“Declaro e disponho como manifestação de última vontade que, quando de minha morte, minha mulher, Rita, e meus filhos, Jill e Bryan, e seus descendentes jamais aceitem a medalha de prata dos Jogos de 1972 na Alemanha Ocidental”, diz o artigo IX do testamento do atleta Kenneth Davis. Ele foi um dos jogadores norte-americanos que se recusaram a receber a medalha de prata da competição de basquete nos Jogos de Munique e, pela primeira vez na história, deixaram o pódio olímpico desfalcado durante uma premiação.
Os norte-americanos nunca haviam perdido uma partida olímpica. Até a final dos Jogos de 1972, os Estados Unidos jamais tinha entrado em uma olímpiada sem ter vencido a edição anterior da competição. Desde a primeira aparição do basquete nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, nenhum país havia conseguido barrar os ‘yankees’.
Em Munique, mais do isso, o que estava em jogo era a autoestima das duas maiores superpotências do planeta. Em plena Guerra Fria, materializada no Muro de Berlim, EUA e União Soviética dominaram o torneio olímpico de basquete até chegarem à final, disputada no dia 9 de setembro. Na 5ª final contra os soviéticos, os norte-americanos defenderiam sua invencibilidade contra seus grandes inimigos.
Confiantes, os norte-americanos chegaram até a partida final após uma sequência de 63 vitórias consecutivas. Apesar disso, a formação escalada para o jogo era a mais jovem a representar o país até o momento e havia estado presente em quadra por apenas 10 vezes. Ao contrário dos soviéticos, que já haviam jogado com o mesmo elenco centenas de vezes, os jogadores dos EUA não dispunham das mesmas jogadas automáticas que seus adversários.
A partida começou pouco depois da meia-noite, já no dia 10 de setembro de 1972. Os soviéticos trajavam uniforme vermelho. Os norte-americanos, camiseta branca.
“Eram os dois países mais poderosos do mundo lutando pela supremacia, no entanto a supremacia no basquete era nossa”, afirmou o ala Doug Collins, do time norte-americano. “Nós éramos os reis. E não havia qualquer dúvida que queríamos assegurar que esta mensagem fosse enviada e percebida”.
Mas foi a União Soviética, com seu jogo duro e mecânico, que saiu na frente na partida. O primeiro tempo foi vencido pelos soviéticos por 26 a 21. No segundo tempo, a diferença de 5 pontos aumentou para 10. A sequência invicta dos norte-americanos parecia estar chegando ao fim.
Com seis minutos para o fim do jogo, os norte-americanos começaram sua reação e conseguiram impor seu ritmo de jogo com maior velocidade e fluidez, fazendo cair a diferença no placar. A partida ficou dramática. Faltando apenas 10 segundos para o fim, os soviéticos estavam somente um ponto à frente – 49 a 48 – mas com posse de bola.
Os norte-americanos aumentaram a pressão e, após muita disputa, Kevin Joyce conseguiu interceptar um passe longo soviético. A bola girou no ar, solta. Collins agarrou-a e partiu para a cesta antes de ser empurrado por uma camiseta vermelha.
“Ele veio firme na minha direção, me empurrou e me fez chocar violentamente contra o alcochoado que protegia o pé da bandeja”, explica o ala dos EUA. “Bati a cabeça e fiquei nocauteado por um momento”.
Neste momento faltavam apenas três segundos para o fim da partida. Collins tinha de converter um lance livre para o empate e o outro para colocar os Estados Unidos à frente. E ele encestou os dois.
Os soviéticos colocaram a bola em jogo rapidamente no fundo da quadra buscando um atacante. Dois segundos mais se passam. Os Estados Unidos já se viam com a medalha de ouro no peito quando o árbitro brasileiro Renato Righetto interrompeu a partida por um pedido do banco soviético, que insistira em pedir tempo ainda quando Collins executava os lances livres. A comissão técnica da União Soviética exigia a devolução do tempo extra de 3 segundos. O juiz brasileiro deu apenas um.
O jogo acabou interrompido de novo. Foi então que William Jones, o secretário britânico da Fiba, interveio e ordenou que o relógio fosse recuado para restar 3 segundos. Até hoje os norte-americanos sustentam que Jones não tinha autoridade para fazer isso.
Jogo retomado, a campainha tocou encerrando a partida quando um longo passe dos soviéticos falhou. Novamente os jogadores norte-americanos comemoravam o ouro, acreditando que tinham vencido o sétimo título olímpico seguido. No entanto, o relógio do ginásio ainda estava sendo ajustado quando o jogo foi retomado. Depois de muitas reclamações dos soviéticos, os 3 segundos foram restabelecidos novamente.
Assim como os jogadores, o público já estava incomodado. Em meio a uma confusão total, os soviéticos colocaram a bola em jogo. Os norte-americanos, com os nervos à flor da pele e com medo de conceder uma falta técnica, não fizeram marcação pressão sobre Ivan Edeshko no fundo da quadra soviética. O passe longo desse atleta encontrou no garrafão do outro lado da quadra o jogador Alexandre Belov, que evitou Jim Forbes e Kevin Joyce e subiu para encestar. Em seguida correu loucamente em direção aos seus companheiros, braços abertos. 51 a 50 em favor da União Soviética.
“Escândalo! Nos roubaram o jogo!”, gritavam os jogadores dos EUA. Os dirigentes norte-americanos entraram com uma apelação contra o resultado que, depois de horas de análise dos juízes, foi negada. A União Soviética era a campeã olímpica. Uma catástrofe nacional para os Estados Unidos.
Na coletiva de imprensa depois do jogo, Herbert Mols, assistente técnico dos EUA, discutiu com o presidente do comitê de apelação, o húngaro Ferenc Hepp. Mols disse que o encontro foi dominado durante 39 minutos e 57 segundos pela União Soviética. “Mas eu jamais ouvi falar de qualquer partida que durasse 40 minutos mais 3 segundos”, exclamou. Ele perguntou sobre que regra os 3 segundos foram acrescentados.
Hepp explicou que os 3 segundos foram reestabelecidos para reparar o tempo faltante para o encerramento uma vez que o relógio só foi interrompido quando faltava 1 segundo. Hans Tenschert, o anotador do tempo e um dos três assistentes sentados à mesa de controle, disse que quando o árbitro de quadra parou o jogo faltava apenas 1 segundo. O árbitro consultou os assistentes da mesa e ninguém falou que deviam ser jogados ainda 3 segundos. Apenas sinalizaram com a mão.
Os norte-americanos estavam convencidos que haviam sido prejudicados. Aqueles 3 segundos ficariam gravados na história do esporte, certamente como os mais sofridos para os torcedores norte-americanos. Os jogadores tinham duas escolhas: aceitar a medalha de prata ou chutar o balde e se afastar soltando fumaça pelas ventas. Escolheram esta última, e pela primeira vez na história olímpica, o lugar de segundo colocado no pódio ficou vazio e o conjunto de medalhas de prata não pôde ser entregue.
“O time americano ficou irritado, mas sem razão. Era a guerra fria. Os americanos, à parte seu natural orgulho e amor pela pátria, não queriam perder, sequer admitiam perder. Não queriam perder em qualquer esporte, muito menos no basquetebol.”, declarou Ivan Edeshko, autor do passe para a vitória dos soviéticos.
“Se tivéssemos sido normalmente vencidos, teria orgulho de exibir minha medalha de prata. Mas nós não fomos vencidos, fomos roubados”, disse Mike Bantom, jogador dos EUA.
Alexander Belov, o soviético que fez a cesta da vitória, morreu exatos seis anos depois, aos 26 anos. Sergei Belov, reconhecido mais tarde como o melhor jogador europeu de basquete de todos os tempos, foi o primeiro jogador internacional a ser eleito para o Hall da Fama desse esporte.
*A série Grandes Momentos Olímpicos foi concebida e escrita no ano de 2015 pelo advogado e jornalista Max Altman, falecido em 2016.