Em maio de 1973, Assata Olugbala Shakur, então membro do Partido dos Panteras Negras e do Exército de Libertação Negra, estava em um carro com outras duas ativistas negras, Zayd Malik e Sundiata Acoli, quando foram paradas na estrada por policiais rodoviários. A abordagem estava relacionada ao programa COINTEL do FBI, que tinha a intenção de conter movimentos como os Panteras Negras. No tiroteio que se seguiu, Malik e um policial morreram, enquanto Shakur foi baleada duas vezes nas costas. Em 1977, Shakur foi condenada à prisão perpétua pela morte do policial. Em 1979, ela escapou da prisão e nos anos 1980 ressurgiu em Cuba, onde recebeu asilo político.
Nesta terça-feira (23/12), a diretora-geral de Assuntos Norte-Americanos da Chancelaria cubana, Josefina Vidal, reiterou a soberania do país com relação à cessão de asilo político e negou a possibilidade de extradição de cidadãos norte-americanos asilados em Cuba. A retomada de relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos motivou a criação de uma petição para que Shakur seja perdoada e possa voltar para os EUA como uma mulher livre. A petição já recolheu mais de 22 mil assinaturas.
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O anúncio recente do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, de reestabelecer relações diplomáticas com Cuba foi considerado por muitas pessoas como um sinal de que os tempos estão mudando, e também como um dos últimos esforços de Obama para reaver sua credibilidade junto à esquerda. A notícia também renovou os pedidos da polícia do estado de Nova Jersey pela detenção da ativista negra Assata Shakur, que tem status de asilada política em Cuba. Antes de comentar a renovação do debate pela prisão de Shakur (ou pelo perdão por algo que ela não fez), é pertinente que eu escreva sobre o lugar e o contexto de onde ela escapou.
O Centro Correcional Clinton para Mulheres em Nova Jersey, hoje Centro Correcional Edna Mahon, encerrou Assata Shakur antes que ela escapasse e fugisse para Cuba. A prisão ocupa um lugar central na história da minha família. Todos nós a conhecemos por nome. Nós nos situamos com relação a ela como pessoas negras em geral e como mulheres negras em particular. Clinton nos lembra que é possível ser exilado dentro das nossas próprias fronteiras. Alguns de nós inclusive nascemos lá dentro.
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Na década de 1930, a instituição era conhecida como Reformatório para Mulheres em Clinton. Meu avô nasceu na enfermaria de Clinton, um mês após sua mãe, então uma garota de 17 anos nos últimos meses de gravidez, ser presa por ‘fornicação’ (prostituição). Ela viveu na prisão com o filho durante um ano antes de ser transferida para outro reformatório em outra cidade, uma das várias instituições que adotavam o modelo da Escola Vineland para Crianças Atrasadas e Debilitadas, dirigida pelo eugenista norte-americano Henry Goddard. Seu filho, meu avô, ficou sozinho na prisão por três meses antes de ser mandado para a adoção. Mãe e filho foram fichados em Clinton. Na ficha de meu avô consta que ele chorava “lágrimas de crocodilo” quando queria que alguém da equipe responsável pela creche lhe desse colo. Até seus 79 anos de idade, ele acreditava que sua mãe o tinha abandonado.
O Centro Reformatório de Clinton é também onde minha tia-avó Beverline, uma mulher bipolar com um espírito indomável, foi encarcerada. Lá, em meados dos anos 1960, Bev deu à luz uma linda bebê, minha tia, uma aguerrida figura materna para minha geração. Foi o endereço de Clinton que meu pai escreveu nas cartas para sua namorada, Shirley, nos anos 1990. Shirley estava lutando contra o vício em drogas quando foi presa. Não sou a única pessoa em Nova Jersey que conhece mulheres que passaram por Clinton e que sabe como o centro destrói vidas.
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A prisão jamais iria ajudar Shirley a se livrar do vício, ou tia Bev a controlar sua bipolaridade, ou convencer minha tataravó Bettie que ela não deveria tentar prover para ela e seus filhos através de quaisquer meios que ela encontrasse. A prisão também não iria convencer Assata Shakur que ela deveria abrir mão de sua vida e sua liberdade por respeito a um sistema legal que a perseguiu por razões políticas: para sufocar o pensamento revolucionário entre ativistas negros nos anos 60 e 70 nos EUA. Nenhuma destas quatro mulheres deveria ter estado lá, e assim como na canção de Nina Simone, podemos identificar diferentes versões destas quatro mulheres em nossas comunidades. Elas deveriam ter sido cuidadas, atendidas, não exiladas.
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A ativista Angela Davis e o advogado de Shakur, Lennox Hinds, reagiram em 2013 à declaração do FBI de que Shakur seria adicionada à lista dos Mais Procurados do país. Eles argumentaram que esta era uma tentativa de reacender os medos da população dos EUA do símbolo de mudança radical representado por Shakur. Ela é considerada um símbolo de esperança para jovens ativistas que combatem o racismo, a brutalidade da polícia e outras formas de violência de Estado. A recompensa para a prisão de Shakur foi fixada em dois milhões de dólares [cerca de 5,5 milhões de reais] e ela foi designada pelo FBI como terrorista.
Abriu-se caminho para que o medo de fantasmas, de bocas negras sem sorrisos, de sobrancelhas curvadas em desafio e de cabelos afro fizesse seu trabalho, como as histórias contadas a crianças que são jovens demais para escolher suas próprias leituras. O anúncio do reestabelecimento de relações diplomáticas dos EUA com Cuba apenas renovou este medo e deu cobertura midiática a oficiais de Nova Jersey colocando fotos de Shakur em exposição pública na esperança de recuperá-la e expressando sua determinação em levar “Joanne Chesimard (seu nome de casada) à Justiça” e restaurá-la ao “lugar a que pertence, a prisão em Nova Jersey”. As autoridades perseguem Assata Shakur apesar do surgimento de novas provas desde seu julgamento que revelaram que programas de contra inteligência do FBI estavam monitorando e tentando enquadrar ativistas negros nos anos 60, e também apesar da absoluta falta de provas que apoiem a alegação de que Shakur atirou contra o policial que ela foi acusada de assassinar (após ter sido baleada nas costas).
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É bom ressaltar, portanto, que a perseguição a Assata Shakur não tem nada a ver com Assata Shakur. Diz respeito ao apego à ficção de um sistema penal inerentemente justo, à negação da continuidade do racismo institucional e à afirmação do investimento em formas carcerárias de controle social. A caça a Assata Shakur é equivalente a varrer o chão de uma casa em chamas. Ela se tornou um bicho-papão, um Bin Laden a ser aniquilado, uma bandida a ser destruída. Ela é invocada como um fantasma, ainda chamada de “Joanne” décadas depois e, em espanhol e em inglês, de “terrorista armada e perigosa”. Um discurso que deixa implícito que ela ainda está lá fora, quando deveria estar exilada aqui mesmo, dentro das fronteiras dos EUA.
Vamos deixar de lado por enquanto o fato que oferecer uma recompensa pelo retorno forçado de uma asilada política está em clara contradição com o princípio de não-devolução previsto no Direito Internacional. Que tal um perdão presidencial a Assata Shakur? Por um lado, qualquer coisa que cancele uma recompensa de dois milhões de dólares pelo sequestro e devolução de Shakur é algo a ser considerado. No entanto, é importante dizer que perdoá-la por um crime que foi em grande parte (e assumidamente) fabricado não parece um desfecho adequado para Shakur ou para qualquer um de nós. O mais apropriado seria parar de varrer o chão e se concentrar em salvar a casa.
Eddie Bruce-Jones é professor de Direito na Birkbeck College da Universidade de Londres, e Associado Acadêmico na Honourable Society of the Inner Temple.
Tradução: Carolina de Assis
Artigo originalmente publicado no site Critical Legal Thinking.