a dar a “Breanna” uma presença digital… contas no twitter e no youtube registradas no nome dela
Acompanhe a Revista Samuel pelo Facebook e Twitter.
I've entered a transitional phase of my life. Though, for now I'm back on the grid.
— Breanna Manning (@bmanningfm) May 25, 2010
Em julho do mesmo ano, a New York Magazine publicou um longo e detalhado perfil de Manning. Entre os entrevistados, um terapeuta anônimo que afirma ter falado com Manning pela internet sobre o assunto.
“Bradley sentia que era uma mulher. Ele estava muito decidido sobre isso. Ele realmente queria fazer cirurgia.”
Rosto de Manning (“herói pacifista americano”) em cartaz: “americanos exigem um julgamento justo e público”
Muitos dos colegas militares de Manning sabiam de seu alter ego feminino. Conforme testemunhos nas primeiras audiências inquisitórias, em dezembro de 2011, investigadores do exército afirmaram ter encontrado, durante uma busca no quarto de Manning em Bagdá, informação médica sobre tratamento hormonal para pessoas com transtorno de identidade de gênero. Em abril de 2010, um mês antes de ser preso, Manning enviou um email a um de seus superiores dizendo que era transgênero. Em anexo, havia uma foto sua com maquiagem e vestindo uma peruca loira. No campo ‘assunto’ da mensagem enviada por Manning lia-se o título “Meu Problema”. Veja alguns trechos:
Esse é o meu problema. Eu tive sinais disso por muito tempo. (…) Achava que uma carreira militar faria com que eu me livrasse disso. (…) Me esforcei muito, muito mesmo para me livrar disso, colocando-me em situações onde isso fosse impossível. (…)
Não sei mais o que fazer, e a única ‘ajuda’ que me parece disponível é punição severa e/ou se livrarem de vez de mim. (…)
Como disse, não sei o que fazer nem o que vai acontecer, mas eu sinto que não estou *aqui* mais, e todos estão preocupados comigo e com medo de mim. Me desculpem.
Qual nome e quais pronomes?
O que justifica, então, a dificuldade da mídia (deste texto, inclusive) em tratá-lo com seus nome e pronomes femininos?
Em primeiro lugar, Bradley Manning está preso há mais de três anos. Não há declarações públicas diretamente da sua boca que confirmem o que foi dito por terceiros. Além disso, os próprios advogados de Bradley Manning continuam a se referir ao cliente no masculino.
Também é bom lembrar que as declarações de Manning foram feitas em ambiente exclusivamente privado e em tom de confissão, pela empatia que tinha com seus interlocutores desconhecidos — Manning também se correspondeu sobre o assunto com Zachary Antolak, uma jovem ativista gay conhecida na internet.
Tomar consciência da incompatibilidade do próprio gênero com o que é comumente associado à constituição anatômica do próprio corpo pode não ser um processo simples para algumas pessoas — ainda mais quando envolve intervenções médicas definitivas. “Bem como muitos outros que estão indecisos, Manning usou a internet como um espaço de experimentação do assunto”, observa a escritora Rainey Reitman, membro do Comitê de Apoio a Bradley Manning. Neste momento, é impossível saber qual foi a sua decisão final.
Leia: NSA espiona a internet inteira, menos os seus próprios funcionários
Por que vazar as informações?
O assunto da identidade sexual de Manning permaneceu um bom tempo como uma espécie de “segredo aberto” nos EUA. Voltou à tona quando tiveram início as primeiras audiências do processo judicial do ex-analista. Foi a própria defesa de Manning que trouxe a questão ao tribunal. Uma estratégia jurídica (transfóbica e baixa, diga-se) dos advogados tentando fazer passar a tese da “instabilidade mental” do cliente, e, com isso, conseguir alguma vantagem na pena. Para obter uma sentença mais branda, parece que vale de tudo: até pedir desculpas à “nação” diante da juíza.
Mas será que faz sentido relacionar a identidade sexual de Manning com os vazamentos para o Wikileaks? Se o oficial é mesmo transgênero, não está sozinho. Pesquisas recentes indicam que 20% da população trans adulta dos EUA serviu o exército, o dobro do restante da população do país.
“Não podemos dizer que ele fez ou deixou de fazer isso porque é gay ou transgênero. Ele fez isso porque é um bom soldado. Foi íntegro”, comenta o tenente Daniel Choi, dispensado do exército por ter se declarado gay.
Numa das etapas finais do julgamento, Manning leu uma longa carta contando um pouco das motivações que o levaram a vazar as informações.
Eu acreditava que se o público, especialmente o norte-americano, pudesse ver aquilo, haveria um debate sobre as forças armadas e sobre a nossa política externa em geral. Esse debate poderia levar a sociedade a reconsiderar a necessidade de combater o terrorismo enquanto ignoramos a situação humana das pessoas que enfrentamos todos os dias.
Nesse mesmo depoimento — cujo áudio vazou na internet —, Manning descreve também como reagiu ao ter acesso ao vídeo que se transformaria, mais tarde, no maior trunfo do Wikileaks. Conhecida como “Collateral Murder”, essa peça audiovisual talvez seja a responsável por tornar Assange e sua agência antissigilo o que são hoje. No material, há imagens do ataque aéreo de um helicóptero Apache com o áudio da conversa entre os militares envolvidos. Entre as vítimas estavam dois funcionários da agência Reuters confundidos com combatentes. Manning ficou “enojado” com o sadismo dos militares.
Os comentários feitos pela equipe responsável pelo bombardeio me perturbaram. Eles pareciam estar se deliciando com aquilo. Tinham sede por sangue. Desumanizaram os indivíduos em que atiravam, e pareciam não ter o menor apreço pela vida humana. Pareciam crianças torturando formigas com uma lupa. Quando descobriram que havia crianças, não demonstraram o menor sinal de remorso. Pelo contrário, diziam: ‘A culpa é deles por trazer crianças ao campo de batalha’.
O vídeo acima (com legendas em inglês) foi editado com imagens do notório “Collateral Murder” e trechos do áudio vazado do tribunal (ouça aqui a íntegra): a voz do próprio Manning lendo a carta na corte marcial
Leia também: A gaiola dos gêneros
Tortura transfóbica
A identificação sexual de Manning não afetou os vazamentos dos documentos, mas é bem possível que tenha influenciado as péssimas condições em que ficou aprisionado. Durante o seu cárcere em Quantico, Manning era submetido a um confinamento de 23 horas por dia na cela solitária, sem direito a travesseiros nem lençóis. Diariamente, Manning também teve que enfrentar cenas humilhantes, como permanecer nu na frente dos guardas.
Se Manning é uma pessoa transgênera — e tinha desconforto em ser percebido “como um garoto” —, submeter-se a esse tratamento degradante de nudez forçada constituiria uma forma de tortura, de acordo com os padrões da APA (Associação Americana de Psicologia).
Na esfera militar, é notório que a cultura da transfobia e homofobia (e também da misoginia) impera e determina as relações pessoais. Basta lembrar, por exemplo, que a norma do “não pergunte, não conte”, proibindo homossexuais assumidos de se alistarem, permanecia em vigor até poucos anos atrás.
Mas e na sociedade civil como um todo? O tratamento e o engajamento público teriam sido diferente se Manning fosse abertamente transgênero? A pressão da opinião pública e diplomática, que forçou as autoridades norte-americanas a transferir Manning para a prisão de Fort Leavenworth (em abril de 2011), com melhores condições, teria sido tão forte? O tratamento degradante que Manning recebeu em Quantico — semelhante ao que muitas outras pessoas transgêneras recebem no país — será investigado? E se Manning, consciente de sua identificação como mulher, não quisesse mais ficar encarcerado entre homens e passasse a pedir por um presídio feminino? Herói e trans são termos mutuamente excludentes? Breanna também mereceria uma medalha por seus atos? Haveria plaquinhas, botons, cartazes e camisetas do mesmo rosto de Manning, só que com batom, rímel, blush e longos cabelos?
Todos seriam Breanna Manning?
NULL
NULL