Natália Viana / Agência Pública
O rio Negro, que banha o município de São Gabriel, no noroeste do Amazonas
Faz pouco mais de dois meses que ela se foi, um dia antes do seu aniversário. Maria – vamos chamá-la assim – completaria 20 anos em 2 de março. Ninguém diria que não era uma indiazinha como tantas que colorem as ruas de São Gabriel da Cachoeira, município no noroeste do Amazonas, às margens do rio Negro. Era baixinha, os cabelos negros sobre os ombros, as roupas justas, chinelo de dedos. Mas Maria estava ali só de passagem. No seu enterro os parentes contaram que tinham vindo rio abaixo para passar o período de férias escolares, quando centenas de indígenas de diversas etnias deixam suas aldeias e enchem a sede do município para resolver pendências burocráticas. Ali na cidade, ela arrumou namorado, um militar, e passava os dias com ele, quando não estava entre amigos. Mas nos últimos dias Maria andava triste: o casal havia rompido o namoro. Estava estranha, nervosa. Os parentes contaram que chegou a ter alucinações.
Os pais tinham achado bom o fim do namoro. Ninguém chegou a conhecer de perto o tal soldado. Nunca conseguiram ver o seu rosto porque, segundo contaram, quando ele vinha ao bairro do Dabaru, um dos mais pobres do município, onde a família morava numa espécie de vilazinha com casas coladas umas nas outras, ele sempre se escondia nas sombras formadas pela parca iluminação. Tinha o rosto coberto pelas trevas da noite. Era branco? Era preto? Era gente?
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Na madrugada de sábado para domingo, dia 1o de março, depois de ter passado a tarde e o começo da noite com o irmão mais velho e amigos bebendo na praia do rio, Maria começou a se transformar de vez. Estava agressiva. Os olhos já não eram os dela, contou o irmão, reviravam e mudavam de cor enquanto ela gritava que os pais não gostavam dela, que era ele o filho predileto. O irmão ainda arrastou Maria de volta, mas, quando chegaram em casa, os pais não conseguiam enxergá-la. No lugar dela viam apenas algo escuro, uma sombra. Um ser da escuridão. O pai não pôde nem levantar da rede no pequeno quarto que dividia com os filhos. Ficou chorando, atônito. Maria entrou no quarto ao lado, bateu a porta. Não conseguiram abri-la, embora não estivesse trancada. Por uma fresta, viram quando ela amarrou uma corda e se enforcou. No momento seguinte, contam, a porta finalmente abriu. Ela já estava morta.
Maria é a vítima mais recente de uma tragédia assombrosa que se repete com enredo semelhante há pelo menos dez anos em São Gabriel da Cachoeira e que foi traduzida em números pelo Mapa da Violência 2014, da Secretaria-Geral da Presidência da República. De acordo com o relatório baseado em dados do Sistema de Informação da Mortalidade do Ministério da Saúde, São Gabriel é o recordista nas estatísticas de suicídio por habitante dos municípios brasileiros. Em 2012 foram 51,2 suicídios por 100 mil habitantes – dez vezes mais que a média nacional. Isso corresponde a 20 pessoas que se mataram, mais ainda do que no ano anterior, quando foram 16 suicídios.
São Gabriel é também o município mais indígena do Brasil. As 23 etnias que há pelo menos 3 mil anos ocupam as margens do rio Negro e de seus afluentes correspondem a 80% da população. Hoje os cerca de 42 mil habitantes se dividem entre a área urbana – ocupada a partir da margem do rio desde a fundação do forte São Gabriel pelos portugueses, em 1761 – e as centenas de comunidades espalhadas pelo interior da floresta, algumas a dois ou três dias de barco dentro do maior mosaico de terras indígenas do país, com 100 km2 de área. Um território maior do que Portugal, onde vivem os Baniwa, Kuripako, Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Baré, Warekena, Arapaso, Bará, Barasana, Desana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Mirity-tapuya, Pira-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Tuyuca, Wanana e Yanomami.
De um total de 73 mortes ocorridas entre 2008 e 2012, apenas cinco não foram de indígenas, segundo o Mapa da Violência 2014. Entre os indígenas, 75% eram jovens, como Maria. E muitos dos familiares e amigos contam que se suicidaram depois de terem sido assombrados por seres da escuridão, por parentes mortos, ou mesmo pelo próprio diabo, os quais, chamando-os durante meses a fio, afinal os arrastaram para a forca.
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Mas quem chega a São Gabriel e pergunta nas ruas, nos bares, nas igrejas vai ouvir que os suicídios são um problema do passado. Uma crise, um surto, pronto, passou, não se fala mais nisso. Faz tempo que o assunto não atrai jornalistas forasteiros rio acima, com seus gravadores e suas perguntas. Foi uma crise, um surto, pronto, acabou, não se fala mais nisso. É no passar vagaroso dos dias que os relatos começam a aparecer. E são muitos, em todo canto.
Como o de seu Zeferino, que pode ser encontrado sentado no tronco de uma árvore no quintal de terra ocupado por duas casas – a dele e a dos filhos – no distante bairro de Tiago Montalvo. De olhos pequenos marcados pela catarata, as costas encurvadas, Zeferino Teles Lima não gosta de falar, mas a lembrança do filho Tiago não o deixa em paz. Misturando a língua Tukano com o pouco português que sabe, o índio Tariano conta baixinho que “pensa sempre… ele trabalhando na roça dele, trabalhando na casa dele, onde tem deitado… tenho pensado muito… tô pensando ainda, né? Bravo não fica muito não… fica muito triste”. A imagem do filho o persegue dia e noite, chamando. Para se livrar de tanto pensamento, Zeferino procurou as curas tradicionais do seu povo. “Fizeram benzimento por minha vontade. Se assim não tinha benzido, já tinha morto já. Atrás dele né?”, diz. Depois, buscou um padre. “Porque não dá pra mim tristeza e tá dando assim. Aí que padre tirou benzendo pra mim da cabeça. Aí passou um pouquinho agora, tá aos poucos melhorando.”
Segundo a família, Tiago Lima morreu no dia 10 de abril de 2014 na comunidade Nova Esperança, no alto rio Uaupés, interior do município. Estava bêbado. A comunidade se preparava para a festa de Domingo de Ramos e Tiago não teve dificuldade em encontrar um comerciante disposto a vender-lhe cachaça – a venda de bebida alcoólica é proibida em terras indígenas. Comprou três “carotezinhos”, garrafinhas de plástico, de 200 ml. Ninguém viu quando Tiago amarrou a corda dentro da casa, depois de um desentendimento com o irmão, com quem estava morando. O pai resume: “Ele se laçou”. Na sua língua não existe a palavra “suicídio”.
Não foi o primeiro da família a adoecer. Dois primos de Tiago tentaram a morte repetidas vezes nos últimos anos. Do outro lado da rua de terra, a sobrinha de Zeferino, Almerinda Ramos de Lima, conta essa história sem alterar a voz, enquanto organiza o almoço de família na casa do pai, cercada pela filha, o neto, alguns irmãos, as sobrinhas, a tirar suco de açaí. Almerinda foi a primeira mulher a assumir a presidência da Foirn, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, que reúne diversos povos da região. “Minha mãe diz assim, um dia vão acabar se enforcando”, suspira. O irmão Melquior, de 38 anos, tentou se enforcar duas vezes. A primeira foi em 2010, por causa de uma briga com a esposa. A corda arrebentou. Um ano depois, ele voltou a tentar o suicídio, depois de o pai ter lhe chamado a atenção por estar bêbado. “Papai começou a ralhar ele, e ele falou: ‘Ah, já que eu que tô errado, já que eu que tô fazendo essas coisas erradas, então eu prefiro me matar, prefiro morrer’. Então isso que ele fez. Sorte dele que o galho quebrou.” .O outro irmão, Ivo, de 35 anos, também foi atrás da corda, depois de uma briga conjugal. “Acho que o diabo não quis levar eles ainda, por isso que não morreram”, diz Almerinda.
Sem registro oficial
A aflição da família de Almerinda não está registrada em lugar nenhum. O único levantamento que existe sobre tentativas de suicídio na região é feito pelo Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (DSEI/RN), órgão do governo federal responsável por cuidar da saúde dos índios aldeados, subordinado ao Ministério da Saúde. O distrito não acompanha nem registra casos que aconteceram na área urbana. E entre os índios aldeados os números levantados são irrisórios. Segundo os dados enviados pelo DSEI à Pública, houve apenas uma tentativa de suicídio relatada em 2014. No ano anterior, foram registradas sete tentativas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada suicídio efetivado há pelo menos dez tentativas.
“As pessoas estão alarmadas, não sabem o que fazer, e isso não se vê nos relatórios. Tem muitas tentativas de suicídio, mas isso não aparece nos números oficiais”, diz Aloízio Cabalzar, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA) que há 25 anos trabalha nas comunidades Tukano, Tuiuka e Dessana do rio Tiquié, um afluente do rio Negro no extremo noroeste do Amazonas. Nesses anos, pelo menos dez conhecidos dele se suicidaram, calcula: “Vivi muito isso. O suicídio sempre aconteceu, mas como algo atípico. Agora a coisa ficou muito mais presente, muito mais frequente. As pessoas estão com medo, as famílias têm medo de que os seus filhos se matem. Porque foram muitos jovens, nessa faixa dos 20 anos.”
A única certeza entre as famílias do alto Tiquié é que os enforcamentos começaram na cidade de São Gabriel, e não nas aldeias. “Tem um pouco essa ideia de que a doença, no geral, pela própria história de contato com os brancos, vem sempre subindo pelo rio no sentido da foz, no Amazonas. O suicídio, também, é uma doença contagiosa que está chegando nas comunidades vinda de São Gabriel”, diz o antropólogo.
Os suicídios rio-negrinos se inserem em um alarmante contexto nacional: em 2010, os indígenas representavam 0,4% da população brasileira, mas respondiam por 1% dos suicídios. O caso mais notório é o dos Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Segundo o Centro Missionário Indigenista (CIMI), entre 2000 e 2013 houve 684 mortes por suicídio entre eles – 73 casos apenas em 2013. O Mapa da Violência registra no Mato Grosso do Sul 19,9% dos suicídios indígenas – sete vezes mais do que era de esperar em uma população correspondente a 2,9% da total. Uma “verdadeira situação pandêmica de suicídio entre os jovens indígenas”, destaca o relatório.
Diferentemente dos Guarani-Kaiowa no Mato Grosso do Sul, porém, não há grandes conflitos de terra no noroeste amazônico, embora muitas áreas ainda estejam em processo de demarcação. A cultura indígena prevalece no município de São Gabriel, graças à organização da Foirn. Essa é a única cidade brasileira que tem quatro línguas oficiais: além do português, o Tukano, Baniwa e o Nhengatu, ou a língua-geral imposta pelos jesuítas no século 17 e até hoje predominante entre certas etnias. Caso único no país, entre 2008 e 2012 chegou a ter prefeito e vice-prefeito indígenas – o titular Tariana e o vice Baniwa. Grande parte das famílias das comunidades passa temporadas na casa de parentes na cidade, uma “extensão” das famílias aldeadas, mantendo quase sempre uma “roça” em algum terreno mais afastado, onde as mulheres seguem plantando mandioca, pimenta, milho e abacaxi.
Ao longo dos séculos, o suicídio sempre causou mal-estar; por ser inexplicável, inaceitável, uma morte malvista. E não é diferente com os indígenas. Raramente se fala sobre os mortos ou se contam com detalhes as circunstâncias de um suicídio. É por isso que Valéria Magalhães, psicóloga do DSEI/RN, se impressionou tanto com o relato da família de Maria, transcrito no começo desta reportagem. “É muito difícil eles falarem como aconteceu, e nesse dia, não sei se é porque era muito recente, no dia do enterro, a família descreveu que eles viram que ela tinha um ser da escuridão próximo dela. Aí esse ser incorporou e fez ela se matar. Não foi ela que se matou, foi esse ser da escuridão, que já vinha acompanhando ela há um tempo. Eles contando na hora pra mim, era com tanta certeza que não deixa dúvida pra eles. Aquela morte ia acontecer. Eles não tinham como evitar”, conta a psicóloga, que agora faz voluntariamente o acompanhamento da família. “Não adianta eu falar pra eles: ‘Isso é uma autossugestão, você não está vendo isso’. É a verdade deles que importa, não a minha. E o que eles estão vivendo é isso.”
São Gabriel e suas mortes
A primeira coisa que é preciso saber ao chegar a São Gabriel da Cachoeira é que, debaixo do morro que ladeia a praia de areia branca e águas escuras, mora a Cobra Grande, pronta a engolir o visitante desavisado, seja índio ou branco, que se aventura sem cuidado nas fortes corredeiras. Ali onde está a igreja católica, azul e branca, e o imponente prédio da Diocese a paisagem é tingida pelo som furioso das águas, ininterrupto. À noite, quando o barulho dos carros e dos bares se aquieta, parece que as cachoeiras formadas pelas pedras do rio passam por cima da cidade e arrastam todo mundo para longe, como nas tantas histórias que se conta sobre jovens, meninos e meninas abraçados pela cobra do rio.
Nos anos de 2005 e 2006, parecia que o negrume das águas tinha envolvido de vez São Gabriel. Até então os casos de suicídio na região eram esparsos, conforme conta o antropólogo Aloízio Cabalzar, da ONG Instituto Socioambiental (ISA). Ele se lembra bem da primeira morte que ficou famosa, em 2001. O rapaz, de 31 anos, era seu conhecido. Um indígena Desana da comunidade de São Luiz, à beira do rio Tiquié, que adentra a Colômbia. Matou-se tomando timbó, um veneno usado na região para caçar ou pescar, proveniente de um cipó trepador. “Foi um caso que chocou bastante, todo mundo ficou bem surpreso.” Apenas um sinal do que estava por vir: “Em 2005, a coisa mudou”.
Naquele ano, o bairro do Dabaru era relativamente recente e fervilhava com a vinda maciça dos índios das aldeias, principalmente em busca de educação secundária para os filhos; as comunidades possuem só escolas de ensino básico. Nas ruas de terra, sem ligação de água ou esgoto, a iluminação era precária e não havia nenhum transporte público. Andava-se muito a pé, as mulheres carregando bebês assentados nos quadris, e apenas os mais bem de vida podiam ter uma bicicleta surrada. Ali ficava também o único hospital da cidade, o Hospital de Guarnição, administrado por militares. Na véspera do dia das crianças, uma menina foi levada às pressas, durante a noite, para o hospital. Acabara de se enforcar. Tinha apenas 13 anos.
Sua tia, Elizabeth Silva, é uma indígena Baré com uma tristeza nos olhos que se disfarça na altivez da postura. A perplexidade se revela aos poucos, à medida que ela relembra a história ocorrida dez anos antes. “Quando aconteceu, isso deixou a gente sem pé, sem cabeça. Por quê? O que faltava pra ela? O que eu fiz? O que eu não fiz?”, diz ela. A sobrinha Laísa – o nome é fictício – tivera uma infância conturbada. Quando pequena, a mãe teve de fugir do município porque o novo namorado estava sendo procurado pela polícia. Depois de um período de mudanças constantes de residência em Manaus e denúncias de negligência e maus-tratos sofridos por ela, as tias a adotaram e voltaram a São Gabriel. Desde então, “tinha três mães”, revezava-se entre a casa das tias e levava uma vida normal. Assistia a novela, gostava muito de vôlei e, com as amigas da Escola Estadual Irmã Inês Penha, participava da banda marcial. “Era uma menina feliz, alegre com todo mundo, gostava de brincar, gostava de festa, e ela tinha tudo pra se ocupar. Tinha muitas colegas, não era isolada.” Elizabeth lembra como a menina era boa de cozinha e havia prometido ajudá-la a preparar a festa do Dia das Crianças. No dia anterior, foi encontrada pela prima de 16 anos, amarrada por uma corda ao teto da sua casa. “Ela sempre sonhava ser alguma coisa na vida”, diz a tia, que, depois da morte, se mudou de bairro com as irmãs “tentando realmente, esquecer”. A última frase que ouviu da sobrinha ainda ecoa na mente de Elizabeth e a faz chorar. “Eu vou ajudar a senhora, a gente vai fazer um bolo, a gente vai fazer um doce e encher a barriga dessas crianças do Dabaru.”
A prima que a encontrou ficou em estado de choque. Eram muito próximas. Iam juntas para a escola, almoçavam juntas, dividiam confidências. Marta (nome fictício) ficou de cama por uma semana depois do enterro; quando falava, era como se conversasse com Laísa. “A gente teve que amarrar ela. Ela tinha muita força, a gente não aguentava. Ela dizia que [Laísa] tava levando ela. Que chamava ela”, relata Elizabeth, que cuidou da garota durante dois meses em sua casa. “Ela mudava a voz, e era a voz da finada. Dizia: ‘Me perdoe, tia, eu não queria fazer isso não, achava que ninguém me amava tanto assim não’. A gente procurou igreja. O bispo. Ele ajudou muito a gente nas orações… Até o benzimento”, explica Elizabeth, baixando os olhos. “A gente não sabia mais o que fazer. Todo mundo já tava ficando doente, essa minha irmã não queria comer, só vivia chorando, pra ela acabou tudo, ela não queria mais saber de nada, queria morrer junto com ela…”
Entre um ataque e outro, a prima pôs a culpa em um professor da escola Irmã Inês Penha, onde estudavam. Disse que o professor levava alunos para o cemitério à noite e os fazia ler textos em latim. Haveria um pacto suicida entre esses alunos. Às vezes, Marta dizia que o estava vendo na casa de Elizabeth, diante dos parentes. “Olha aqui, tia, ele tá aqui, você não tá vendo o sapato dele? Ele tá bem aqui perto de mim”, dizia a menina a Elizabeth. “A gente não via! Mas ela tava enxergando”, conta. Nessas visões, o professor aparecia sempre vestido com uma capa preta.
O choque gerado pela morte de Laísa ultrapassou o seio familiar e arrastou consigo a escola toda e, com o tempo, a cidade. Foi um fim de ano negro. Outros alunos, vizinhos e conhecidos da menina, começaram a ter visões, como revela um relato aflito da tenente Graciete Carvalho, então enfermeira no Hospital de Guarnição, escrito para a Fundação Estadual dos Povos Indígenas (Fepi) no dia 20 de dezembro de 2005. O texto foi reproduzido em uma detalhada investigação feita pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2011.
“No dia 11 de outubro (terça-feira) chegou no hospital uma menina de 13 anos que foi encontrada por sua prima de 16 anos, enforcada. (…) Todos achavam que estava relacionado com a trajetória de vida dela marcada por maus-tratos e até suspeita de abuso sexual quando morava com a mãe em Manaus, mas essa ideia foi tomando outro rumo tendo em vista que a sua prima depois do seu enterro entrou em estado de choque e ficou com um comportamento estranho. (…) No dia 24 de outubro (segunda-feira) chegou outra menor de 12 anos (M.P.R.) também vítima de enforcamento. No dia 31 de outubro (segunda-feira) chegou ao Hospital uma jovem de 17 anos (B) em surto psicótico, segundo o Major Cid, nosso psiquiatra. Ela estava completamente transtornada, tinha momentos em que ela prendia a respiração e era preciso sacudi-la para sair daquele estado e pudesse ficar normal. Durante a alucinação ela dizia que a [Laísa] queria levar ela e outros jovens.” No dia 7 de novembro, uma segunda-feira, outro jovem de 14 anos, vizinho de Laísa no Dabaru, se enforcou. Na semana seguinte, relata Graciete, “ocorreram algumas tentativas e inúmeras manifestações, através de bilhetes e cartas, de desejo de também realizar o enforcamento. No dia 10 de novembro, atendemos uma menor de 12 anos que tentou enforcamento. Ela referiu que às vezes escutava vozes que lhe perturbavam muito, não conseguia dormir e vinha uma grande vontade de pegar uma corda”. No dia 11 de novembro, outra menina deu entrada no hospital porque, segundo a família, estava muito triste e transtornada, dizendo que “os jovens que morreram queriam levá-la”. No dia seguinte, outra jovem, de 17 anos, foi levada para lá pelo Conselho Tutelar, depois de resgatada pela irmã com uma corda ao redor do pescoço. Também morava na vizinhança de Laísa.
Uma de suas tias encontrou uma lista com o nome de colegas de Laísa em uma associação de artesãos onde a menina se reunia com as amigas. A lista foi tida como um prenúncio de que todas iriam morrer. As cartas de despedida se multiplicaram na escola Inês Penha. Muitas apontavam falta de carinho e atenção em casa, outras listavam inimizades escolares. Outras eram mais serenas, como a dessa menina de 12 anos: “Pai, mãe, tios, tias e irmãos vocês foram muito legais comigo. Mãe peço desculpas por palavras que um dia eu falei. Pai muito obrigada por tudo que me ensinou, irmãos eu sei que vocês são muito pequenos para entender e F. eu sei que você no fundo do seu coração gostava muito de mim. Eu amo muito vocês beijos e abraços. Professores e Professor muito obrigada por tudo que me ensinaram eu sei que as vezes bagunçava muito eu escrever algumas letras erradas mais é por que eu estou nervosa. Beijos e Abraços para todos”.
O diretor da escola pediu o adiantamento do fim do ano letivo e a Inês Penha fechou mais cedo. No hospital, o número de emergências crescia. “No dia 19 de novembro (sábado) somos chamados, eu e o Mj Cid, para atender outra jovem de 16 anos que estava completamente atordoada. Quando cheguei na emergência do Hospital vi o desespero dos familiares segurando a jovem (I.M.) porque ela corria de um lado para o outro e colocava as mãos no ouvido, tremia e com um olhar assustado dizia que estava vendo um homem de preto e os três menores que se enforcaram e que diziam que queriam levá-la. De acordo com o amigo que a socorreu ela estava sozinha em casa, gritando num canto da casa com as mãos na cabeça dizendo que não queria ir. Segundo ele, ela falou que procurou corda e não encontrou na casa e que o homem de preto dizia que estava esperando um momento em que ela estivesse triste e sozinha para buscá-la. Na abordagem com a mãe perguntei se havia acontecido alguma coisa em casa e ela disse apenas que havia ‘ralhado muito’ com a IM. O Major Cid viu a paciente e teve que prescrever anti-psicótico porque estava em surto. […] Ela veio três finais de semana seguidos no Hospital. Mas o comportamento já estava diferente. Estamos acompanhando ela desde o dia 21 de novembro. A mãe, já que o pai estava em Manaus fazendo tratamento de saúde, procurou um benzedor que terminou o trabalho está com uma semana. De fato ela está bem melhor até porque o pai chegou de Manaus, mas às vezes se refere a dor de cabeça e uma certa tristeza.” A partir dali, prossegue a tenente, novos casos chegavam todo fim de semana – e já não se restringiam a alunos da Inês Penha. Dezesseis adolescentes tentaram se matar naquele fim de ano, segundo o levantamento feito pelo MPF.
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Exorcismo “coerente”
Muitos deles ficaram em observação da administração militar do hospital, que fazia visitas periódicas aos casos críticos. O jovial pastor Marcos Ribeiro, um carioca conhecido da molecada pela postura nada ortodoxa, foi chamado pelo hospital e aceitou o desafio de “fazer alguma coisa com esses jovens”:um coral. A apresentação veio depois de seis meses de ensaios no Hospital de Guarnição. Foi um sucesso. “A gente mobilizou a cidade, gente pra caramba, a igreja lotou. Veio gente do hospital, foram convidadas as autoridades”, conta o pastor. No fim do evento, diz, uma menina de 13 anos “se manifestou” de uma forma que o fez lembrar os relatos insistentes das garotas sobre um homem de capa preta: “Elas ouviam vozes”. Naquele momento, a menina se agachou contra a parede e, conta o pastor, “corporalmente você via um profundo medo, a postura de medo, de meter a mão no ouvido, falando ‘corda, corda, vai pra corda, você não vale nada… Se mata, ninguém gosta de você’, aquela coisa todinha. Foi uma coisa assim fantástica”. Quando o pastor se aproximou dela, foi cercado por um grupo de militares que estava ali a convite da administração do hospital. Queriam manter a ordem. “Eles me cercaram e falaram assim: ‘Sem exorcismo aqui’”. Segundo ele, sua resposta foi: “Vocês estão me confundindo com outra pessoa. Façam o seu trabalho e deixem eu fazer o meu”.
O que se seguiu, nas palavras dele, foi um “exorcismo coerente”. “O que houve foi um diálogo. E dentro desse diálogo houve ali a manifestação do poder, da graça de Deus. E não o sensacionalismo”, diz. Ele disse, por exemplo, como ela tinha sido importante para convencer os colegas a cantar: “Eles só estão aqui porque os medos que eles tinham você colocou tudo pra trás. E agora é você que tá com medo? Levante e olhe pra esse povo. Cadê o homem de capa preta agora?”. Ela se acalmou, diz ele.
Pouco depois, em meados de 2006, o pastor Marcos ajudou outro adolescente, dessa vez salvando-o da morte. Ele estava comemorando seu aniversário na casa de um amigo quando o vizinho, um jovem de 17 anos, pediu uma corda para amarrar a rede. Em seguida, entrou em casa e aumentou o som. Foi isso que os impeliu a entrar na casa. “Ele tava lá no toco mesmo, bem pendurado mesmo, e já tremendo.” Cortaram a corda a tempo. Já no hospital, o rapaz disse que havia brigado com o pai, que tinha predileção pelo irmão mais novo, embora ele cuidasse da casa com afinco. Embebedou-se antes de “entrar na corda”. Quando voltou a si, perguntou ao pastor por que ele tinha interrompido a sua morte. “Porque tu não tem o direito de tirar a tua vida”, ouviu.
Os surtos se repetiram durante todo o ano de 2006. Não eram mais apenas os alunos do Inês Penha, mas jovens de outras escolas e outros, que não conheciam as vítimas da escola. Segundo a investigação do MPF, realizada pelo analista pericial em antropologia Walter Coutinho Jr., nove jovens morreram e 26 tentaram se matar entre 2005 e 2006. Outros 21 adolescentes e jovens chegaram tristes, “atordoados” ou com “perturbações auditivas” ao Hospital de Guarnição. O relatório chama atenção para a tendência dos suicídios “em cadeia” ou “por contágio”, dentro de um mesmo grupo familiar ou de amigos. Um fenômeno bem definido na literatura psicanalítica, destaca o documento: “O desdobramento da ocorrência de um suicídio em novas tentativas e/ou casos consumados resulta na constituição de modelos de comportamentos autodestrutivos no interior de famílias ou entre pares. A reiterada ocorrência de suicídios acaba suscitando certa aceitação e familiaridade com a ideia, que se torna uma espécie de resposta psicológica e culturalmente modelada para alguns dilemas, inclusive com a realização de tentativas por indivíduos muito jovens de forma experimental”.
Dedos apontados para o professor
A figura do homem de capa preta tornou-se pesadelo de todos na cidade, em especial daqueles que tinham filhos adolescentes. O representante da Fundação Nacional do Índio (Funai) e ex-vice-prefeito, André Baniwa, era, na época, diretor da Foirn. Chamou duas das meninas que haviam tentado se matar para ouvi-las na sede da organização. “Elas falavam que viam alguém na visão delas, que você não enxergava junto com elas, porque essa visão de homem preto… Não é que ele é preto de cor, mas de capa preta, mas proibia ela contar o que estava acontecendo com elas. E essa morte se apresentava então, o suicídio, de amarrar no pescoço, era de tanta insistência no ouvido delas desse homem.”
Nem a lei, nem a cruz arrefeceram os ânimos naqueles dias. A polícia, a Funai, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o governo municipal criaram comissões para investigar o caso e dar apoio aos adolescentes e suas famílias. Algumas organizações que trabalhavam com os jovens, como o Conselho Tutelar e o Projeto Sentinela, ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social, organizaram “passeatas pela vida”, enquanto a polícia civil investigava as mortes. Todos queriam um culpado. Foi assim que as histórias sobre o professor ganharam corpo e respaldo.
O que se dizia era que um professor da escola Inês Penha e um ex-prefeito haviam feito um pacto com o diabo. O prefeito havia entregado a alma de seu filho, um jovem que morreu em 2004 em um racha de moto, causando grande comoção. O professor teria preferido entregar a alma de seus alunos. Era para isso que os levava ao cemitério da cidade. Seguindo as “pistas”, a polícia colocou câmeras de segurança em cemitérios e fez campanas nos locais suspeitos, sem sucesso. Um delegado de Manaus foi especialmente designado para o caso, que os policiais buscavam enquadrar no artigo 122 do Código Penal. Entre os crimes contra a pessoa de que trata o artigo está “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”, sendo a pena duplicada “se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência”. Ouviu cerca de 30 testemunhas – e a maioria delas apontou a culpa do professor, bradou ele à imprensa nacional, que passou a cobrir a história: “Tomamos depoimentos de muitas pessoas que tinham ligações com as vítimas e elas indicaram esse professor como a pessoa que induzia os jovens a se suicidarem”, afirmou o delegado Marco Engel ao jornal A Crítica. “Só que, com a notícia de que ele seria indiciado, o professor sumiu da cidade”, disse então.
De fato, o professor acabou saindo da cidade; sua vida ali tinha se tornado insuportável. Era ele, afinal, o “capa preta”, responsável por aquela desgraça toda. Pouco depois de ter se mudado para Manaus com a família, onde continua até hoje, trabalhando para a Secretaria Estadual de Educação, sua casa em São Gabriel foi invadida por uma diligência das polícias Civil, Militar e Federal, cumprindo um mandato de busca e apreensão. Para os habitantes da cidade era essa a confirmação da sua culpa. Pouco depois, o delegado de Manaus pediu sua prisão preventiva e seu indiciamento. Ambos os pedidos foram negados pela Justiça. A investigação morreu ali. No ano seguinte, o assunto sumiu da imprensa. Hoje é difícil encontrar qualquer vestígio da investigação encerrada há nove anos. O inquérito arquivado não consta nos arquivos da Polícia Civil local, pois só os dos últimos cinco anos são guardados, de acordo com o investigador Alexandre Galvão Neto. Ele também não foi localizado pelo arquivista do tribunal.
Mas, no imaginário da insone São Gabriel, o professor é ainda o grande responsável pelos suicídios das adolescentes. A Pública conseguiu localizá-lo, depois de muito insistir com parentes, que reiteraram como a experiência foi devastadora. O professor enviou um e-mail negando veementemente todas as acusações, mas pediu que não fosse publicado.
Os suicídios continuaram. E se espalharam com furor tanto para a cidade de Santa Isabel do Rio Negro, 250 quilômetros ao leste em direção a Manaus, quanto pelas comunidades do interior do Amazonas. Conforme a investigação do MPF dentro dos limites de São Gabriel, em 2007, houve nove suicídios no interior, três no rio Uaupés, dois no rio Papuri e um no rio Umari. Em 2008, 11 suicídios no interior, sete deles no rio Tiquié, e outros no rio Uaupés, rio Içana, no rio Negro e na terra Yanomami. Em 2009, sete suicídios, dois no rio Uaupés, um no Rio Papuri, e dois na cidade, de jovens provenientes da comunidade de Tapira Ponte, no rio Negro. Em 2010, 11 suicídios, seis no Uaupés, três no Tiquié, um no igarapé Japu e um no rio Negro, segundo o MPF. Mas os dados contrastam com o registro da Secretaria de Saúde municipal, que aponta apenas cinco, no total, no município de São Gabriel naquele ano. Também há divergência nos dados de 2011: 16 suicídios segundo o Mapa da Violência, apenas um de acordo com dados enviados a pedido da Pública pelo coordenador de Vigilância Epidemiológica Municipal de São Gabriel da Cachoeira, que registrou também um suicídio em 2012, nenhum em 2013, três em 2014 e um neste ano – que não é o de Maria.
Segundo os indígenas, porém, a partir de 2009, o drama também atingiu Iauaretê, a “cidade dos índios”, um aglomerado urbano na fronteira com a Colômbia, distrito de São Gabriel, no alto rio Uaupés. Almerinda Ramos de Lima, a já citada sobrinha de Zeferino, era então a líder da organização de mulheres local. “Era todo mundo, jovens entre 15 ou 14 pra lá, até os adultos, tanto homens e mulheres. Senhores e senhoras. A gente não entende por que, não sei se é por causa da bebedeira, sei lá, se enforcavam sempre. Toda vez, toda vez era assim. No dia da festa, a gente encontrava pessoas assim, enforcadas…”, conta. A própria Foirn, diz ela, fez muito pouco. Não houve mobilização, seminário, discussão do problema, lembra: “E assim ia. Só que assim o como que a pessoa tava se sentindo, a gente nunca chegou a descobrir. Por que a pessoa chegou a fazer isso”.
Em Santa Isabel, uma espécie de irmã menor de São Gabriel, mais interiorana, os suicídios explodiram entre 2008 e 2009. Foram 13 mortes nesses dois anos, em uma população de 18 mil habitantes. Nessa época, mais de 60% da população, segundo o censo de 2010, continuava a morar entre os inúmeros igarapés e rios interior adentro. Como em São Gabriel, culpava-se um pacto mortal, cartas de despedida que rodavam pela cidade, brigas familiares e alcoolismo. Os jovens escutavam vozes. Em 15 dias, no mês de setembro de 2008, houve três suicídios e quatro tentativas foram feitas, segundo a paróquia local. “Era droga, maconha, cocaína, não sei o que é”, opina hoje a vereadora Sandra Gomes Castro, cuja história é a marca do que aconteceu naquela época sem fim.
O primeiro a partir foi seu filho Ibrahim, garoto exemplar, estudioso, e uma das poucas vítimas cuja existência está registrada na internet. Está ali: aprovado na Universidade Federal do Amazonas (Pedagogia, vespertino) e na Universidade do Estado do Amazonas (Direito, noturno). “Ele vivia muito só pra estudar, era um menino que não bebia, não fumava, não gostava de andar em festa, não tinha vício de nada. Era um menino que toda mãe queria ter, nunca me deu trabalho, nunca me deu tristeza, nunca me deu decepção”, diz Sandra. Morava em Manaus com um primo em 2008, quando se enforcou, aos 22 anos, no próprio apartamento. Sua morte ainda não assentou no coração da mãe. “Chegou ao meu conhecimento que ele se suicidou; só que assim, até hoje eu não sei da verdade.”
Do segundo filho, diz, já esperava “qualquer coisa”. Tinha um nome, Charles, mas era conhecido, conhecidíssimo na cidade, por outro: Bruninho. “Ele começou a conseguir droga muito cedo, assim com uns 13, 14 anos já começava a sair, não obedecer o horário que eu estipulava para voltar pra casa. Ele já tinha tentado três vezes, sempre sob efeito de drogas, e na quarta vez ele veio a falecer.” A primeira tentativa foi ali mesmo, na espaçosa casa da família a uma quadra da praça principal da cidade. Foi resgatado pela irmã mais nova. Na segunda vez, estava no batalhão do Exército em São Gabriel, onde serviu durante o período obrigatório. A terceira tentativa veio uma semana depois que o irmão faleceu. “Quando ele acordava, fazia de conta que não tinha acontecido nada. Quando ficava bom, voltava ao normal, nada.” Charles se matou em 15 agosto de 2009, aos 19 anos.
Ela conta assim a história do filho pródigo. Ele queria ir a uma festa na comunidade e pediu um motor de lancha para poder atravessar o rio. Já estava bêbado, ainda de tarde, e o pai ralhou. O filho ameaçou bater nele, na mãe, nos irmãos, e o pai resolveu dar queixa à polícia. O rapaz ficou em casa com a mãe. “Aí começou aqui: ‘Ai, eu vou me matar, vou me matar’. Toda vez ele dizia isso, mas nunca fazia”, lembra a mãe. Depois de algumas horas fechou-se no quarto. Sandra verificou ainda que ele estava dormindo e foi deitar. “Eu estava dormindo… Assim, meio que dormindo acordada, eu senti assim ele no meu pé, assim: ‘Mãe, me tira logo daqui’. Aí eu dei um pulo, olhei a porta e não tinha ninguém.” Chamaram a polícia, que arrombou a porta do quarto do filho. Ele se enforcara no próprio beliche.
Sandra ficou inconsolável. “Eu chorava muito dia e noite, eu não comia, não tinha mais o prazer de lavar nem comprar uma colher. A princípio eu não queria fazer tratamento, aí eu chegava em Manaus e lá me recaía tudo assim, os ambientes que eu andava com ele, os lugares, a faculdade dele…”. Afinal, em lugar do benzimento, Sandra tomou um antidepressivo e seguiu tratamento psiquiátrico em Manaus durante alguns meses. Hoje, está em paz com a sua dor. Conta toda a sua história de um impulso, na sala da sua casa, com apenas uma ou duas pausas para retomar o fôlego e entreter as lágrimas. A conclusão da história, vem na despedida, já no portão: “O que eu posso dizer é que meus filhos, que foram meus amores, eu sei que eles serão eternamente minhas dores”.
O massacre do desenvolvimento
Eleito presidente do Conselho Tutelar em 2006, no auge da tragédia, o pastor Marcos Ribeiro – que naquele ano fizera o “exorcismo coerente” – percebeu que havia algo em comum entre as meninas que tentaram suicídio: todas tinham deixado suas comunidades para continuar os estudos na cidade. Uma constatação ampliada por uma pesquisa realizada pelo Instituto Socioambiental e a Foirn em 1.444 domicílios em 2003-2004, que revelou que a maior parte da população urbana não havia nascido na cidade, sendo 43,8% proveniente de outras localidades da região do rio Negro. O principal motivo da mudança, citado por 36,6% dos entrevistados, foi a busca da educação secundária – a mesma oferecida corajosamente na Pamaáli, como forma de fixar os Baniwa no seu território. “O que acontece? Geralmente, os pais dessas crianças deixam com o tio, a tia e voltam pra a comunidade”, prossegue o pastor. “Elas ficam à mercê de circunstâncias, e elas são variadas. O que ela vê na comunidade? Um povoado cercado e rio, em que todo mundo ali é aparente, todo mundo se olha, todo mundo se vê. Mas as crianças vêm aqui desamparadas. E elas estão vendo as coleguinhas delas, haverá esse choque aqui. Que tipo de choque? Os filhos dos militares, por exemplo, vêm aqui na escola e aí eu começo a olhar, as crianças olham, que ele tem e eu não tenho, ele vai lanchar e eu não lancho…”
Há mais um elemento importante, e recente, que deve ser levado em conta, comenta o secretário de Obras da cidade, Celso Delgado. “Foi essa época de muito êxodo rural por causa dos programas sociais do governo federal. Normalmente, quando eles descem, ficam três meses. Com a questão do Bolsa Família passaram a descer mais e a vir morar aqui mesmo.” Investigador da Polícia Civil licenciado –participou da investigação dos suicídios da escola Inês Penha –, ele conta que a prefeitura costuma oferecer lotes de terra de 12 metros por 25 metros aos recém-chegados, subdivididos em até quatro casas, dificultando o provimento de infraestrutura. “Nessa época houve um crescimento muito grande desses bairros, como Thiago Montalvo, Dabaru, Beira-Rio, Assentamento Teotônio Ferreira, Miguel Quirino, bairros desorganizados. Foi quando bateu mesmo esse choque cultural. Eles não tinham noção do que era morar numa cidade. Eram tudo de baixa renda, a maioria vinda de comunidade”. As benesses do Bolsa Família não sobem o rio.
Segundo um levantamento do Exército, apresentado didaticamente em um powerpointpara a reportagem da Pública, há 5.593 famílias atendidas pelo programa em São Gabriel, ou 27.965 pessoas: 67% da população. “O desenvolvimento é massacrante”, resume, solene, o general Antônio Manoel de Barros, comandante da Segunda Brigada de Infantaria na Selva (2o BIS), cuja sede fica num local privilegiado, de onde se vê o rio com clareza e suas cachoeiras. “É o um rolo compressor, e não há um timing para as coisas boas. Os efeitos colaterais são muito acelerados.”
É ele quem comanda a maior parte do impressionante aparato militar que se espalha pelo alto e médio rio Negro: sete pelotões especiais de fronteira, o 3o Batalhão de Infantaria de Selva, em Barcelos, oComando de Fronteira Rio Negro e 5º Batalhão de Infantaria de Selva, o 2º Batalhão Logístico de Selva, o Pelotão de Comunicações de Selva e o 22º Pelotão de Polícia do Exército, em São Gabriel da Cachoeira. São ao todo 2.500 homens, cerca de 2.100 em São Gabriel da Cachoeira, ou 10% da população urbana.
O fortalecimento do aparato militar ocorreu em 2004. Nos anos anteriores, houve alguns confrontos entre o exército e as Farc nas fronteiras com a Colômbia e Venezuela. “Aí o Exército acelerou um processo, ou seja, ele fortaleceu a estrutura existente, criou um comando de brigada. Com um oficial-general. E junto com isso vieram muitas estruturas”, diz o general. “O impacto econômico do Exército aqui é enorme”.
A chegada dos militares transformou São Gabriel na cidade brasileira mais desigual do país, segundo o ranking do Atlas de Desenvolvimento Humano 2013, da ONU. Embora a renda média per capita tenha subido quase 50% nas últimas duas décadas, a cidade tem índice de desigualdade de 0,8, sendo 1 a pior nota (a média do Brasil é 0,5). “É fácil entender, porque, se você tem grande quantidade de militares, o salário mínimo vai fomentar isso aqui”, diz o general. Enquanto ele fala, outro oficial projeta a caprichada série de slides ilustrativos na sala de reunião da sede da Brigada. Ele vai apontando: “Veja, com os efetivos de todas as organizações militares, a folha de pagamento, o impacto, você veja que a gente tem um impacto de R$ 8 milhões”. Hoje, os gastos da corporação representam 41% do PIB municipal. “E você vai ver que em dez anos aqui – claro que não é só por causa disso, mas também por isso – saiu de R$ 99 milhões para 209 milhões, ou seja, dobrou.”
“Dizem que há três grandes profissões aqui: agente de saúde, professor e militar”, continua o general, explicando a “estratégia da presença” do Exército Brasileiro, encabeçada pelo 2º BIS. Desde que assumiu, há pouco mais de um ano e meio, o general instalou uma patrulha do Exército na ilha das Flores (a alguns quilômetros rio acima de São Gabriel) que faz batidas cotidianas entre os índios. Os soldados costumam encontrar garrafas de pinga amarradas debaixo do barco, misturadas a mercadorias, debaixo de cargas de peixe. “A danada da cachaça. Que é terrível. Isso corrói realmente e é um problema seríssimo aqui. E é por isso um dos motivos que temos aqui um posto, porque aqui temos poder de polícia.”
A bordo de embarcações, os soldados sobem os rios também para fazer o alistamento militar nas comunidades, abrindo um novo ciclo de integração indígena ao projeto nacional. “O soldado indígena na selva não tem igual. Nos interessa, sim, que este representante indígena esteja conosco, porque ele faz parte do estrato social nosso. E ele vai ser também uma liderança”, diz, orgulhoso, afirmando que mais de 35% dos soldados da brigada são indígenas. “O Exército é um estrato da sociedade”, reforça, querendo com isso dizer que espelha sua composição social.
Há relatos de suicídio também entre os indígenas militares lotados no 2o BIS, embora não haja, segundo o general, nenhum trabalho específico para contra-atacar esse problema. “É claro que você trabalha com dados estatísticos e aqui [no Exército] não há nada fora da normalidade.” A Públicarequisitou dados sobre as vítimas via Lei de Acesso à Informação, mas o Comando do Exército negou duas vezes. Alegou que consolidar os dados daria trabalho extra, mas garantiu que, para cada suspeita de suicídio, um Inquérito Policial Militar é instaurado. Ou seja, os IPMs estão lá, mas, como quase tudo o que se refere ao suicídio na cidade, é mistério, é segredo, não se fala nisso.
Leia a reportagem completa no site da Agência Pública.