Divulgado no último dia 10 de dezembro com o nome de 377 agentes do Estado acusados por violações de direitos humanos e recomendações para a revisão da Lei de Anistia, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade foi considerado uma “surpresa positiva” por Amelinha Teles, presa e torturada no ano de 1972 por conta de sua atuação na imprensa clandestina que se opunha ao regime militar instalado no Brasil.
“O relatório é um documento importante porque é de uma comissão de Estado. A tortura foi reconhecida como política de Estado, estrategicamente elaborada pelo mais alto posto do Poder Executivo, que controla os demais organismos para exercer o controle, a perseguição, o sequestro, a tortura, o assassinato. Tudo isto fazia parte de uma estratégia política do Estado para eliminar opositores políticos. Isto está no relatório de uma forma extremamente esclarecedora”, afirmou a militante.
O que não agradou, no entanto, foi o discurso da presidente Dilma Rousseff na solenidade em que recebeu o documento. “O relatório produzido pela comissão conseguiu avançar mais do que a posição da presidenta. A presidenta está muito acuada. A Dilma deveria ter pedido a punição dos torturadores. Está lá a lista dos torturadores, que o próprio Estado brasileiro está mostrando. Esse relatório é de Estado. Não é relatório de uma ONG, de um movimento social”, criticou Amelinha.
Quando recebeu o relatório, Dilma Rousseff afirmou que “verdade não significa revanchismo” e, apesar de afirmar que o governo federal iria “se debruçar sobre as recomendações do relatório”, sinalizou, em referência a Lei de Anistia, que os “pactos políticos que nos levaram a democracia” deveriam ser valorizados.
Roberto Stuckert Filho/ Presidência da República
Amelinha questiona postura de Dilma sobre Lei da Anistia
“Que pactos políticos são esses? Quem é que fez pacto político com torturador? A anistia não é pacto, é fruto de uma luta em busca da Justiça. São anistiáveis quem lutou contra a ditadura e não quem a defendeu”, critica Amelinha. “Uma presidenta da República, eleita pelo povo pela segunda vez, que conhece na pele as ações nefastas da ditadura, poderia ter avançado no discurso e pedido a punição, para que o Estado brasileiro concluísse essa fase da verdade e acessasse a Justiça no sentido de punir (os torturadores) por meio do devido processo legal”, completou.
Supremo
Um dos pontos de maior destaque do relatório final da CNV é a recomendação do afastamento dos efeitos de Anistia para torturadores e agentes do Estado que tenham cometidos crimes contra os direitos humanos na ditadura. O pedido feito pela CNV levantou discussões, pois em abril de 2010 o STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou, por 7 a 2, uma ação então proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) com o mesmo objetivo.
“O Supremo vai ter que mudar de posição. Para mim não há dúvida. Vai ter que mudar de posição, porque senão vai ficar obsoleto, sem razão de existir. Se não está ali para defender a Justiça, para que existe um Supremo? A Corte custa caro para o Estado e é formada por ministros nomeados pela Presidência da República, que nem fazem concurso. Eles têm que melhorar seu desempenho. Se for muito na contramão da História, eles acabam criando oposições a eles”, afirma Amelinha.
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Apesar da decisão da Corte em 2010, atualmente a ação proposta pela OAB ainda está no Supremo. Isto porque a Ordem dos Advogados do Brasil interpôs embargos declaratórios com efeito modificativo contra a sentença. O recurso ainda não foi apreciado pela Corte.
Recentes declarações de ministros da Suprema Corte deram uma prévia do que pode ser o novo embate sobre a questão no plenário da Casa. Enquanto o ministro Marco Aurélio Melo, que participou do julgamento de 2010, declarou que a Lei de Anistia é uma “página virada da história”, o mais novo membro da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o tribunal deve voltar a avaliar a validade da lei por conta da posterior decisão emitida pela CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) em sentido contrário à sentença do Supremo.
Em novembro de 2010, a CIDH decidiu que o Brasil deveria investigar crimes contra humanidade cometidos por agentes do Estado durante a ditadura e exigiu processos e punições contra os envolvidos nas violações de direitos humanos. Esta sentença também foi indicada pelo relatório da CNV como uma das razões para a revisão da Lei de Anistia.
“Independente da posição deles (STF) o Brasil tem que cumprir a sentença. Os tratados internacionais, que são ratificados pelo Estado brasileiro, são incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Portanto, essa decisão do Supremo, para mim, já é superada. Eu penso que um jurista sério até desconsidera essa decisão”, ressalta Amelinha.
Segundo a militante, a dificuldade em avançar nas discussões sobre a revisão da Lei de Anistia se dá pelo fato de muitas instituições do Estado não terem se adaptado ao regime democrático.
“As instituições não mudaram, inclusive as Forças Armadas. O grande problema da CNV para ter um relatório mais adequado foi que as Forças Armadas se recusaram a dar qualquer informação sobre o período da ditadura. Ou seja, ainda prevalece o comando da ditadura. Um dos itens da sentença da CIDH é de que a Instituições devem mudar, devem se voltar aos princípios dos Direitos Humanos”.
‘Foda-se, sua terrorista!’
Um dia antes da divulgação do relatório final da CNV, Amelinha e sua família conquistaram significativa vitória no STJ (Superior Tribunal de Justiça). A corte rejeitou recurso interposto pela defesa de Carlos Alberto Brilhante Ustra e confirmou decisão anterior do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que havia declarado o coronel reformado do Exército como torturador da família Teles.
Ustra chefiou o DOI-Codi entre setembro de 1970 e janeiro de 1974. O ex-militar comandava o órgão da repressão no momento da prisão de Amelinha e seu marido, César Augusto Teles, no dia 28 de dezembro de 1972, quando então foram encaminhados ao DOI-Codi. Carlos Nicolau Danielli, companheiro de militância, foi preso junto com o casal. Ele não resistiu às agressões impostas pelos torturadores e morreu na prisão.
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“Quando nos levaram, de imediato nos deixaram em um pátio e cercaram o Danielli e o César, dando socos, pontapés. Eu fiquei mais ou menos fora deste espancamento. Então eu me dirigi a ele (Ustra), porque eu vi que ele é que mandava, ele gritava, dava ordens. Eu disse: ‘como é que o senhor deixa isso acontecer aqui?’. Ele me pegou e, com as costas das mãos, me deu um safanão no rosto que me jogou longe e gritou: ‘foda-se, sua terrorista!’”, relata Amelinha.
A militante conta que após a agressão, Ustra deu a ordem para que ela também fosse agredida. “Aí me agarraram e me arrastaram para uma sala de tortura. O Ustra é quem deu a ordem. Ele é que começou a tortura”.
No dia seguinte à prisão de Amelinha e César, seus filhos, Janaína e Edson, também foram presos e, por aproximadamente uma semana, eram encaminhados ao DOI-Codi durante o dia, onde chegaram a ver os pais nas salas de tortura. Ambos ficaram sequestrados em Minas Gerais por aproximadamente seis meses.
Crimeia Alice Schmidt de Almeida, irmã de Amelinha, foi presa junto com os sobrinhos Janaína e Edson e encaminhada ao DOI-Codi, onde também foi torturada. À época ela estava grávida de oito meses.
“Do ponto de vista político, ético, moral, eu acho muito importante que o Estado declare Ustra como torturador. Você ser considerado oficialmente torturador já é uma condenação. É Justiça. Nem os próprios torturadores querem admitir que torturaram. Eu acredito que isto abra portas para que todos eles sejam condenados”, declara Amelinha.
Ustra foi relacionado pelo relatório final da CNV como um dos 377 agentes que cometeram crimes contra a humanidade na ditadura. O coronel reformado já foi denunciado pelo MPF (Ministério Público Federal) pela ocultação de cadáver do estudante Hirohaki Torigoe, pela morte de jornalista Luiz Eduardo Merlino e, mais recentemente, em denúncia apresentada na última sexta-feira (19/12), pelo crime de homicídio qualificado contra o militante político Hélcio Pereira Fortes.