Tom Brandt
Glen Canyon: uma das 44 represas do rio Colorado tornou-se símbolo da manipulação de um ecossistema
Visto da aeronave que sobrevoa o deserto de Mojave, o rio Colorado é uma serpente esmeralda que marca com suas curvas preguiçosas a fronteira entre a Califórnia e o Arizona, um sulco que corta o desolado deserto em direção ao Golfo da Califórnia. Os povos nativos da região o chamavam “Lapay’há”, “água vermelha”, pela cor de suas águas saturadas de limo erodido do arenito cor de fogo dos planaltos de Colorado, Utah e Arizona. Hoje, do terceiro mais longo rio dos Estados Unidos (2.330 km) ramificam-se centenas de aquedutos e canais que arcam com o insustentável boom do sudoeste norte-americano. Um sistema mastodôntico de diques, represas e grandes obras hidrelétricas que o reduziram a pouco mais que o condutor hidráulico de um experimento de desenvolvimento agrícola e urbano na maior região desértica do hemisfério ocidental, com uma população atual de 35 milhões de pessoas.
O dado mais impressionante é a rapidez desse desenvolvimento: a exploração do Colorado, um curso d’água que levou milhões de anos para esculpir o Grand Canyon e criar algumas das paisagens mais extraordinariamente belas dessa região, começou há apenas cem anos. Hoje o Colorado é o rio mais controlado do mundo: uma miríade de órgãos estatais, administrações locais, distritos agrícolas e prefeituras em meia dúzia de Estados espremeram todas as gotas possíveis e aproveitáveis de suas águas.
Poço negro
O “mar” Salton é paradigmático do efeito que o ser humano e sua grande sede têm tido nesse território despudoradamente belo. O maior espelho d’água da Califórnia tem 55 quilômetros de comprimento, 20 quilômetros de largura e apenas dois metros de profundidade. Apesar do nome imponente, mais do que um mar trata-se de uma poça gigantesca, um corpo d’água inerte com mais de 20 mil quilômetros quadrados nos confins do deserto Anza Borrego, a poucos quilômetros da fronteira mexicana.
É um lugar insalubre e inquietante, assolado por um mau cheiro de embrulhar o estômago. Um poço negro que, paradoxalmente, tornou-se parada de descanso de milhares de pássaros migratórios e habitat de uma improvável fauna píscea afetada por doenças cíclicas devidas a desequilíbrios ecológicos que favorecem o crescimento desenfreado de algas nocivas e a propagação da bactéria que produz a toxina botulínica.
O Salton é emblemático da ação devastadora de uma engenharia ambiental que muitos experts hoje reputam claramente insustentável, e cuja conta quem pagou foi o rio Colorado, o motor hidrológico de toda a região. Hoje o terceiro maior rio dos Estados Unidos se desfaz em uma série de lamaçais a vinte quilômetros do mar, esgotado por uma das mais vastas redes de irrigação do mundo. Nas disputas que caracterizaram a divisão de suas águas, havia somente uma coisa sobre a qual todos estavam de acordo: dar o menos possível ao México. Aquele que outrora foi um rio majestoso é hoje pouco mais de um ribeirão, que antes de entrar no México sofre o último assalto: o All American Canal que, do lado mais alto da fronteira, faz um último saque de água para irrigar verduras e os campos das chácaras nas redondezas.
Phil Konstantin
Lago Salton: o maior espelho d’água da Califórnia é um lugar insalubre e inquietante
Revanche ambientalista
O precoce e repentino declínio do Colorado serviu para galvanizar o movimento ambientalista. O rio foi explorado primeiramente por John Wesley Powell, um coronel da União enviado pelo governo em 1869 para fazer levantamentos para a irrigação. A navegação através das corredeiras do Grand Canyon se revelou uma experiência mística para o coronel, e acabou convertendo-o em paladino da conservação.
Em cem anos a bacia hídrica do rio foi represada por 44 barragens. As duas mais simbólicas são a represa Hoover, na altura de Las Vegas, inaugurada em 1935 por Franklin Roosevelt como símbolo do renascimento após a grande depressão, e a represa Glen Canyon, que criou o lago artificial Powell, no lado mais alto do Grand Canyon. Essa última em particular tornou-se símbolo negativo da manipulação de um ecossistema que submergiu terras indígenas, destruiu o habitat de salmões e das comunidades nativas que dependiam dele e produziu em seu lugar milhares de campos de golfe no deserto, vastos distritos residenciais com canteiros irrigados, e milhões de casas com o ar condicionado sempre ligado. Glen Canyon, concluída em 1966, tornou-se também o símbolo de um movimento ambientalista que fez da luta contra as represas seu emblema.
O sentimento foi cristalizado em “The Monkey Wrench Gang” (a gangue da chave inglesa, em tradução livre), romance de Edward Abbey sobre um grupo de “ecoterroristas” que em 1972 acendeu a imaginação dos ecologistas radicais. Na história, um grupo de pessoas solitárias, idealistas e grosseiras, apaixonadas pelos grandes espaços do sudoeste e pelo deserto incontaminado, decidem impedir o avanço inexorável da civilização, a princípio destruindo outdoors e em seguida projetando um atentado à represa Glen Canyon para “libertar o grande rio” e com ele a alma indômita do Oeste Inspirados pela “gangue da chave inglesa” do título do livro, grupos como Earth First!, Greenpeace e Earth Liberation Front fizeram da ação direta uma prática de luta ambiental.
Hoje, o nível de confronto direto é talvez menor com relação aos anos 1980, mas o empenho radical foi metabolizado por um movimento mais amplo e institucional. Em 1981, um comando da Earth First! causou polêmica ao desenrolar durante a madrugada uma tela com uma rachadura simbólica de 80 metros de altura sobre a fachada da represa de Glen Canyon. Na época, o FBI lançou-se em uma vã caçada aos culpados. Hoje o meticuloso trabalho de associações como Living Rivers ou Glen Canyon Institute, que combatem nos tribunais federais a superexploração hídrica e a construção de novas barragens, fizeram com que a demolição de algumas represas, um conceito antes impensável, se tornasse “aceitável”.
Tradução Carolina de Assis
Texto originalmente publicado em Il Manifesto, diário italiano publicado por uma cooperativa de jornalistas. Dedica-se à cobertura de notícias locais e internacionais
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