Carlos Bassan / Prefeitura de Campinas
Funcionários da vigilância sanitária promovem limpeza de imóveis desocupados em Campinas (SP) para evitar avanço da dengue no município
– The Wire é uma série de TV que aborda, dentre outras coisas, o tráfico de drogas em Baltimore, nos EUA. Na primeira temporada, um grupo de policiais passa inúmeros episódios espionando, de longe, a ação de traficantes. Munidos de binóculos e postados no topo de um edifício, os policiais observam a compra e venda de drogas na rua. Um belo dia, os policiais vão para o prédio como de costume, só que não há ninguém lá embaixo. Eles esperam por horas e nada. Começam a se perguntar sobre o que teria acontecido. Um deles, enfim, conclui: “vai ver nós vencemos [a guerra contra as drogas]”.
[- Spoiler: não, a polícia não havia “vencido a guerra contra as drogas” – o tráfico apenas não estava acontecendo ali onde os policiais olhavam.]
– Lendo as notícias desta semana, me sinto como esse policial meio idiota de The Wire: vai ver vencemos a guerra contra a falta d’água. Afinal, a julgar pelos jornais, não falta mais água em São Paulo. Até a semana passada, li inúmeras notícias sobre lugares onde tem faltado água – escolas, hospitais, casas pobres de bairros periféricos, restaurantes caros de bairros centrais. Esta semana, porém, não li nenhuma variação da notícia “lugar X fica Y tempo sem água”. Tenho ganas de concluir, então, que nossos problemas de abastecimento acabaram.
[- Acho que não preciso dar o spoiler da vida real.]
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– Se nesta semana a imprensa não deu muita atenção para os lugares onde faltou água, concedeu merecida importância ao aumento dos casos de dengue no estado de São Paulo (http://goo.gl/PSZN0h). Na capital, os casos triplicaram em relação ao ano anterior (http://goo.gl/xp8Cmv). Um levantamento conduzido pela Secretaria de Saúde do município detectou um aumento no número de recipientes e caixas d’água que armazenam água de forma inadequada: “A hipótese (…) de que o armazenamento de água por causa da crise hídrica era um dos motivos da alta da dengue se confirmou na pesquisa de campo”, disse o secretário adjunto de saúde Paulo Puccini. E o pior ainda está por vir, já que o pico da doença é esperado para entre os meses de abril e maio (http://goo.gl/0OxOZy).
– O governo do estado é, portanto, autor de um crime perfeito: tira água do Cantareira mais do que deveria (com a conivência da ANA, diga-se) até as eleições (http://bit.ly/1yXHPyT), quando então passa a captar menos água do sistema sem jamais decretar racionamento oficial (http://goo.gl/k0Kyn7http://goo.gl/PzbMhP), é claro que o governo do estado não tem nada a ver com isso.
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– Passemos então à ingrata tarefa de retomar o que o governo do estado tem feito em relação à crise, e em que pé anda a Sabesp. Em primeiro lugar, os funcionários marcaram greve geral para o dia 19 (http://goo.gl/LpQHQd), decisão tomada após a demissão de 300 funcionários (http://goo.gl/dfrSeV). Depois, o sindicato decidiu suspender a greve até que o TRT julgue a reintegração dos demitidos; a Sabesp, por sua vez, comprometeu-se a não demitir mais ninguém até esse julgamento (http://goo.gl/Ts6tF9).
– Além disso, a (ilegal, segundo o Idec – http://bit.ly/1wkzdgs) sobretaxa não surtiu grandes efeitos: antes de sua implementação, 22% das contas de água registravam consumo maior do que no ano anterior; no pós-taxa, esse número caiu para 19%. Mas a medida deve render um dinheirinho extra para o caixa da Sabesp, já que 12% das contas pagarão sobretaxa.
– E por falar em dinheirinho – três meses depois de um aumento de 6,5%, a Sabesp quer impor um novo ajuste na conta de água (http://goo.gl/JbAj0K). Pelo menos a empresa também pretende cobrar mais dos grandes consumidores (http://goo.gl/Tjg4cZ), medida por cuja implementação pretendo aguardar sentada. Aliás, o El País Brasil teve acesso à relação dos 537 grandes consumidores da Sabesp, 42 dos quais assinaram o contrato de demanda firme em 2014, em plena crise hídrica (http://goo.gl/bulFfz). São shoppings, igrejas, indústrias, condomínios comerciais beneficiados por contratos extremamente generosos, que só agora, quem sabe, a Sabesp começará a revisar.
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Seção Grandes Obras do Governo Paulista™:
– A notícia mais importante e menos lida de 15/03 foi esta: a Sabesp está atropelando a legislação e executando obras emergenciais “sem Estudo de Impacto Ambiental (EIA), aprovação em comitês ou decreto de estado de emergência” (http://goo.gl/vbKp9R). Cito (e assino embaixo das) palavras de Darcy Brega, engenheiro e ex-funcionário da Sabesp: “Ou o governo decreta estado de emergência para tocar as chamadas obras emergenciais sem licitação e estudo de impacto ambiental, com perda de capacidade de concorrência e de participação social, ou então licita e produz os relatórios necessários. Do jeito que está, há uma incoerência brutal”.
– Mas para que servem esses “entraves burocráticos” que o governo tem ignorado, como disse um comentarista da matéria d’O Estado? (Sim, li os comentários num surto de masoquismo.) Funcionários do próprio governo citam a construção de uma adutora para transportar água de um rio que, no período de estiagem, terá a vazão 70% abaixo do pretendido. Esse tipo de avaliação é um exemplo de “lento processo burocrático” que o governo está evitando ao conduzir suas Grandes Obras™ no ritmo do coelho de Alice (pois é tarde, é tarde…). Eu não sei qual empreiteira está tocando esta obra, mas aposto um balde d’água (sem Aedes, por favor) que ela não está perdendo dinheiro com esse projeto.
– Aliás, taí: quais são as empreiteiras que estão se dando bem nesta crise? Por ora, matérias intituladas “descubra aqui quem está lucrando com a crise” falam apenas em vendedores de caixas d’água e afins (http://goo.gl/DvRaIu). Eu não quero saber do cara que está vendendo balde, bacia e caixa d’água. Eu quero saber das empreiteiras. Os contratos lucrativos, afinal, estão em toda parte, não só na Petrobras.
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– Ainda na categoria Grandes Obras™, o TCE suspendeu a primeira fase da licitação para a transposição do Paraíba (http://goo.gl/HytHHv), aquela obra cujo custo encareceu 66% em 8 meses (http://bit.ly/1yIEQJ9). Mas não se trata de um processo licitatório comum: por fazer parte do PAC, do governo federal, a obra está sendo licitada por RDC. A expectativa do governo é de que a impugnação seja rapidamente resolvida, e não vejo motivo nenhum para duvidar do governo neste ponto.
– Por fim, o governo do estado (via Secretário de Recursos Hídricos) voltou a defender o tratamento do Rio Pinheiros pelo método de flotação, para que a água seja usada para consumo humano (http://goo.gl/Pddmrc). Este boletim (http://goo.gl/Ddyigu) mostra como esse método foi testado e fracassou.
Já em 2003, o MP entrou com uma ACP para impedir o tratamento por flotação do Pinheiros e sua reversão para a Billings; um dos argumentos era que não havia nenhum projeto do que fazer com os resíduos sólidos a serem gerados no processo. Pois bem: o projeto foi levado a cabo, e sabe o que aconteceu com os resíduos sólidos de que falava o MP? Estão estocados numa área perto do Billings _ATÉ HOJE_.
– Mas se deu errado daquela vez (o método não se mostrou adequado para tratar a água para consumo humano – http://goo.gl/1bTGnB), o secretário Benedito Braga argumenta que, atualmente, existem processos mais modernos de flotação que poderiam dar conta do recado. Em compensação, Eduardo Cleto Pires, professor especializado em tratamento de água, afirma que o risco do projeto é espalhar a sujeira do Pinheiros para os outros mananciais. “A medida só está sendo tomada para o abastecimento humano porque estamos em um momento de crise. O problema é que isso se torne permanente, mesmo depois dessa crise”, diz ele. Em suma: se a discussão sobre a crise hídrica se limitar a um monitoramento diário do nível dos mananciais, corremos o risco de aceitar passivamente uma água de qualidade inferior nas nossas torneiras.
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– Com relação aos mananciais, a situação deles felizmente está melhor (http://goo.gl/x2pyGR) – afinal, não só tem chovido mais (60% acima da média em fevereiro!) como também e principalmente a Sabesp está fazendo agora o que deveria ter feito ao longo de 2014, que é reduzir as captações do Cantareira: a empresa tirou em fevereiro deste ano 56% menos água do que tirava do sistema em fevereiro de 2014. Exemplo: hoje, 16/03/15, a Sabesp retirou 9,03m3/s do Cantareira. Em 16/03/2014, retirou 25m3/s (http://goo.gl/ZVrQMe). Como admite o presidente da Sabesp, Jerson Kelman, essa redução é fruto principalmente da redução de pressão e dos cortes no abastecimento, que segundo ele não caracterizam um racionamento sistemático. Concordo com Kelman, claro: o racionamento em São Paulo nada tem de sistemático, afinal ninguém sabe exatamente onde, quando e por quanto tempo a água irá faltar. É exatamente esse o problema: a Sabesp enfim começou a fazer a coisa certa (a única coisa que sobrou para fazer, na verdade, que é captar menos água), mas sem dividir os custos dessa redução de forma equitativa entre todos.
– Ainda sobre captações: a ANA está propondo uma mudança nas regras para retirada de água do Cantareira, com limites intermediários para que os reservatórios não sequem tão rapidamente como aconteceu no ano passado (http://goo.gl/lB9rjh). Para os próximos meses, a previsão é de que interior e Grande SP briguem pela pouca água que houver. (Não consigo me acostumar a escrever frases como esta e achar que está tudo normal.)
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– A mais bela reportagem desta semana, publicada no Guardian (http://goo.gl/kJssm3), é um contraponto necessário às Grandes Obras mencionadas anteriormente. A repórter Claire Rigby entrevistou pessoas dedicadas a mapear os rios da cidade de São Paulo: Adriano Sampaio, do Existe Água em SP (http://goo.gl/5btsKa), e Luiz de Campos e José Bueno, do Rios e Ruas (http://goo.gl/70Ptay). Sampaio argumenta que as autoridades só pensam em Grandes Obras, de eficácia nem sempre garantida, quando poderiam testar e utilizar as águas subterrâneas que encharcam a cidade. Em vez disso, boa parte dessa água vai parar no Pinheiros e no Tietê, misturada a esgoto sem nenhum tratamento – esgoto este, por exemplo, proveniente do chiquérrimo Shopping Cidade Jardim, que por acaso é um dos grandes consumidores da Sabesp (http://goo.gl/bulFfz).
(- Pausa para uma boa notícia: a cidade de Valinhos fará o que Sampaio está propondo! A Prefeitura contratará uma empresa para catalogar as nascentes e verificar sua possibilidade de uso – http://goo.gl/IcXLhX)
– Outro trecho interessantíssimo da reportagem do Guardian é o último parágrafo: Campos diz que consideramos a poluição dos rios um fato consumado, mas se deixássemos de poluí-los eles poderiam se recuperar sozinhos. Esta outra reportagem (http://goo.gl/EEipvM) diz, sem citar fontes, que o Tietê poderia se “despoluir sozinho” em apenas cinco anos, caso o esgoto nele despejado fosse tratado.
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– Existe água em SP, nem que seja subterrânea – mais condomínios têm recorrido à perfuração de poços artesianos (http://goo.gl/SrCPZa). Mas o que acontece quando todos começam a furar poços simultaneamente? Segundo José Luiz Albuquerque Filho, do IPT, o grande problema de concentrar os poços em uma determinada região é que um acabe interferindo no outro e rebaixando os lençóis (http://goo.gl/3qG3TS). Esta mesma reportagem do SPTV mostra também a história de um condomínio que perfurou um poço capaz de fornecer (teoricamente) 4x mais água do que o necessário para o abastecimento dos moradores. Aqui vocês vão me desculpar mas eu vou ~fazer a Lu Genro~ e berrar #AbaixoOCapitalFinanceiro – qual é o sentido, qual é a lógica, qual é a justiça de que, na atual situação de escassez, um grupo de pessoas possa ter água em abundância enquanto outras passam dias e mais dias sem (http://oesta.do/1FB901I)? A lógica, claro, é que algumas pessoas podem pagar e outras não – e é exatamente contra essa lógica que as outorgas dos poços deveriam ser retomadas pelo Estado, na atual situação de escassez.
– Podem me chamar de esquerdinha pessolista petralhorda radical o quanto quiserem; estou apenas defendendo que se cumpra a lei: (http://goo.gl/oTjJUf): “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas seguintes circunstâncias: (…) III – necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas”
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– E como estamos falando de justiça, vamos finalizar com esta notícia: a PM-SP comprou blindados com lançadores de jato d’água com capacidade de, no mínimo, 2500 litros de água, para “conter black blocs e manifestantes violentos” (http://goo.gl/X9kR2W).
AGENDA
– Palestra sobre Modelagem Matemática para a Crise Hídrica de São Paulo, 19/03 na UFABC (http://goo.gl/fzkK00)
– “É possível utilizar água subterrânea para abastecimento público na RMSP?”, 19/03 no Instituto de Geociências da USP (http://goo.gl/kS3liL)
– Ação Surpresa da Assembleia Estadual da Água, 22/03 na passarela de pedestres da Av. Eusébio Matoso (http://goo.gl/PijCSx)
– Passeio pela Água – Expedição de Nascentes, 22/03 saindo da Ocupa – Casa da Praça Waldir Azevedo (http://goo.gl/t4B1y6)
– Passeata da Billings ao Parque dos Búfalos, 22/03 (http://goo.gl/XQuL5u)
– A Lei da Águas: a Mudança do Código Florestal e o Seu Impacto na Disponibilidade Hídrica, 24/03 na UFABC (http://goo.gl/T3vwkf)
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E esse foi o boletim de 10 a 16/03/15. Pode entrar em pânico que segunda que vem tem mais.
*Este e todos os boletins passados estão disponíveis no boletimdafaltadagua.tumblr.com