“Camaradas”, abre o evento uma jovem participante de um partido de esquerda em meio à praça do bairro universitário. “Viemos hoje aqui para rechaçar o movimento reacionário que vem tomando as ruas nos últimos dias, o patriarcado e o capitalismo”.
A experiência é real, e aconteceu poucos dias depois do movimento de 15 de março que tomou as ruas de verde e amarelo contra o governo Dilma Rousseff. Mas não é necessário precisar dia, hora e local para ilustrar meu argumento. Se, como eu, você já participou ou esteve próximo do movimento estudantil ou universitário de tons progressistas, você já viu pelos menos algumas vezes a mesma cena se repetir de alguma maneira.
Esses eventos muitas vezes se disfarçam de mesas, debates ou conferências para ser, em realidade, um comício da instituição que o organiza. No caso dos partidos, não raro os personagens centrais do encontro são os antigos e novos candidatos a cargos públicos. E no momento em que se abrem os microfones ao público, quem toma a palavra é a Juventude da organização, que varia entre o discurso de animador de auditório e a verborragia anacrônica da esquerda de tradição soviética, que ainda se divide majoritariamente entre leninistas e trotskistas — muitas vezes ignorando ou justificando a história de autoritarismo das duas vertentes.
Adonis Guerra/ Sindicato dos Metalúrgicos do ABC
Conrado Arias: 'O progressimos ainda desperdiça seus recursos para falar para si próprio'
Até este ponto do argumento, eu provavelmente já espantei do site a grande maioria dos militantes que se simpatizam com o perfil que descrevi. Mas talvez eu tenha chamado a atenção do leitor que simplesmente se identifica com um pensamento progressista, que quiçá poderíamos chamar de esquerda.
E, ao mesmo tempo, não é exatamente este o problema de conceituação — e também de linguagem ou comunicação — que estou tentando descrever?
Em todo o mundo, também no Brasil, há rechaço crescente a todos os partidos políticos, inclusive os da esquerda clássica e os que surgem à esquerda dela. Por um lado, vivemos o ápice do movimento do apoliticismo, uma grande vitória das elites econômicas que, ao sofrer uma derrota política com o gradual aumento do sufrágio ao longo do século anterior, conseguiu minar pouco a pouco vários dos espaços, instituições e representações mais ou menos legítimas das maiorias sociais através da corrupção — principalmente a legal, através dos financiamentos de campanha, lobbies e outras dezenas de estratégias de privatização dos âmbitos e valores públicos.
Mas, por outro lado, parece óbvio que os coletivos que poderiam rebater essa tendência se mantêm fechados no tempo e no espaço, focados neles mesmos, nos vícios de hierarquização e clientelismo que herdaram e perpetuam, sejam elas conscientes ou não. São essas as características negativas que surgem em formas metafóricas não apenas em “mesas”, “debates” e outros eventos de marketing organizativo, feitos mais para promover do que para refletir. Elas também aparecem na própria organização da maioria desses espaços, em que inclusive imperam as lógicas dos “contatos”, os benefícios pelo menos indiretos de conhecer fulano ou ciclano.
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Sejamos francos os que conhecemos ou passamos por essas organizações, principalmente os partidos políticos tradicionais de esquerda. O discurso simplista que coloca no mesmo saco todos os partidos da “velha política” tem algo de verdade, o que costuma ser suficiente para deslegitimar e marginalizar organizações e militantes que, apesar de todos seus defeitos — quem não os tem? —, representam a pouca esperança de mudança que temos. Principalmente em um país em que pautas tão retrógradas como a diminuição da idade penal conseguem vingar.
Mas por que focar a crítica sobre as organizações à ‘esquerda da esquerda’ (se quisermos ser legais com o PT para ainda colocá-lo nessa categoria), se os verdadeiros inimigos são claramente as grandes empreiteiras, os latifundiários cujos privilégios remetem às nossas origens escravagistas, o grande empresariado que suborna legalmente e ilegalmente a subserviente classe política e profissional; e, principalmente, os grandes bancos e organizações financeiras — os verdadeiros colonizadores de terras, mentes e corações da atualidade?
A resposta é simples: porque são essas pessoas e organizações progressistas que nos oferecem a possibilidade mais concreta de contrapor e, quem sabe, derrotar essa lógica.
E não me baseio no argumento sinceramente elitista que esses grupos costumam compartilhar: o de que sua consciência ou formação intelectual são superiores à da ignorante população que os cerca.
Digo principalmente porque muitas dessas pessoas, muitas delas extremamente preparadas pelas escolas formas e informais da vida, possuem “privilégios” (ponho entre aspas para não compará-los aos privilégios espúrios mencionados anteriormente) que os restos dos mortais não costumamos ter.
É que a maioria social que essas organizações sociais tentam representar são capas de famílias trabalhadoras que dedicam a maior parte do seu tempo produtivo a ganhar seu pão com qualquer um que lhe ofereça um salário, a cuidar de sua casa e de sua família e a estar presos em congestionamentos. Mal possuem tempo para o descanso, talvez algum recurso para o lazer barato. E ainda coloca a cabeça no travesseiro agradecendo a deus por conseguir colocar qualquer tipo de teto sobre a cabeça de seus filhos — e não sem razão.
Não é exagero: o principal motivo pelo qual as pessoas não participam ativamente da política, ou de qualquer outro âmbito de decisão que determina diretamente suas condições de sua vida, é a falta de tempo. A esquerda tradicional, de forma autoelogiosa, gosta de pensar que é principalmente uma questão de QI ou “consciência”, ou de haver lido os livros certos.
E é por isso mesmo que essas pessoas “comuns”, as que estamos ocupadas demais para prestar atenção em muito mais que os problemas muito reais que imediatamente nos cercam, acabamos tratando com desdém os profissionais de esquerda que, do alto da sua pretensão intelectual, vêm nos dar lição sobre como devemos escutar e votar.
Temo que a conclusão seja óbvia.
A esperança de que a atual crise política brasileira seja realmente superada depende principalmente de pessoas experientes e bem-intencionadas por trás de tantos partidos, ONGs, sindicatos e outros coletivos extremamente necessários. Devemos aplicar com verdadeira sinceridade, e desde sua origem, os princípios de democracia e participação em que acreditamos. Essa aplicação requererá uma enorme criatividade, posto que há enormes barreiras de todos os tipos (psicológicas, sociológicas, econômicas, tecnológicas…) para que esse tipo de comprometimento por parte do cidadão comum seja real.
Será necessário, sem dúvida, ver o cidadão como ele realmente é, em todos seus defeitos, qualidades e limitações. Quando isso ocorrer, será um pouco menos difícil projetar os espaços, mecanismos, canais de comunicação e linguagem (por favor, com quem vocês estão falando?) necessários.
Até lá, claro, é muito mais fácil falar do que fazer. Adoraria demonstrar como, mas amanhã tenho que ir cedo pro trabalho. Alguém livre para começar?
Até deus está tendo que se adaptar a seu púbico; assista ao vídeo do canal Porta dos Fundos: