Nos últimos meses, entre as várias disputas que tomaram corpo no país, uma delas tem um caráter, ao mesmo tempo, político e semântico: o afastamento da presidenta da República, Dilma Rousseff, foi um golpe de Estado ou não? Para o ex-ministro da Justiça e advogado defensor de Dilma durante o processo de impeachment, José Eduardo Cardozo, não há dúvida de que o aconteceu no Brasil foi um golpe. “Não é por acaso que o emprego dessa palavra é o que mais irrita as elites conservadoras do Brasil hoje. Quando a verdade é dita, os que querem escondê-la ficam incomodados”, disse Cardozo durante o lançamento do livro “É Golpe, sim!” (Editora Sulina), que reúne artigos do deputado estadual Adão Villaverde (PT), que ocorreu na noite desta segunda-feira (17/10), no auditório do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários).
Guilherme Santos/Sul21
Ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, participou do lançamento do livro “É golpe, sim!”, de Adão Villaverde
O livro lançado por Adão Villaverde deixa explicitado já no título essa intenção de disputar o sentido do que está acontecendo no país. “Este livro tenta fazer uma narrativa sobre o ataque à democracia brasileira e ao estado democrático de direito. Além disso, faz uma análise sobre os impactos do golpe no Rio Grande do Sul e trata também do tema do entreguismo dos recursos do país que expõe a dimensão internacional do golpe”, disse o parlamentar na abertura do ato que marcou o lançamento do livro, que contou, entre outros, com a presença do ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra, do ex-prefeito de Porto Alegre, Raul Pont, e da presidente do Centro de Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS – Sindicato), Helenir Aguiar Schürer.
José Eduardo Cardozo iniciou a sua fala, lembrando que o ex-Advogado Geral da União, Fábio Medina Osório, abriu uma sindicância contra ele por ter utilizado a palavra “golpe” para descrever o que estava acontecendo no país. O processo que culminou com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, assinalou, começou no minuto seguinte à confirmação do resultado da eleição presidencial em 2014. “Para eles, se tratava de uma luta política de vida ou morte. Eles pensavam que ganhariam as eleições de 2014 e, na apuração, houve um momento em que acharam que tinham vencido e nós chegamos a achar que tínhamos perdido. Mas nós acabamos vencendo. O sentimento de frustração das elites conservadoras se expressou até na imprensa naquele momento, com comentários sobre a população de determinadas regiões do país que não saberia votar”.
Após a confirmação do resultado, lembrou o ex-ministro da Justiça, eles começaram imediatamente a questionar a legitimidade da eleição, levantando suspeitas sobre o funcionamento do sistema de urnas eletrônicas. “Eles sabiam que, uma vez que Dilma tomasse posse e a crise econômica fosse superada, não voltariam ao poder tão cedo. Por essa razão, iniciaram ainda em 2014 um processo de deslegitimação da presidenta eleita”. Para Cardozo, o processo de impeachment que acabou ocorrendo no Brasil não foi uma invenção original, mas seguiu o novo modelo de golpe, substitutivo dos golpes militares, aplicado em Honduras e no Paraguai. Um golpe com uma tripla dimensão: parlamentar, jurídica e midiática.
O advogado destacou o papel desempenhado pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na construção do processo do golpe. “Eles precisavam de um fato de 2015 para abrir um processo de impeachment contra a presidenta Dilma. Eles não tinham nem fatos nem maioria para isso. No entanto, as investigações da Operação Lava Jato acabaram atingindo lideranças do PMDB, entre elas Eduardo Cunha, que controlava cerca de 100 deputados. Ele era um verdadeiro partido na Câmara. Quando ocorreu uma operação de busca e apreensão contra Cunha, ele veio a público dizer que estava rompendo com o governo. Quando foram descobertas as contas dele no exterior, Cunha disse que havia uma conspiração coordenada pelo governo e ameaçou abrir um processo de impeachment, caso o PT votasse a favor de sua cassação”.
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Cunha sabia que precisava de um fato de 2015 para abrir o processo de impeachment e articulou, junto com a oposição, a tese das “pedaladas” e dos decretos de suplementação orçamentária que, até então, sempre foram aceitos pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A construção dessa tese, disse Cardozo, envolveu um processo de evidente burla e desvio de poder. “No momento em que Cunha se juntou à oposição, nós perdemos a maioria na Câmara”, resumiu o ex-ministro da Justiça, que lembrou uma frase do senador Romero Jucá para definir o que aconteceria em seguida: “Temos que parar com a sangria”.
Neste contexto, José Eduardo Cardozo lembrou qual é a definição de golpe: “é a destituição de um presidente eleito sem suporte constitucional. É uma ruptura com a Constituição e com a Democracia”. O advogado de defesa de Dilma relatou também que todo esse processo foi marcado por absurdos como quando, por exemplo, Janaína Paschoal acusou Dilma de ter orientado o ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin, a realizar as chamadas “pedaladas”. “O argumento que ela utilizou é que, como Dilma e Arno eram muito próximos, seria óbvio que tivesse ocorrido tal orientação. O detalhe é que, em 2015, Arno Augustin não era mais secretário do Tesouro, o que, para Janaína Paschoal, não fez nenhuma diferença. As teses da acusação foram mudando ao longo do processo. Foi um escândalo. Vimos senadores falando que a defesa de Dilma poderia falar o que quisesse que não faria não diferença, pois o veredito já estava decidido”.
Cardozo contestou ainda o argumento de que, no processo do impeachment, teriam sido seguidos todos os ritos legais. “A expulsão de Olga Benário do Brasil para as mãos dos nazistas, chancelada pelo STF, também seguiu os chamados ritos legais”, observou o advogado que relatou uma conversa com um estudante de Direito que o questionou por ter feito a defesa da presidenta Dilma. “O fato de o senhor ter participado desse processo não serviu para legitimá-lo? Não seria melhor não ter participado do mesmo?” – questionou o estudante. Cardozo relatou que essa pergunta o inquietou, mas ele acabou concluindo que o papel da defesa no processo contra Dilma não foi o de convencer o juiz, mas sim o de denunciar a sociedade o absurdo que estava acontecendo.
“A defesa foi um fator de denúncia para a sociedade. Construímos um processo que não pode parar. Conquistamos a democracia com muita luta. Nós lutamos para que a vontade popular fosse respeitada e temos o dever histórico de seguir nessa luta, denunciando esse governo golpista. Eu nunca pensei que teria que lutar de novo pela democracia no Brasil. Estamos diante de um processo onde não temos o direito de nos omitirmos”, concluiu.
*Publicado originalmente pelo site Sul 21