Imagine os direitos mais básicos de um cidadão sendo controlados pela lógica da militarização. É isso que acontece no cotidiano dos jovens negros e negras das favelas do Rio de Janeiro. Quem pensa que o único problema levado pela UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras, pelo Exército) e por outros entes armados do Estado ou de organizações criminosas (como as milícias) é a questão das mortes nas favelas se engana. Essa, apesar de ser faceta mais trágica desta realidade, expõe apenas uma sequência de direitos negados que acabam por levar inclusive a esta conclusão: a negação do direito à vida. Saúde, educação, direito à comunicação, direito das mulheres, dentre outras, são alguns dos problemas expostos pelo Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro no relatório do projeto “Militarização das Favelas: Impactos na Vida dos Jovens Negros e Negras”.
Wikicommons
Exército durante ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em 2008
Evidenciando o o caráter mobilizador e o público interessado na questão, o relatório foi lançado no final de agosto para uma plateia formada não por representantes de governo, mas por moradores de favela, movimentos sociais, mães que perderam seus filhos pelas mãos da polícia dentre outros.
Um dos pontos que mais chama a atenção no relatório é a construção de sua metodologia de pesquisa. Através do que denominam “Cartografia Social” construída pelo processo autônomo e solidário de grupos sociais dos jovens negros e negras em sua maioria moradores de favelas e bairros de periferias . Conforme ressaltado por Fransergio Goulart na apresentação, esta pesquisa também disputa politicamente o caráter do que significa a cartografia e coloca os moradores das favelas diretamente inseridos na produção do conhecimento acerca do local da pesquisa. Além dos mapas envolvidos numa cartografia, a pesquisa utiliza a narrativa das vivências e percepções do território. O processo traz, assim, a linguagem da periferia e da favela para designar os problemas que desejam apontar.
Dentre os principais impactos trazidos pela militarização no relatório estão: a venda do morro para outra facção ou milícia; assédio e abuso sexual realizados por soldados das UPPs contra as mulheres; abuso de autoridade contra quem andar sem documento de identidade; cerceamento de festas inclusive em residências familiares; constante intimidação a comunicadores comunitários; extorsão e assédio a moto-taxistas; militarização do espaço escolar, sendo apropriado por policiais; e o cerceamento do direito de livre circulação dos jovens pelos territórios. Além de todos esses efeitos, destacamos separadamente a seletividade homicida, onde o índice de mortes de jovens negros cresce inclusive em áreas tidas como pacificadas. Os dados sobre autos de resistência, ou seja, homicídios cometidos pela ação policial apontam que mais de 70% dos mortos são negros ou pardos. O Fórum de Juventudes alerta nesse sentido para a necessidade de enfrentamento de um racismo institucionalizado e para a necessidade de desmilitarização da política de segurança pública para garantir a vida dessas pessoas.
Para mães, quem deve ser pacificado é o Estado.
Irone Maria sofreu em casa um dos piores efeitos da militarização. Ela teve seu filho atingido por tiros de fuzil quando andava de carro com amigos no conjunto de Favelas da Maré e soldados do Exército abriram fogo contra o carro. Hoje, Irone sequer consegue trabalhar fora, pois dedica-se aos cuidados com o filho que ficou paraplégico, teve uma das pernas amputadas e perdeu parte do pulmão por conta dos tiros.
[Protesto de moradores de favelas contra o Estado que mata, na Central do Brasil| Foto: Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro]
Irone relata ainda que o carro onde seu filho estava foi vítima de uma arapuca montada pelos soldados. Segundo ela, o carro já havia sido parado numa blitz. Os militares deram a versão de que o carro teria ultrapassado uma barreira sem se identificar e por isso teriam atirado, entretanto a versão foi desmentida. Segundo sargento da Aeronáutica que estava no carro com o filho de Irone, os soldados estavam escondidos quando atiraram no carro. Sobre a importância do relatório, ela enfatiza o ato de dar voz aos que se sentem ameaçados: “É legal por que vai denunciar tudo que eles fazem. Muitas pessoas não denunciam porque tem medo, porque são ameaçadas e se calam.”
“O sangue dos nossos filhos foi derramado ali em nome de uma política de segurança pública mentirosa para vender imagem bonita para gringo ver.”. É assim que Ana Paula Gomes vê a militarização nas favelas do Rio de Janeiro. Seu filho, Jhonatan foi assassinado por policiais da UPP quando conversava com amigos na favela de Manguinhos. Ana Paula luta por justiça até hoje. Somente depois de informações publicadas em um jornal que mostrava mortes anteriores praticadas pelo policial que matou seu filho, que o mesmo foi indiciado. Com relação ao termo “pacificação”, Ana Paula afirma: “A favela não precisa ser pacificada. Quem precisa ser pacificado é esse Estado genocida.”.
Não é só o direito à vida que é negado.
Apesar de o efeito mais forte e devastador da política de militarização ter como consequência o grande número de mortes de jovens negros e negras, outros direitos têm sido afetados cotidianamente por esta política segundo aponta o relatório e a fala dos presentes no lançamento. Gizele Martins, comunicadora comunitária do conjunto de favelas da Maré apontou as dificuldades que os comunicadores têm encontrado para realizarem seus trabalhos diante da ostensiva presença de agentes armados. Segundo ela, ameaças são constantes e também há dificuldade de circular com materiais em locais de facções diferentes e milícias, criando uma espécie de fronteira invisível nesses territórios.
Saúde e educação também sofrem com os problemas. Se antes havia ronda escolar da Guarda Municipal, agora a UPP entrou nas escolas fazendo atividades e até controlando disciplinas. Neste quesito relatos também evidenciam um controle dos corpos dos jovens e apropriação dos espaços escolares para atividades privadas de soldados, milícias dentre outros. Para se ter ideia, há relatos de jovens em área de milícia que são proibidos de pintar o cabelo de “blondo”.
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A relação da saúde e de outros direitos também está intimamente ligada ao direito de circulação dos moradores de favelas e periferias pelos territórios. Muitas vezes é difícil para moradores de um local dominado por uma facção ir ao posto de saúde localizado em território dominado por outra. E quando procura o hospital, é muitas vezes encaminhado para o posto.
Monique destaca ainda a naturalização dos preconceitos construídos atingindo diretamente a vida dos moradores de favela: “Um moleque de favela é muito difícil se sentir a vontade num espaço como o CCBB, por exemplo, no cinema… Na praia, porque a gente não pode mais ir à praia.”. Como principal inimigo nessa luta, Monique destaca a mídia comercial e seu papel atualmente: “Ela que tá formando identidade, subjetividade. Então, para mim ela tem um papel fundamental que tem que ser atacado. Nós temos de pensar em estratégia de comunicação.”.
Para dar continuidade a este trabalho e aprimorar a comunicação entre os moradores de favela, o Fórum das Juventudes lança ao fim do relatório a ideia de construção de um aplicativo para centralizar as denúncias de violações aos direitos no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense. Por fim, o relatório aponta uma crítica às instituições que aceitam mediações com o processo de militarização: “queríamos deixar claro que enquanto Fórum de Juventudes RJ atores como algumas associações de moradores e algumas ONGs situadas nas favelas quando aceitam dialogar e mediar com esse processo de militarização acabam legitimando tudo isso que as juventudes denunciaram. ”. Para aqueles que os acham radicais, deixam um recado direto: “Radical é o ESTADO RACISTA que nos extermina todo o dia .”.
Texto publicado originalmente pelo Portal Ibase com o título Militarização das favelas retira direitos de moradores, aponta relatório