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Quando foi aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que o funk carioca era patrimônio cultural do estado, a reação mais comum foi de pessoas questionando a decisão. Aliás, falar de funk sempre gera certa discórdia, ainda mais na internet. Mas este ano o famigerado gênero realmente explodiu, dentro e fora do computador. Quando alguém ia imaginar que uma faixa de funk seria tema de abertura de novela?
Renato Barreiros observou toda essa mudança bem de perto. Ele foi subprefeito do distrito Cidade Tiradentes, em São Paulo, e percebeu como o funk paulista se formou, se consolidou e hoje está se transformando. Em 2012 lançou o documentário “Funk Ostentação – O Filme”, abordando esta nova identidade do funk que surgia no estado e como ela foi bem aceita até por classes sociais mais altas por não falar de temas comuns da vertente carioca – crime, drogas, sexo e favela. Agora Renato está lançando o documentário “No Fluxo”, em que acompanhou por dois meses os bailes de rua da periferia e os novos MCs que tocam nestas festas.
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O fluxo é um baile funk espontâneo, feito na rua com carros equipados com caixas de som potentes e a boa vontade da galera que buscava um jeito de relaxar sem gastar tanto dinheiro. Naturalmente, há reclamações dos fluxos por conta do som alto. “Na verdade, a polícia tá mais ou menos desde 2008 jogando bomba e tentando dispersar o fluxo de uma maneira que vai mais pro embate, e isso não funcionou, né?”, questiona Renato. Ele relata que Secretaria de Igualdade Racial da Prefeitura de São Paulo está tentando organizar fluxos em espaços como o Autódromo de Interlagos, mas o forte é fazer a coisa toda acontecer na rua. O foco do documentário,inclusive, é outro: em “No Fluxo”, o que interessa é entender a importância desta nova onda do funk.
Leia trechos da entrevista com Renato a seguir e assista ao documentário na íntegra.
VICE: Como você enxerga a história do fluxo? Vi que você foi subprefeito da Cidade Tiradentes e queria saber como acompanhou tudo isso.
Renato Barreiros: A gente acompanha desde muito tempo. Acho que agora ele ganhou uma força muito grande. O fluxo é uma questão de toda grande cidade hoje, principalmente nos bairros de periferia você não tem locais para as pessoas se divertirem. Então as pessoas acabam indo pra rua e fazendo isso de uma maneira não muito ordenada. A gente fez um projeto em 2008 pra que não houvesse mais na rua, tentando estipular um horário. A gente fazia alguns bailes na rua e ia até 22h ou 23h. Enfim, a gente tentava de alguma maneira contornar isso. Mas ele vem de muito tempo, e o problema é que embora o poder público tenha uma visão mais social disso hoje, uma visão menos policialesca, ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva pra isso.
A frequência da ida da polícia nos fluxos diminuiu hoje em dia ou ainda é como rolava antes?
Na verdade, a frequência da polícia chegando já espanta as pessoas. Por exemplo, a gente estava em um dos bailes lá no Jardim Fontális, na Zona Norte, e não conseguimos filmar porque a polícia chegou. Aí a molecada falava “chegou a polícia” e corria de um lado pro outro, chutava bomba… Você vê que pra galera que é mais velha não afeta tanto, mas pra molecada… Os moleques já estavam fazendo farra. Na verdade, a polícia tá mais ou menos desde 2008 jogando bomba e tentando dispersar o fluxo de uma maneira que vai mais pro embate, e isso não funcionou, né? Então acho que até a própria Polícia Militar de São Paulo não tem mais essa visão de “chegar chegando”. Mas isso acaba caindo na responsabilidade da polícia porque os outros órgãos não estão indo atrás.
Agora aqui em São Paulo, a Secretaria de Igualdade Racial da Prefeitura tá organizando alguns fluxos grandes. O primeiro foi no Autódromo de Interlagos, e são iniciativas legais. Agora quando sobra pro morador ver o fluxo e ligar pra polícia acaba acontecendo isso, a PM vai lá e vai agir do jeito que ela age. Mas não quis focar isso no documentário. Essa coisa da polícia e do barulho eu não mostro porque já tem um monte de reportagem que fala de drogas, de polícia e assuntos assim. Tento mostrar como a maioria da molecada vai lá pra se divertir e que não é uma coisa que os meninos tão fazendo pra perturbar alguém ou que fazem isso porque querem usar drogas. É um local de diversão mesmo, inclusive acho que nesses bairros menores o fluxo se assemelha muito ao coreto da praça nas cidades do interior, onde as pessoas se reuniam nos finais de semana. Lógico que hoje os meninos têm um som muito mais alto, mas os meninos e as meninas do bairro começam a namorar lá.
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E quanto tempo você frequentou os fluxos pra produzir esse documentário?
Cerca de dois meses.
Foi neste ano mesmo que você gravou?
Sim, é super recente. Todos os meus documentários eu tento filmar rapidinho e já editar e lançar. O documentário é curto porque a intenção é exibir só na internet, e eu acho que a gente não pode perder o momento. As coisas hoje são muito mais ágeis, então tinha que ser rápido, ou era ou não era.
Você acha que os bailes de salão de certa forma “esvaziaram” os bailes de rua e que agora tá acontecendo o processo inverso?
Ah, com certeza. A gente vê que muitos bailes de salão que existiam antes fecharam. Agora eu acho que existem dois fatores: na época em que os bailes de salão bombavam aqui na periferia foi a mesma época em que estourou o funk ostentação, lá em 2010, 2011. O Brasil tava com uma economia muito boa, as pessoas estavam com dinheiro no bolso, então pagar pra entrar num salão e consumir lá dentro, porque a bebida é sempre mais cara dentro da danceteria, era acessível. Agora como a gente não tá numa época tão próspera economicamente, o que acontece é que as pessoas acabam se divertindo na rua porque é mais barato. Então o menino compra uma bebida lá na vendinha e vai pra rua. Até por isso que o funk ostentação não é tocado, o fluxo não toca funk ostentação. Você tem novos MCs e um novo funk em São Paulo que “engoliu” esse movimento do funk ostentação.
Alguns entrevistados falaram que o fluxo é mais disciplinado que o baile de salão. Você acredita nisso? O que eles querem dizer quando falam que é mais disciplinado?
É porque as pessoas se conhecem, né. É todo mundo do bairro, da vila.
Qual foi a maior diferença entre produzir o “No Fluxo” e produzir o “Funk Ostentação”?
A verdade é que o Funk Ostentação era muito organizado. Tinham os MCs que faziam clipes, os vídeos estavam todos na internet, tinham os produtores. É um funk mais empresarialmente organizado. E os fluxos não, eles não são eventos. Nos fluxos, a galera marca pelo Facebook, aparece todo mundo lá, mas não tem um “dono” de fluxo, é uma coisa muito anárquica. Também demonstra um pouco essa coisa das redes sociais e da juventude não se organizar em sindicato ou associações. Um cara teve a ideia, postou no Facebook, o outro curtiu, vai lá também, compartilha e eu acho que essa é a grande diferença que tem no fluxo. Eles criam muito evento no Facebook que bomba de gente, eles criam muito evento pelo WhatsApp também. O que acaba acontecendo é que o WhatsApp é o boca-a-boca de hoje em dia.
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E os caras explicaram o porquê do nome “fluxo”?
Não, ninguém soube dizer. A mídia joga como “pancadão”, mas ninguém lá fala assim. O fluxo acabou virando uma gíria não só pra isso, o “fluxo” é onde a galera tá indo, é o lugar bacana, onde a coisa tá bombando. Virou um “tá bombando”.
Qual tipo de funk toca mais nos fluxos? É o “Passinho” ou ressuscitaram estilos como o proibidão e a putaria?
Olha, tem muito do que os caras chamam de funk putaria, tipo MC Pedrinho e MC Livinho. É impressionante o baile inteiro tocando música dos dois. Tem bastante “Passinho do Romano” também; MC Bruno IP e MC Crash são nomes fortes. E do proibidão toca mais o MC Bin Laden. O Bin Laden é um clássico, essa coisa do lança perfume é muito forte, tem a música do “Lança de Côco”, enfim… Esses são os hits.
E o ostentação não costuma tocar por conta da falta de identificação com o tema ou é um lance de ir “contra” isso dentro do fluxo?
A galera do fluxo tocou o ostentação durante muito tempo, então meio que já encheu o saco. Outra coisa é que o momento econômico no Brasil é outro. Na época em que bombou o funk ostentação as pessoas tinham dinheiro. Isso foi naquele final de governo Lula, quando aconteceu o aumento de renda da classe C e só se falava nisso. Então era um momento em que a galera tava com grana no bolso e queria falar disso. Hoje em dia é outra realidade, não é que a gente esteja em uma “mega crise”, mas não tá todo mundo super feliz achando que o país vai às mil maravilhas, entendeu? Então isso reflete também na cultura, e aí voltou-se ao que era antes.
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Teve uma parte do No Fluxo que você mostra como rolam as paqueras nos bailes, e vários caras deram opiniões. Mas eu queria saber o que você observou do comportamento da mulherada nos fluxos?
Tem muito grupo, parece até cidade de interior. Vão os grupinhos formados, aí o dono do carro leva 30 amigos com ele, todo mundo se encontra lá e fica em torno do carro, aí elas chegam lá. Estes carros são meio que os novos camarotes, porque todo mundo fica por lá e tem bebida no porta-malas.
Tem alguma menina funkeira que tá presente nessa cena, que tem uma imagem forte dentro dos fluxos?
Não, nessa nova onda de funk não. Teve uma menina que bombou aqui em São Paulo, a MC Pikena, não sei nem se ela é “parente” dos MCs Pikeno e Menor. Mas ela estourou lá atrás, em 2009, com músicas de “recalcada”, sabe? E ela era menor mesmo, menor de idade e pequena. Ela é a única que eu me lembro que estourou de verdade em São Paulo.
Alguns dos entrevistados começaram a viver do fluxo, trabalhando com venda de bebidas e lanches lá. O que você acha desse tipo de negócio que surgiu nos fluxos? Eles ainda passam muito perrengue por causa da polícia?
Uma parte ainda passa perrengue, como os ambulantes e os vendedores nos carros. Essa parte passa porque a polícia ainda é muito presente em alguns fluxos, em outros nem tanto porque depende das reclamações. Mas a galera realmente vive disso, sabe os locais e os dias em que acontecem, o que vende mais, então tem uma economia surgindo daí. Acho que a grande questão é regularizar isso aí. Lógico que precisa levar em conta o barulho e tudo mais, mas tem gente que vive daquilo porque vende hot dog, cerveja, e eu acho legal que eles preparam os carros, você vê que eles colocam LED em volta…
Pois é, eu vi que tem gente que gasta oito mil reais pra pôr tudo isso no carro, pra ficar bacana e conseguir vender bebida e comida.
É! Ou ele faz um carrão ou o cara põe um baita som num carro e aí no segundo carro ele vende as coisas. O problema todo do Brasil é a burocracia que existe no país, mas você vê uma livre iniciativa muito forte. As pessoas tão procurando oportunidade, tão precisando de dinheiro e tentam correr atrás, então é muito bacana de se ver. Tem muitas famílias que já são mais velhas e que vão pro fluxo viver disso. E é um trabalho honesto, não é que lá vende droga, eles vendem bebida.
Você comentou antes sobre as reclamações. Quem reclama mais, o pessoal de fora que passa pelo barulho ou o pessoal “de dentro” e ao redor?
O problema todo é que não tem um lugar específico pra fazer isso, então acaba sempre no meio de uma rua com um conjunto habitacional do lado. Lógico que o pessoal não consegue dormir, mas ninguém faz isso de sacanagem, as pessoas fazem porque querem se divertir. A grande questão é que não existe um lugar pra fazer o fluxo. A Prefeitura tá tomando algumas medidas agora pra fugir um pouco dessa coisa de “a solução é polícia”. Acho que isso tá melhorando, mas ainda falta caminhar bastante.
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Considerando que as gravações foram feitas todas na rua e durante as festas, quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou pra fazer o No Fluxo?
Tem uma coisa do fluxo e das pessoas que estão lá de achar que sempre que tem gente filmando é com câmera escondida pra falar de polícia, pra falar de droga. Então as pessoas te veem com a câmera e já acham assim “pô, lá vem você falar mal aqui de novo”.
E desconfiaram de você?
Eu sempre conversava antes com as pessoas que entrevistava, mas muita gente vinha e perguntava “e aí, você vem aqui pra mostrar o que? É pra falar mal?”. Eu respondia “não, só tô aqui porque eu quero fazer um documentário”, exatamente pra colocar essa parte em discussão. Não tô negando que exista droga ou falando que lá vai às mil maravilhas, não é isso. Tanto que eu não falo de barulho, não falo de polícia, não falo de droga. E até pra não entrar nesse conflito, eu tenho imagem de polícia chegando no fluxo e a gente tendo que sair correndo. Mas não é isso que eu queria, isso aí você vê no Datena. O que eu queria mostrar era o seguinte: olha o quão importante isso aqui é pra esses meninos.
Uma coisa que eu acho legal acrescentar nessa discussão é sobre as UPPs do Rio de Janeiro. Quando elas foram instaladas, começaram a proibir os bailes funk. Isso criou uma rejeição enorme à UPP no Rio de Janeiro porque o baile funk é muito importante, a diversão é muito importante pra essas pessoas. Então o fluxo fica muito menosprezado, parece que é tipo “ah não, no fluxo eles usam droga”. E não é assim. Os meninos passam a semana inteira falando da menina com quem eles querem ficar, olhando a menina que ele gosta na escola pra tentar conversar com ela no fluxo, vendo lá no evento do Facebook pra conferir se ela confirmou presença. O cara trabalhou a semana inteira e quer sair pra beber, curtir um som, encontrar com a galera.
O que eu tentei fazer com o documentário, e é exatamente por isso que não coloco a polícia no meio, é pra mostrar que existem problemas, mas um monte de gente aí só quer se divertir e curtir. E aí, como é que a gente faz?
Assista ao documentário “No Fluxo” na íntegra a seguir:
Matéria original publicada na Vice Brasil.