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Cerimônia de abertura da 39a Sessão do IPCC em Berlim, em abril de 2014; ao centro, Rajendra Pachauri, ex-presidente do painel, acusado de assédio sexual por uma funcionária
Em meados de fevereiro, enquanto se noticiava a acusação de assédio sexual contra o presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), dezenas de especialistas em ciências climáticas se encontravam em Berlim para discutir uma questão importante para o futuro do órgão: será que o IPCC seria capaz de enfrentar alguns pontos críticos da mesma forma com que lida com o aquecimento global? Ou o IPCC estaria de mãos atadas por questões políticas?
“O IPCC está numa encruzilhada”, de acordo com o memorando escrito pelo grupo, liderado por cientistas das universidades de Harvard e Stanford e das principais instituições acadêmicas da Itália e Alemanha. Apesar dos acadêmicos elogiarem o IPCC por realizar funções importantes “de uma forma cientificamente bem-informada”, afirmaram que o painel “nem sempre aborda as questões mais críticas, e corre o risco de perder a participação dos melhores cientistas do mundo por conta dos fardos que envolvem essa participação”.
A principal recomendação do grupo, que incluiu cientistas sociais que tiveram seus trabalhos excluídos dos relatórios do IPCC no ano passado, era que o painel deveria encontrar uma forma de integrar melhor as ciências sociais, como economia e relações internacionais, em seu trabalho.
A nota, assim como várias que foram escritas no âmbito das discussões internacionais sobre o clima, salienta passos que parecem razoáveis, como uma melhor coordenação entre os grupos que formam o painel e aprimoramento da comunicação entre eles. Mas a própria atuação de alguns de seus membros e defensores revela uma crescente preocupação compartilhada por muitos dos apoiadores do trabalho do painel, ganhador de um prêmio Nobel. A preocupação é que o IPCC (e os líderes mundiais que são seu público) deve ir além das discussões sobre as ciências físicas, como quanto carbono se acumulou na atmosfera e quanto aumentará o nível do mar.
“Já não é mais uma questão fundamental ou uma surpresa o fato que crescentes concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera causam mudanças climáticas”, afirmou o economista da universidade de Harvard Robert Stavins, um dos participantes da reunião em Berlim. “A dúvida fundamental é o que fazer sobre isso.”
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Enquanto cientistas sociais apresentavam suas demandas, o próprio IPCC ponderava sobre seu futuro numa plenária em Nairóbi, no Quênia, que havia sido abalada pela demissão abrupta de seu presidente e embaixador de maior visibilidade por oito anos, o engenheiro e economista indiano Rajendra Pachauri. Sua saída veio depois que uma pesquisadora de 29 anos, funcionária de seu instituto de pesquisas em Déli, entrou com um processo de assédio sexual contra ele. Pachauri negou a acusação através de um porta-voz, afirmando que foi vítima de hackers em seu e-mail. Mas, em face dos processos judiciais, ele disse que não conseguiria prover a liderança que o IPCC necessita.
O comando do IPCC rapidamente apontou um de seus vice-presidentes, Ismail El Gizouli, do Sudão, como presidente em exercício. Espera-se que ele sirva até outubro desse ano, para quando o painel já estava preparando eleições para uma nova liderança. Pachauri havia anunciado que não se apresentaria para a reeleição no segundo semestre do ano passado.
Stavins afirmou que, apesar do conteúdo das acusações contra Pachauri tornar a situação dele “bem trágica”, ele acredita que o IPCC não será prejudicado a longo prazo, pois o painel já estava se preparando para a conclusão de seu mandato.
“Esperamos que haja candidatos realmente fortes para o cargo da presidência”, afirmou Stavins. “O IPCC de fato encara desafios, e um novo presidente inovador e criativo pode ajudar a liderar as melhorias necessárias para fortalecer uma instituição que considero bem importante.”
No ponto de vista de Stavins e de outros cientistas sociais, o IPCC minou sua própria utilidade no ano passado, quando excluiu passagens importantes do sumário de sua última avaliação sobre a condição do clima. Uma seção que foi cortada, de um capítulo conduzido por Stavins, tratava da ineficácia do acordo mais importante do mundo até agora, voltado diretamente para a redução das emissões de carbono, o Protocolo de Kyoto de 1997.
“O que sabemos sobre o desenvolvimento de acordos internacionais e o que influencia a sua eficácia? Sabemos se os tratados que tivemos até agora, como o Protocolo de Kyoto, tiveram impactos comportamentais?”, perguntou David Victor, professor de relações internacionais da Universidade de California e um dos participantes do encontro em Berlim. “Essas são perguntas clássicas das ciências sociais. Temos várias ferramentas de pesquisa para responder esse tipo de questão, mas quando damos as respostas, os governos surtam.”
A seção de um capítulo que Victor ajudou a coordenar também foi retirada do relatório final do IPCC no ano passado. Ela apontava que as formas antigas de ver o mundo, como coleções de países “industrializados” e “desenvolvidos”, seriam inadequadas para retratar a realidade atual. De acordo com o texto, o maior aumento nas emissões de carbono viria dos países com as economias que crescem mais rápido. A questão é crucial nas negociações que estão atualmente em curso para um novo acordo climático a ser assinado em dezembro desse ano em Paris, pois um ponto muito importante tem sido a divisão entre nações ricas e pobres e quais deveriam ser suas obrigações para mitigar as emissões de carbono.
“Escrevemos com todo o cuidado, de uma forma que, esperávamos, não ofenderia a ninguém, e recebemos um total de zero comentários críticos nas revisões formais”, disse Victor. “E então, quando os governos surgiram [nas últimas sessões para aprovar o texto], alguns deles, liderados pelos sauditas, surtaram e cortaram tudo.”
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Señor Codo / Flickr / CC
“Já não é mais uma surpresa o fato que crescentes concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera causam mudanças climáticas”, diz economista
O IPCC, que foi estabelecido em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), reúne milhares de cientistas de todo o mundo para produzir volumes enormes, a cada cinco a sete anos, avaliando a condição do clima. Seu objetivo, diz o IPCC em seu site, é produzir trabalhos que sejam “relevantes para a elaboração de políticas, porém neutros, nunca prescritivos”. E os importantes Sumários para Formuladores de Políticas produzidos pelo painel, provavelmente o trabalho mais lido do IPCC, são sujeitos a uma revisão detalhada por todos os 195 países-membros.
“O valor único do IPCC não é o brilho individual dos autores”, disse Chris Field, do Departamento de Ecologia Global do Instituto Carnegie, que serviu como copresidente do grupo de trabalho do IPCC em impactos climáticos, e um provável candidato para substituir Pachauri. “O que é único é o monitoramento, a revisão e o consenso sistemáticos entre cientistas com a aprovação de países.”
“Então, os documentos finais são produzidos por comunidades científicas e possuem sua autoria partilhada pelos governos”, afirmou Field. “É um processo fabuloso. Não há nada parecido. Queremos preservar isso e precisamos tomar cuidado em não adicionar nada mais que possa corroer esse valor central que o IPCC fornece.”
Field afirmou que alguns assuntos, como a avaliação do Protocolo de Kyoto, talvez estejam mais relacionados com processos políticos do que seria ideal para o IPCC assumir. “Nas questões em que não se pode ter coautoria com os governos, o IPCC deve reconhecê-las, e afirmar que há muitas coisas interessantes para informar-se, mas não é uma área na qual podemos agregar valor”, disse Field. “Parte da beleza do processo, e também parte da sua fraqueza, é que não podemos agregar valor a todas as questões. Precisamos ser inteligentes com as que podemos.”
Ele afirmou que é importante notar que o IPCC abordou e pode continuar a abordar questões que são bastante controversas, ao usar, através de liderança e negociação eficaz, uma linguagem que os governos podem aceitar como consensual.
E, de fato, no segundo semestre do ano passado, nas sessões do IPCC que levaram à adoção do relatório final de sua quinta avaliação, a publicação que resume o trabalho de todos os Grupos de Trabalho, Stavins considerou o resultado muito melhor. Ele creditou a capacidade de chegar ao texto final às reuniões bilaterais e presenciais com quase uma dúzia de delegações, o que foi feito basicamente ao adicionar o que ele chamou de “revisões cientificamente corretas” que satisfazem aos governos.
O memorando dos cientistas sociais da reunião de Berlim, elaborado claramente com base nessa experiência, conclui que, para se manter “relevante às políticas” enquanto se afasta de prescrições de políticas prontas, o IPCC não deveria manter cientistas e governos afastados. O memorando pede por “mais interação entre governos e cientistas”, impulsionado pelas dúvidas sobre políticas que os governos querem respondidas e as questões que os cientistas sentem que precisam ser abordadas.
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Michael Oppenheimer, um geocientista na Universidade de Princeton que também foi autor e coordenador de texto do IPCC, disse acreditar que o painel estaria em “terreno escorregadio” se tentasse bancar uma avaliação sob a perspectiva das ciências sociais com relação à ação internacional sobre mudanças climáticas no passado. Ele disse acreditar que alguma instituição deveria realmente realizar uma avaliação sistemática sobre a eficácia dos acordos internacionais, mas que não deveria ser o IPCC.
Oppenheimer também afirmou que acredita que a mudança mais importante que o IPCC precisa ter para manter sua relevância no futuro é gastar menos tempo nas grandes e extensas avaliações do estado atual do clima geral e, em vez disso, gastar mais tempo em relatórios mais curtos sobre diferentes questões científicas que estão no centro da discussão política.
“As grandes avaliações são ótimas, mas consomem toda a energia do painel”, afirmou Oppenheimer. “Acho que seria benéfico para as comunidades científicas e de formuladores de políticas ter as grandes avaliações apenas quando os governos realmente insistirem nelas, ou quando realmente houver novas e grandes mudanças que as exijam.”
O IPCC já realizou relatórios curtos antes, sobre eventos climáticos extremos e sobre energias renováveis. O governo de Mônaco pediu ao IPCC um relatório especial sobre oceanos, e Oppenheimer disse que há inúmeros assuntos que poderiam se tornar avaliações: o impacto da liberação de metano e ciclos de feedback; o efeito dos aerossóis, como fuligem, sobre o aquecimento; e inundações de regiões costeiras e a elevação do nível do mar. No fim de fevereiro, um artigo na revista Nature Climate Change argumentava que o IPCC tem falhado em oferecer orientação adequada aos gerenciadores de riscos das regiões costeiras pois os relatórios do painel têm excluído a possibilidade de elevação do mar em suas análises.
Mas na reunião em Nairóbi, o IPCC concordou em continuar, por enquanto, com a preparação de relatórios de avaliações amplas a cada cinco a sete anos, enquanto considera o processo de negociação de acordos ao decidir sobre quando sairão os próximos relatórios. Em resposta às preocupações sobre o tempo e a atenção que o processo exige por parte dos cientistas, cuja maioria trabalha voluntariamente, o IPCC concordou em reorganizar a agenda das diferentes partes do relatório de alguma forma no futuro, em vez de liberá-los dentro de algumas semanas, como fez no ano passado. Numa coletiva de imprensa, a secretária do IPCC Renate Christ deixou aberta a possibilidade de o painel realizar relatórios menores e mais frequentes, mas disse haver “restrições práticas”.
A discussão sobre a melhor forma de gerir o tempo de milhares de cientistas que trabalham no IPCC pode parecer uma questão burocrática secundária. Mas isso pode ter consequências profundas. “Os cientistas que são referências em seus campos de atuação geralmente estão trabalhando em áreas controversas, porque é ali que o novo conhecimento é produzido”, disse Victor. “Se você envolvê-los no IPCC, eles vão querer que o IPCC fale sobre as novidades científicas e os pontos controversos. Porém, essas são as áreas em que o processo focado no consenso tende a encaminhar o IPCC a uma escrita complicada, ou a evitar os problemas e não lidar com eles. E isso é o contrário do que um cientista inovador quer.”
Victor disse que a própria estrutura do IPCC que levou às eliminações das seções controversas no passado torna complicado para o painel realizar mudanças drásticas em como negociará no futuro.
“Há diversos tipos de propostas, mas eu apostaria que o resultado mais provável serão mudanças bem pequenas, e que o painel vai continuar a fazer o que está fazendo”, disse Victor. “E tudo bem, porque o IPCC é o que há de mais legítimo quando se trata de clima. O relatório que emitirem será bom. Mas não terá muito conteúdo relacionado às ciências sociais.”
Victor disse que as ciências sociais abrem caminho para entrarem nas negociações dos acordos climáticos de qualquer jeito, apesar de não ser de forma sistemática. Uma amostra disso é que os diálogos atuais para um acordo em Paris não têm por objetivo repetir a estrutura de Kyoto, mas pretendem exigir que todas as nações, industrializadas, desenvolvidas e com rápido crescimento, apresentem planos para contribuir com a diminuição das emissões de dióxido de carbono.
Oppenheimer disse acreditar que uma medida que poderia mitigar a impressão pública sobre a falta de relevância do IPCC seria tornar-se mais transparente, permitindo especialistas observadores em suas reuniões e a imprensa nas sessões plenárias.
“Eles gostam de poder resguardar a forma com que as decisões são feitas, mas eu acho que, nos dias de hoje, essa não é uma postura útil”, disse Oppenheimer. “Não apenas gera suspeitas, como também significa que você diminuiu a possibilidade de aprender algo a partir do que outros veem sobre como você negocia.”
“Meu medo é que o IPCC se torne uma instituição como todas as instituições: lenta, pesada e mais preocupada com suas próprias prerrogativas”, disse Oppenheimer. “O IPCC tem sido formidável. Ele conseguiu avaliar de uma forma incrível essa grande quantidade de conhecimento que não para de mudar. Ele deve continuar a fazer isso conforme o conhecimento chega, mas precisará ser rápido. E a melhor forma de fazê-lo é estar aberto às mudanças.”
Tradução: Jessica Grant
Matéria original publicada no The Daily Climate, site norte-americano que se dedica a notícias sobre meio ambiente e mudanças climáticas.