(stephan) / Flickr CC
Bandeiras da República Popular Democrática da Coreia em Pyongyang, capital e maior cidade da Coreia do Norte
Um povo orgulhoso, uma guerra civil que nunca acabou, o maior país do mundo como inimigo e um regime socialista nacionalista. Estes são os ingredientes que formam o regime político da República Popular Democrática da Coreia, ou Coreia do Norte.
“O país é muito organizado, limpo e tem uma população com uma autoestima alta, mesmo com as dificuldades que tem de enfrentar”, diz o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Fagundes Visentini, que está lançando o livro “A Revolução Coreana – o desconhecido socialismo Zouche” em parceria com Analúcia Danilevicz Pereira e Helena Hoppen Malchionna, pela editora UNESP.
Visentini e Danilevicz participaram, em julho de 2014, da Missão de Estudo à República Popular Democrática da Coreia. “Quando eu dizia que iria pra lá as pessoas arregalavam os olhos”, conta.
Leia também:
'Pagode Russo': fotógrafo brasileiro registra cotidiano em Moscou no começo do fim da era soviética
Expansão de turismo e cobrança de ingressos em templos irritam monges e peregrinos budistas na China
Sepaktakraw e kabaddi: esportes populares na Ásia movem multidões e resguardam identidade cultural do continente
Dividida entre China e URSS, as duas maiores potências comunistas de então, a Coreia do Norte teve que viver tentando se equilibrar na delicada realidade política da região, muitas vezes afetada pelos embates e divergências entre os países vizinhos. Hoje, a principal barganha que o regime tem pra se defender é o armamento nuclear.
Em entrevista, Visentini afirma que a abertura do país não acontecerá nos moldes da abertura chinesa e que o regime norte-coreano vai apostar em uma “modernização sem reformas”.
Leia a íntegra da entrevista:
A Coreia tem uma linha ideológica específica. O que seria o socialismo Zouche? Quais as suas bases e as influências que ainda tem hoje?
Paulo Visentini: Ele tem “raízes tortas” como nacionalismo. Como o país está “ensanduichado” entre China, Japão e a Rússia, eles sempre prezaram muito pela sua independência. Isso tem raízes no passado, pois já foram ocupados pelo Japão, enfrentaram uma guerra civil quando os EUA ocuparam o sul e depois a divisão.
Logo após a morte de Stalin, o bloco socialista passou por um processo de mudanças. Começa crescer uma sensível rivalidade entre China e URSS por conta das políticas de Kruschev de mudar um pouco o perfil do socialismo. O movimento revolucionário coreano teve várias formações; aqueles que fizeram a guerrilha antijaponesa no norte, os que lutaram junto com o exército chinês, os que se refugiaram na URSS e aqueles que ficaram na clandestinidade no próprio país. Quando isso começa a acontecer, houve uma tentativa de uma facção do partido controlar o poder e seguir o que a URSS estava indicando, mas o que houve de fato foi a consolidação do Kim Il Sung no poder, que começa a formatar essa ideologia que é basicamente ter autonomia tentando depender o mínimo possível dos outros e receber apoio tanto da China quanto da URSS sem tomar partido de nenhum dos dois. Junto com uma hábil diplomacia, eles procuraram construir uma economia que sustentasse o país.
A partir dali, e por causa disso, começaram a ser resgatadas várias simbologias da Coreia tradicional, uma liderança que seja respeitada, por exemplo. Quando a coisa fica pior economicamente, já no fim da Guerra Fria, começam a pensar numa sucessão que seja para o seu filho – Kim Jong Il – para que não ocorresse lá nem o que aconteceu na URSS, ou seja, o fim, nem o que aconteceu n a China, a revolução cultural. Levou mais de uma década para que o partido aceitasse o sucessor.
Por fim, o Zuche também funciona pra dentro, pra legitimar o sistema e o poder. Ele dá às pessoas um orgulho de dizer “a Coreia do Sul só existe porque tem tropas americanas lá; nós não temos tropas estrangeiras aqui, portanto somos realmente independentes”. Existe a ideia de independência mas tem também a consciência que as pessoas têm disso, não é uma mera manipulação.
Por que ele é tão mal visto e ridicularizado pelo ocidente?
É uma forma do regime do sul se legitimar. Você ter um inimigo e atribuir tudo de ruim a ele sempre é algo importante. Do lado dos EUA existem duas coisas fundamentais: primeiro há um ressentimento, porque a Guerra da Coreia foi a primeira que eles não ganharam. O general que assinou o acordo do armistício escreveu que teve a “honra” de ser o primeiro general norte-americano que assina um cessar fogo que não é acompanhado de uma vitória. A questão da Coreia do Norte também serve para justificar a presença militar na Coreia do Sul. E, realisticamente, qual a importância de se estar ali? A resposta é a China, que é hoje uma economia que só cresce e com a qual os EUA não têm como competir, então eles usam esse apelo militar na região, procuram sempre fazer uma propaganda contra. A presença é importante pra manter os aliados alinhados e pra isso tem que existir esse regime que é um grande perigo.
Como funcionam os serviços públicos de saúde e educação?
É totalmente diferente do que existe no Brasil. O sistema de saúde é parecido com o cubano, ou seja, tem o médico que atende os quarteirões, vai até as casas, cuida das vacinas e assim impede que se propaguem doenças, com isso o impacto nos hospitais é bem menor. Como os salários são mais ou menos padronizados há uma abundância de médicos. Então eles também prestam serviços para outros países, como os cubanos. Às vezes gratuitamente, às vezes remunerados.
Com relação à educação a Coreia do Norte não é diferente da Coreia do Sul. A educação é altamente valorizada, intensiva e um método de avanço social. É uma questão que as pessoas têm que ter consciência, ela é focada na formação moral e política e isso é muito importante. Em um hospital pediátrico, por exemplo, a gente viu que as crianças internadas recebem os professores para aplicar lições para que ela não repita o ano.
Uma coisa que você pontuou no livro é a importância das Forças Armadas e como a Coreia do Norte procurou essa autonomia, depois do fim da URSS, na barganha nuclear. Qual é a importância das Forças Armadas para o país?
Grande parte da elite dirigente é oriunda da guerrilha, estiveram na luta contra o Japão e depois participaram da Guerra da Coreia, que foi uma guerra civil que teve a ideia de acabar com as estruturas do país. Isso tudo criou a ideia de que o país tinha que ter força para se defender. As Forças Armadas também têm um papel social, de ajudar na hora de construir uma ponte ou na época da colheita, e também por isso têm muito prestígio.
Quando caiu a URSS a situação realmente ficou difícil. Depois da queda de muitos regimes socialistas, a RPDC era a bola da vez. A maneira que eles tinham de fazer política, já que China e Rússia estavam estabelecendo relação com a Coreia do Sul, era apostar no projeto nuclear com a aquisição de alguns mísseis para chamar atenção das grandes potências internacionais para si. Mas essas crises, que assustam muitas pessoas, são muito bem calculadas. Quando eu estive na Coreia do Sul, no meio de uma crise dessas em que todos falavam que ia começar a guerra, ninguém estava preocupado com isso, as pessoas estavam saindo para os bares e restaurantes durante a noite normalmente. Nós perguntamos se eles não tinham medo e eles disseram: “não, essa jogada a gente já conhece”. Então isso serve pra provocar os EUA e conseguir que os norte-americanos reconheçam a legitimidade do regime norte-coreano, deem ajuda econômica e que se faça o acordo de paz para terminar a Guerra da Coreia, que tecnicamente nunca terminou.
NULL
NULL
Matt Paish / Flickr CC
Metrô de Pyongyang: Brasil é muito apreciado no país, diz professor da UFRGS
A dificuldade de entrar em um acordo é que, por parte do Ocidente, sempre se esperou que o regime fosse cair e se aproveitavam disso para fazer mais sanções econômicas. Na década de 1990 as pessoas chegaram a passar fome por conta disso; durante 1994 e 1997 houve desastres naturais. A economia não andava porque não havia mais a ajuda soviética. As mudanças virão progressivamente, esse novo governo vai pensar que ter um exército muito grande é muito caro e gastar menos pra que isso seja usado na economia. Por outro lado existem situações delicadas, o governo tem de mostrar aos militares que eles não vão perder papel de destaque, embora os civis vão ganhar espaço. Esse também ainda é o instrumento que ele tem pra fazer política internacional, só se consegue avançar provocando, coisa que o outro lado também faz.
Como é hoje a relação entre as Coreias do Sul e do Norte?
Depende de quem está no governo no Sul. No fim da guerra fria houve um início de diálogo que levou os dois países a entrarem na ONU. Existem também as zonas econômicas especiais, onde várias empresas sul-coreanas passaram a atuar. Isso é bom pra todos porque além de criar empregos no Norte, os sul-coreanos podem utilizar de uma mão de obra mais barata.
Mas os contatos são muito restritos. Houve duas visitas dos presidentes do Sul ao Norte, mas, às vezes, há um endurecimento e até as visitas entre os familiares são suspensas. Agora, é certo que, nesse momento, fora alguns grupos mais radicais no Sul, não há nenhuma intenção de derrubar o outro lado, porque isso geraria um caos que prejudicaria a Coreia do Sul. A geração mais jovem no Sul não tem essa dimensão da guerra, o seu patriotismo foi transformado em consumismo. No Norte é o contrário, a gente vê museus perfeitos sobre a história, sobre a guerra e eles são permanentemente visitados pelos cidadãos.
Como se dá a organização da sociedade civil no governo norte-coreano?
É muito próxima à cubana, mas tem uma especificidade: ali é uma sociedade asiática e confuciana. Os valores que formam a cultura deles são muito enraizados na cultura asiática, a atitude das pessoas é diferente.
As pessoas participam de reuniões temáticas; ou seja, os jovens, as mulheres participam de reuniões setoriais, além do exército e do partido. As pessoas geralmente são organizadas em comitês como os Comitês de Defesa da Revolução em Cuba, que são sempre comandados por mulheres e que agrupam cerca de 20 famílias que se reúnem uma vez por semana para discutir e reportar para os superiores os problemas.
Existem algumas parcelas da sociedade críticas ao regime, mas para os asiáticos o objetivo não é divergir, é encontrar forma de convergência. Há um respeito à hierarquia, ao pai, ao chefe de Estado; esse tipo de coisa você vai encontrar em todo o continente, desde a Coreia do Norte até Cingapura, que é capitalista.
De fato, a gente vê um culto aos líderes que é muito forte, e isso não é tanto uma manipulação como ocorrida na URSS; é um símbolo de unidade do país e eles têm perfeita consciência de que se houver qualquer divisão interna vai acontecer o que aconteceu na Alemanha Oriental, ou seja, o regime vai cair e a RPDC será anexada.
Mas quando houve algumas medidas econômicas com as quais o governo tentou controlar esses mercados privados houve passeatas, manifestações de rua, as pessoas saíram e a polícia não reprimiu, e o governo recuou dessas medidas. As pessoas não imaginam que isso possa acontecer, mas de fato é assim.
Como é a presença do Brasil na Coreia do Norte?
Eles apreciam muito o Brasil porque na época da Guerra da Coreia os norte-americanos queriam que o Brasil enviasse tropas pra lá e o presidente Vargas se recusou. Por outro lado, o Brasil já recebeu muitos imigrantes sul-coreanos e tem muitos negócios por lá; isso nos coloca numa posição de confiança para o dia em que for necessária uma negociação com uma comissão de países, com quase toda a certeza as duas partes aprovariam a presença do Brasil por conta da credibilidade.
Ter uma embaixada permite enxergar coisas e ter uma ideia efetiva do que está se passando e contribuir de certa forma para tirar um país dessa condição de isolamento. As sanções não ajudam em nada, já se provou que o regime vai resistir e isso só vai trazer sofrimento ao povo. O Brasil é considerado um país confiável por conta das várias iniciativas que mantemos lá na área de esporte e na área de agricultura.
Existe hoje algum processo de abertura do país para o Ocidente?
A diferenciação social existe hoje e foi motivada pela crise que aconteceu por uma espécie de liberalização, durante os anos 1990. O governo teve que tolerar que as pessoas contrabandeassem coisas da China, e aí foram criados alguns negócios privados que de vez em quando o governo libera ou proíbe.
O discurso deles é o seguinte: nós não nos isolamos, nós fomos isolados, nós não temos embargos contra nenhum outro país, são eles que têm embargos contra nós. O que eles querem é uma modernização sem as reformas chinesas, porque o país é muito pequeno e não tem a capacidade de poder e de recursos que a China tinha pra sair forte deste processo.
O modelo, por outro lado, está um pouco atenuado porque em certas áreas, como as de pequenos serviços e alimentar, são providos quase em sua totalidade de forma privada. A preocupação de não aceitar que isso seja amplamente legalizado é a de surgir uma força política que questione o regime.
O que mudaria muito o cenário é o regime ser legitimado por um acordo de paz e poder contar com apoio econômico. Quanto mais pressionados, mais eles endurecem.
Entrevista original publicada no site do Brasil de Fato.