Boletim da falta d’água em SP, 10 a 16/02/15*
– Hoje é 16 de fevereiro e tem chovido acima da média histórica, o Cantareira passa dos 7% (http://goo.gl/qCfR0v), o governo do estado está fazendo muitas obras para evitar o rodízio (http://goo.gl/5vGqJq) e, cereja no bolo, descobriu-se o Quarto Volume Morto (http://goo.gl/qtn0pF).
– Aparentemente, então, o boletim da falta d’água perdeu a razão de existir.
– Aparentemente.
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– No dia 10/02, Veja noticiou assim o nível do Cantareira: “A reserva passou de 5,9% para 6,1% nesta terça-feira (10). Antes do acréscimo da primeira cota do volume morto, em maio de 2014, o nível da represa estava em 8,2%” (http://goo.gl/qtn0pF). Ora, a única conclusão que se pode extrair desta frase é que o Cantareira está agora somente um tiquinho abaixo do que estava há pouco menos de um ano atrás. Acontece que nada poderia estar mais distante da realidade: em maio de 2014, é verdade, o Cantareira estava em 8,2%. De lá para cá, esse índice foi inflado artificialmente pela Sabesp duas vezes, quando a empresa acrescentou ao cálculo as duas primeiras parcelas de volume morto. O índice atual, portanto, não é sete e poucos por cento. De maio até agora, caímos até o zero – isto é, consumimos todo o volume útil do reservatório –, depois consumimos 182,5 bilhões de litros do volume morto I e, até 31/01/15, cerca de 50 bilhões de litros do volume morto II.
Luiz Augusto Daidone/ Prefeitura de Vargem
Governo Alckmin diz que Cantareira pode voltar a encher em até um ano
– Agora em fevereiro, começamos a recuperar uma pequena parte de todo o volume morto que já usamos. A situação atual, portanto, nada tem a ver com maio de 2014. O gráfico que mais bem ilustra nossa atual situação é este da página Água, Sua Linda (http://goo.gl/ytuWu7). Ele está um pouco defasado (afinal, é de 27 de janeiro e de lá para cá o nível do Cantareira subiu bastante, para 7,8%), mas ainda assim é muito mais didático e preciso do que qualquer notícia de “nível do Cantareira” que você encontrará na imprensa tradicional. A imprensa simplesmente repercute o índice informado pela Sabesp – ainda que, na opinião de diversos pesquisadores (ouvidos, vejam como a vida é complexa, por esta mesma imprensa), este índice desinforme a população (http://goo.gl/UFX8SG).
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Seção Grandes Obras do Governo Paulista:
– Além das Grandes Obras listadas na semana passada pela Folha (http://goo.gl/mWibwf), foi noticiado nos últimos dias um novo plano do governo do estado: tratar a água do Rio Pinheiros e revertê-la para a Billings (http://goo.gl/gZObML) (http://goo.gl/omvVu1). Segundo Alckmin, parte da água seguiria para a Guarapiranga, para abastecimento humano, e outra parte para a usina Henry Borden em Cubatão, gerando energia elétrica.
– A princípio, tudo neste plano me pareceu excelente (tratar o Rio Pinheiros, sim, sim, por favor), mas um detalhe me deixou um pouco encafifada: tanto a Folha quanto o Estadão noticiaram que, no passado, o Ministério Público foi contra o projeto. Então, resolvi me informar mais a respeito.
– A matéria d’O Estado (http://goo.gl/gZObML) diz que o governo chegou a fazer testes de flotação para tratar a água do Pinheiros em 2007, mas acabou abandonando o projeto completamente em 2011. A técnica da flotação, toscamente falando, nada mais é do que juntar a sujeira sólida em grandes grãos para que eles possam ser removidos. Pois bem: há uma tese de doutorado que avaliou a qualidade da água que passou por esse tipo de tratamento (http://goo.gl/1bTGnB). A tese conclui que tal água pode ser usada sem problemas para a geração de energia, mas seu uso é contra-indicado para reúso recreacional (“o uso não potável recreacional envolve formação e/ou manutenção de lagos recreacionais, rega de jardins e paisagismo” – p. 53), pois a qualidade da água tratada não corresponde ao que é exigido pelo CONAMA. Quer dizer: os testes realizados indicaram que a água tratada por flotação não é indicada nem mesmo para fins não-potáveis.
– Nada disso é diferente do que já previa o MP em 2003, que entrou com uma ACP para proibir o tratamento por flotação do Pinheiros e sua reversão para a Billings (http://goo.gl/xwNL5J). O argumento do MP era que 1) a flotação não remove todos os poluentes, como “metais pesados e poluentes orgânicos e inorgânicos na forma solúvel”, substâncias que são “biocumulativas, cancerígenas e mutagênicas”. A água tratada – como viria a demonstrar a tese de doutorado já citada – só serviria para a geração de energia elétrica; 2) não havia Estudo de Impacto Ambiental da obra – basicamente, não havia nenhum projeto do que fazer com os resíduos sólidos gerados pela flotação.
– Por outro lado, um professor da Faculdade de Saúde Pública da USP disse que a Sabesp tem sim condições de tratar a água do Pinheiros para abastecimento humano (http://goo.gl/vd7Li3) – só não sabemos o nome desse professor.
– Como diz Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, um dos muitos problemas que iremos enfrentar de agora em diante é a possível dilapidação de direitos já conquistados, como a qualidade da água, com o governo impondo à população uma água de qualidade inferior (http://goo.gl/45hRIr).
(- Aliás, a entrevista com a Maru está disponível em 9 partes aqui –http://goo.gl/UQ4Nce)
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– Outra medida que Alckmin anunciou esta semana foi um plano de combate às perdas: a meta é reduzir as perdas de água em 3% em até 3 anos, fazendo o índice cair de 19% para 16% (http://goo.gl/gFBCvn). O índice de perdas da Sabesp que foi amplamente divulgado na imprensa há algumas semanas era de 32,8% (http://goo.gl/HfUF3U
– Acontece que parte das perdas são físicas (vazamento), outra parte é furto (http://goo.gl/y7Tm6S). A própria Sabesp, em dezembro de 2014, estimava suas perdas totais na Grande São Paulo em 30,4%, incluindo vazamentos e “ligações irregulares” (http://goo.gl/hgXOB7), o que bate com os 32,8% estimados pelo Sistema Nacional de Informações Sobre Saneamento (http://goo.gl/HfUF3U
– O plano de Alckmin, como vimos, é reduzir de 19% para 16%. O que ele não disse é que o plano de combate às perdas da Sabesp, até 2008, tinha como meta a redução para 13% até 2019. Em 2012, porém, o plano foi revisto e a meta passou a ser 16,8% (http://goo.gl/xrgZP2). Por quê? Ninguém sabe, e nenhum repórter fez essa pergunta ao governador.
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– O governo do estado divulgou também esta semana a descoberta do Quarto Volume Morto, junto com (adivinhe) obras para permitir a captação de metade da água que ali está (http://goo.gl/5OvTCi). Sobre isso, limito-me a recordar o que especialistas já disseram sobre o efeito esponja provocado pela captação do volume morto: ao deixar o solo exposto e ressecado, ele atrasa a recuperação do sistema, pois primeiro a chuva terá de “preencher os poros do terreno seco” para só então voltar a encher os reservatórios (http://goo.gl/2ZQn5R).
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– Outra medida, que o governo está tentando evitar a todo custo, é o racionamento (http://goo.gl/jHMS0O)(ou rodízio, termo que vem sendo usado – mas confesso que ele me faz pensar numa churrascaria que te serve carne durante dois minutos, aí nos quatro minutos seguintes todos os cozinheiros e garçons cruzam os braços, aí eles voltam a servir carne por mais dois minutos, e assim sucessivamente).
– Em 11/02, tivemos acesso ao plano antirrodízio da Sabesp (http://goo.gl/vhRfer), cujo primeiro item é uma “torcida meteorológica” para que chova (sugiro inclusive engajar a população nessa torcida, com hashtags como #VaiSãoPedro e #PartiuCumulonimbus). Para Haddad, porém, Alckmin disse que o rodízio, se for implantado, será de 4×2 (http://goo.gl/2T3wQr). Dois dias depois, ficou definido que a implantação do rodízio será decidida até o fim de março, caso o Cantareira não atinja um nível X (ainda não estipulado) (http://goo.gl/J7DjPk). Um plano de contingência será definido pelo governo apenas se e quando o rodízio vier (http://goo.gl/Xazhaz).
– A revista Exame perguntou a uma série de especialistas se a estratégia de adiar o rodízio é acertada (http://goo.gl/v1xIjn). Observe que a revista não encontrou um especialista sequer que se dispusesse a afirmar “o governo está corretíssimo, a melhor opção é mesmo empurrar o volume morto com a barriga até onde der”. O presidente da ANA também é da opinião de que é melhor racionar a água enquanto ela ainda existe (http://goo.gl/T5XUxm).
– Por outro lado, o governo do estado e a Sabesp, em parceria com a Prefeitura de São Paulo, finalmente começou a fazer obras para garantir o abastecimento contínuo de serviços essenciais, tais como escolas, hospitais, presídios, etc., para o caso de o rodízio ser implantado (http://goo.gl/ej3PKO).
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– Ainda no quesito Grandes Obras – numa semana se fala em transposição do Amazonas (http://goo.gl/TSiHBdhttp://goo.gl/WlkmnH). E fala-se a sério, sem corar. Sempre aquela mesma brilhante ideia de fazer uma puta duma obra, gastar uma energia do caralho e dar uma grana do cacete para o feliz consórcio que ganhar a porra da licitação.
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Seção MENAS, gente, MENAS:
– Não, caro governo do estado de São Paulo, esta não é “a pior seca da história” (http://goo.gl/xQOwM8). A história é muito longa. Para ficarmos só na história da humanidade, o Homo sapiens surge há aproximadamente 200 mil anos (http://goo.gl/HfcZCP). Esta não é a pior seca dos últimos 200 mil anos. Inclusive este mês está chovendo acima da média histórica. Beijos.
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Esta foi uma semana de dois grandes furos jornalísticos:
– O El País Brasil teve acesso a uma lista parcial dos grandes consumidores da Sabesp, que são agraciados com um contrato que estimula o consumo: quanto mais água consomem, menor fica o preço por litro de água (http://goo.gl/M5M4uy). Em dezembro de 2014, a Agência Pública de Jornalismo pediu à Sabesp, por meio da Lei de Acesso à Informação, os nomes dos clientes signatários do chamado “contrato de demanda firme”. A empresa de abastecimento se recusou a fornecer os dados, mas a Justiça determinou que eles fossem divulgados até o fim de fevereiro. A lista que o El País obteve tem 294 clientes. A Sabesp ainda tem 206 nomes para divulgar.
– Eis alguns dos clientes Sabesp que, quanto mais consomem, menos pagam (http://goo.gl/Xe0Ibl): Bradesco, Nestlé, Igreja Universal, Globo, Alstom, Shopping Eldorado, Bovespa, Banco Safra, Igreja Deus É Amor, São Paulo Golf Club, Hebraica, Liga das Senhoras Católicas, ESPM, Avon, Eli Lilly, WTorre JK.
– O outro furo foi a reportagem publicada pelo coletivo de mídia independente A Conta da Água (http://goo.gl/x9m2lw), que revelou a incrível história do condomínio que privatizou um rio (http://goo.gl/FZB4CF). Funciona assim: você quer morar em Veneza, mas está no Brasil. O que você faz? Ora, você ocupa um terreno, constrói cem casas e desvia um rio para passar entre elas.
– Em Veneza Paulista, os moradores usam pedalinhos para se visitar e pescam peixes – nativos e amazônicos – no quintal de casa. Só tem um problema: se você quiser comprar uma casa lá, ela não tem escritura… O próprio secretário de obras da cidade disse, em 2010, que o condomínio foi instalado sobre o ribeirão Cachoeirinha sem as licenças dos órgãos devidos. Em 2011, porém, veio a boa notícia: o DAEE (do governo do estado) autorizou a captação de 97,42m3/hora para o condomínio, “para fins de lazer e paisagismo”. Nunca o slogan do governo estadual fez tanto sentido: “Governo de São Paulo, trabalhando por você.”
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Seção John Lennon do Boletim:
– Já imaginou que bacana se a Globo, que em geral se limita a incentivar o público a denunciar o desperdício (http://goo.gl/EnPLLP), fizesse uma campanha publicitária de economia de água em parceria com ONGs e com o governo do estado – uma campanha inteligente e de imenso alcance, com celebridades amadas e idolatradas ensinando, por exemplo, a reaproveitar a água do banho?
– Já imaginou que eficaz se essa mesma Globo, assim como as outras 499 empresas que têm contrato de demanda firme com a Sabesp, tivessem os contratos revogados por tempo indeterminado (afinal, como bem disse o professor Zuffo, “estimular o consumo de água como produto é um atentado ao meio ambiente” – http://goo.gl/lFQEe1) e fossem obrigadas a adotar ações de reúso, sob pena de multa?
– Já imaginou que razoável se, em vez de encurralar manifestantes no vão do MASP (http://goo.gl/k9vXDR), a PM estivesse participando de um mutirão de construção de cisternas em toda a região metropolitana?
– Já imaginou que honesto se a Sabesp deixasse de registrar reclamações por falta de água como pedidos de informação (http://goo.gl/Lxgslh)?
– Já imaginou que digno se a ALESP, em vez de abrir um poço artesiano (http://goo.gl/m1td5s), abrisse uma CPI da Crise Hídrica, coisa que se recusou a fazer em 2014 (http://goo.gl/foh5tT)?
– Se você imaginou, saiba que Andreia Bianchi, da Assembleia Estadual da Água, imagines all the people reivindicando direitos e cobrando ações do governo do estado (http://goo.gl/MvXPah). Eu também imagino, Andreia.
AGENDA
– 21/02 às 16h na Praça Roosevelt, Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Minorias (http://goo.gl/SSCwro). Estarei lá, falando sobre o direito à água o/
– 22/02 às 20h no Parque Augusta, exibição do maravilhoso filme A Lei da Água, de André D’Elia (http://goo.gl/GZ6OI0)
– 25/02 e 26/02 na Procuradoria Geral da República, seminário “Crise Hídrica: alternativas e soluções” (http://goo.gl/3iKpbg). Inscrições gratuitas até 23/02 no site: http://goo.gl/lwRzPf
E esse foi o Boletim do Carnaval. Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais.
*Este e todos os boletins passados estão disponíveis noboletimdafaltadagua.tumblr.com
Texto originalmente publicado no tumblr Boletim da Falta d'Água em SP, de Camila Pavanelli de Lorenzi, com boletins semanais sobre a falta d'água no estado de São Paulo
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