Dima Bushkov
Jovens em festa em Kaliningrado, enclave russo entre a Polônia e a Lituânia
No McDonald's da Praça Púchkin, centro da capital russa, o fim do mundo transcorre lentamente. Sentada, prestes a morder um Big Mac preenchido com suspeitos tomates verdes, eu me transporto ao passado.
Aqui mesmo, no dia 30 de janeiro de 1990, ocorreu um acontecimento que marcaria o fim do século XX. Desde a madrugada daquele dia, cinco mil russos esperavam, usando seus melhores trajes de gala, a abertura da primeira sucursal de fast-food ocidental no país.
“Os hambúrgueres da liberdade”, chamavam-nos todos os que queriam experimentá-los. Qual é o problema de comer um McTrio enquanto o país cai aos pedaços? No fim da noite daquele dia, 35 mil paladares virgens já haviam provado as maravilhas da globalização e, desta forma, o mundo ficou sabendo que Ronald McDonald vencera Marx e Lênin.
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Do meu lado, o barulho de Natasha Saveyeleva me traz de volta à realidade. Esta siberiana de olhos azuis mergulha uma batata frita no queijo artificial amarelado e, logo em seguida, no molho barbecue. Sorri com ironia. “Como é possível que tenham feito filas para comer ISTO?”, diz, com nojo, com o acento posh (chique) que caracteriza as garotas moscovitas.
Com 23 anos, Natasha mal consegue explicar. Hoje o McDonald's tem cerca de 200 lojas na Rússia – 80 delas em Moscou – e ninguém espera mais de 10 minutos para fazer um pedido.
Tradutora do inglês e do espanhol, Natasha faz parte da incipiente classe média russa, que emigrou da província para as cidades a fim de estudar, trabalhar ou simplesmente escapar do tédio dos povoados; que é caracterizada por seu fervoroso consumismo; que viaja para as costas mediterrâneas no verão, usa roupas de marca e se pretende uma mina de top models e milionários.
Diferentemente do que ocorria com seus pais, para Natasha o “sucesso” não significa adquirir uma datcha (casa de campo) ou um automóvel, como na velha União Soviética, onde apenas os 3% mais privilegiados da população poderiam pagar por estas coisas.
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Natasha quer ganhar mais de 50 mil rublos, o salário médio de um profissional liberal na cidade, para viajar muito, comprar uma casa ou ter um namorado no exterior, constituindo família o mais rapidamente possível. A ideia de obter uma boa educação deve ocupar o quinto lugar na lista de suas prioridades, mas comprar novas tecnologias, cosméticos e roupas de marca é irresistível.
Ela é, e se mostra orgulhosa de sê-lo, uma típica representante da primeira geração de “novos russos”, os que não nasceram na URSS e que veem a foice e o martelo como apenas um adorno na estação de metrô.
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No metrô de Moscou, é preciso deixar de admirar a decoração de palacete e acompanhar o ritmo dos demais. Os empurrões não admitem demoras, todos querem chegar até a electrichka, o trem metropolitano que os levará até a periferia da cidade, onde a maioria pode pagar por uma moradia “a preço de russo” ou viver nas datchas. Moscou, com seus 11 milhões de habitantes, já é uma das capitais mais caras do planeta; os aluguéis no centro nunca são inferiores a cerca de mil euros mensais.
Há seis anos, Natasha deixou sua cidade natal, Novy Urengoy, no distante oriente siberiano, para estudar Línguas e Humanidades na Universidade dos Povos de Moscou. Seus pais, uma professora de matemática e um guarda florestal que souberam obter rendimentos a partir de suas economias, compraram um apartamento em Teply Stan, uma área urbana a sudoeste da cidade. A área também está cheia de enormes unidades habitacionais, centros comerciais e rotas de transporte que levam até os outlets das marcas da moda e as unidades das periferias.
Nestas unidades habitacionais, um novo tipo de russo está sendo formado. Nelas, vivem já 105 dos 145 milhões de habitantes do país. Para eles, ter uma datcha ou um automóvel já não é sinônimo de “sucesso”; desejam agora comprar uma casa no exterior, viajar e aprender novas línguas, mas, sobretudo, viver em um lugar ensolarado, ainda que “de vez em quando se volte à pátria”.
Fartos da burocracia e das temperaturas extremas, uma onda de jovens russos busca no exterior as oportunidades que não veem em seu país.
“Vejo um monte de gente com talento, mas não vejo coisas boas na Rússia. Não há dinheiro para aumentar as pensões, mas apenas para gastar com o fortalecimento da imagem da Rússia diante do mundo. Talvez eu seja muito ingênua, mas não sei qual seria meu futuro lá”, diz Olya Kozlova, editora de 34 anos que há dois anos chegou à Cidade do México.
Nastia Nikonova, ex-professora de jardim da infância, também deixou tudo para se mudar para a Austrália. Ela o diz mais claramente: “Temos o poder de criar nosso próprio futuro e muitos de nós não queremos que este futuro seja na Rússia. Muitos de meus amigos deixaram ou estão planejando deixar o país, eu não sou a exceção”.
Ainda que sua ambição seja deixar o país, ela não passa dificuldades. Seu salário mensal é de 30 mil rublos (cerca de 900 dólares), bem mais do que os 150 rublos mensais (94 dólares com o câmbio de 1993) que se ganhava na era soviética.
The Korean Olympic Committee
Abertura das Olimpíadas de Inverno de Sochi, em fevereiro de 2014: orgulho do passado e incerteza do futuro
Se quisermos saber como eles se veem a si próprios, teremos que falar com Olga Schedrina, jornalista esportiva. “Nascemos com liberdade, mas não sabemos o que fazer com ela”, explica Schedrina quando descreve o conformismo de sua geração de vintões.
Muitos acreditam, complementa Olga, que a liberdade dá a possibilidade de não ter metas na vida. “Vivem o presente sem pensar muito no futuro, porque já sabem que o regime político e a economia podem dar uma volta de 180 graus em um único dia”.
Esta é a única certeza em um país que sobreviveu a tudo: guerras, inundações, acidentes nucleares e até mesmo quedas de asteroides. Sempre preparada para uma mudança inesperada, a sociedade russa cumpre, conformada, seu karma histórico. “Pode-se dizer que aqui não se vive, apenas se sobrevive”, dizem muito seguramente aos seus visitantes.
Olga, de 27 anos, tem uma ascendente carreira como apresentadora de um programa esportivo em um canal russo em espanhol, mas apesar de passar o verão ano após ano nas ilhas gregas, dirigir um luxuoso BMW e viver em seu próprio apartamento reformado, inveja a segurança que tinham seus pais na URSS.
“Eles estavam seguros em relação ao seu futuro, podiam economizar dinheiro, o Estado dava gratuitamente assistência médica e outros bens. Nossos pais apreciavam muito mais do que nós os valores familiares, são mais intelectualizados, mais modestos em seus desejos. Agora viajamos muito, lemos pouco, estudamos menos e nos ocupamos com ganhar muito dinheiro em pouco tempo”.
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Não é a única que acha isto. Seu cinegrafista de 33 anos, Alexei Kulikov, comenta: “Eu só consigo planejar o futuro para daqui a dois ou três meses, depois disso, vejo uma névoa. Para dizer a verdade, nós vivemos o dia de hoje sem saber o que vem amanhã. Sempre temos a sensação de que algo ruim e inesperado vai ocorrer. Não se pode contar com o Estado para que melhore nossas vidas, temos que fazer isso com nossos próprios recursos”.
A falta de certezas e a desorientação que a transição brusca para o capitalismo deixou é uma das marcas geracionais da nova sociedade russa, e é comum que os que nasceram nos anos noventa se considerem pessoas “sem”: sem aspirações claras, sem medo do sistema, sem confiança, sem altos valores espirituais, sem futuro certo.
Buscam certezas e lutam para que a Rússia siga seu próprio caminho. “Continuaremos nos opondo aos Estados Unidos, manteremos nossa política e nossos interesses. Lembramo-nos de Lênin e do Estado sólido e ameaçador”.
Assim, presos entre o orgulho do passado e a incerteza do futuro; divididos entre nostálgicos e pragmáticos, os novos russos esperam sem medo.
Sabem de antemão que sobreviverão a outro novo fim do mundo.
Tradução: Henrique Mendes
Matéria original publicada na Emeequis, revista semanal mexicana sobre cultura, política e sociedade.