Texto: Beatriz do Nascimento, 1989)
Não é novidade para ninguém a ausência de mulheres negras na direção de filmes, programas de TV ou como protagonistas das telenovelas e dos imaginários da cultura hegemônica brasileira. Leva-se algumas gerações para que se construa uma tradição, literária ou cinematográfica, por exemplo. Sendo assim, um dia depois da não escolha pela escritora Conceição Evaristo para a Academia Brasileira de Letras (ABL), decidi compartilhar a minha experiência na direção do episódio “Racismo e resistência”, da série “Quebrando o Tabu”, para o Canal GNT. Afinal, o escolhido cineasta Cacá Diegues em artigo para a Folha de São Paulo, em dezembro do ano passado, chamou o conceito de lugar de fala como “bobagem universitária”. Sim, ele escreveu assim.
Daí, a minha questão: estou presa numa utopia juvenil ao pautar protagonismo negro e racializar argumento, roteiro e direção?
Então, ao realizar junto à equipe do Quebrando o Tabu, Spray Filmes e os diretores da série o episódio que vai ao ar no dia 3 de setembro, tive a oportunidade de pensar temas espinhosos para as desigualdades socioeconômicas/ raciais do país, em que temos como entrevistadas Djamila Ribeiro, Nilma Lino Gomes, Joice Berth, Patricia Hill Collins, Suzane Pereira da Silva, Mafoane Odara e Gilberto Alexandre Sobrinho, entre outrxs. Dessa forma, pensamos meritocracia, cotas para as pessoas negras nas universidades estaduais e federais, qualidade da educação e saúde públicas e disputas pelo mercado de trabalho como territórios para se mapear direitos, privilégios e os quadros de oportunidades sobre quem tem uma vida digna ou não. Fomos também até o estado do Piauí, numa tentativa de sair do eixo Rio de Janeiro/ São Paulo e retratar de alguma maneira as vidas nordestinas para além das más estatísticas.
Eu sou a filha mais velha de um casal de piauienses. Daí, fazer essa viagem foi como voltar numa origem familiar, mas, não tão próxima assim, porque sou santista (Santos/ SP) de nascimento, e morei em boa parte da minha vida em bairro de classe média. Tive alguns acessos, nem sempre possível para uma neta do vaqueiro do sertão, aulas de ballet, idioma estrangeiro, ensino médio em escola privada e cursinho pré-vestibular. Não me garantindo uma mobilidade social, é certo, mas sim ocupar hoje uma trajetória profissional pouco sonhada para as mulheres negras. Estudo, pesquiso e faço cinema. Aqui pontuo o meu lugar de fala: parte de 25% da população brasileira, da ausência de produções roteirizadas e dirigidas por mulheres negras, nos dados sobre a diversidade de gênero e raça no audiovisual apresentados pela Ancine em janeiro deste ano.
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estou presa numa utopia juvenil ao pautar protagonismo negro e racializar argumento, roteiro e direção? (Foto: Divulgação)
Não à toa, para pensar a nossa existência, tenho como premissa essas mulheres ceifadas de escuta, pelas autorias presas às “bibliotecas e bibliografias coloniais”, nas palavras de Vilma Reis, que nos estereotipa entre subserviência, objetificação sexual e ausência de intelecto. Porque nos permitem a desumanização e só. Ainda assim, desde 2015, pude percorrer espaços de ativismo político como a Marcha das Mulheres Negras, outros de produção de saberes, o Festival Latinidades (Brasília/ DF), quando tive a felicidade de ouvir a Angela Davis, pessoalmente. E não menos importante, pelas redes sociais, nas reflexões quase diárias das escritoras Djamila Ribeiro, Joice Berth, Jéssica Ipólito, Paloma Franca Amorim, Preta Rara, pude estabelecer uma rede de afetos positivos e trocas, inexistente em todo o meu tempo de vida escolar e universitária. O tema lugar de fala não aconteceu anteriormente.
Ou seja, racismo estrutural e institucional estão presentes nas artes, nos centros de cultura quando decidem programar uma data específica (mês de novembro) para artistas negros, nos subpapéis para a representação negra em telenovelas e na ausência de equipes negras no cinema brasileiro de orçamentos milionários. Daí, poder dirigir um documentário para a TV paga, com a intelectualidade negra em pauta na voz de especialistas e não como objetos de estudo é um ato de resistência frente às vozes do passado, como disse Grada Kilomba em entrevista para a Djamila Ribeiro, sobre quem chama as pautas raciais de “mimimi”, identitárias ou simplesmente polêmicas das redes. Não é isso, não… Trata-se da compreensão do tamanho da violência ainda hoje da tinta branca pelo apagamento das letras da negritude nas grandes editoras, nas redações e telejornais quando somos sempre os outros, não as vozes e corpos criativos, autônomos.
Sentar e ocupar a cadeira da diretora no audiovisual nasce e mantém-se pela necessidade de construção de um novo campo epistemológico, só possível com outras intelectuais negrxs, indígenas, feministas, quilombolas, nordestinas, nortistas, latino-americanas que apontam em seus caminhos solitários a vontade por coletividade, sem silenciamentos. Pois, sem elas, com certeza, a minha voz e posição também não seria viável. Não há possibilidade de falar em desigualdades e ignorar as chagas advindas desse processo contínuo do genocídio, das mulheres negras mortas em abortos clandestinos, dxs jovens e crianças destituídos de expectativa de vida e direitos básicos, do encarceramento em massa, das mães que morrem de tristeza ao perder os seus filhos. A lista é imensa.
Daí, lugar de fala é uma fresta, da busca no estilo capoeira ou por uma festa pública, como quando filmamos o Bloco Ilu Inã para esse episódio, na saída do quilombo urbano Aparelha Luzia, para contra-argumentar essas estatísticas. O conceito reverencia a obra da Conceição Evaristo como a principal escritora para nós, atualmente, independente da ABL. O lugar de fala ainda não é a mudança que desejamos, porém, a partir dele, saímos das aulas introdutórias sobre o que é o racismo, afinal, ao ocupar a cadeira da diretora significa: eu posso narrar a minha própria história.
PS.: Em tempo, o filme da diretora Camila de Moraes está entre os 22 pré-selecionados a representar o cinema brasileiro, no Oscar, em 2019. O seu filme “O Caso do homem errado” está circulando por salas comerciais, algo inédito, para uma diretora negra. A última vez que isso ocorreu foi há 34 anos. Estou na torcida!
Sinopse
Qual a diferença entre desigualdade social e racial? Existe meritocracia no Brasil? Essas são algumas perguntas que o Quebrando o Tabu tenta responder nesse episódio. Passando pelo o sistema de educação pública, a universidade e o mercado de trabalho, exploramos as barreiras estruturais enfrentadas por brasileiros negros 130 anos após a abolição da escravidão. Com a análise afiada Djamila Ribeiro, Nilma Lino Gomes, Joice Berth, Patricia Hill Collins, Suzane Pereira da Silva, Mafoane Odara e Gilberto Alexandre Sobrinho, entre outros, o episódio busca desconstruir a ideia da democracia racial.
Quebrando o Tabu – Episódio 4 – Racismo & Resistência
Estréia: 3/9/2018, no Canal GNT
(*) Day Rodrigues é cineasta, produtora cultural, educadora e escritora. Natural de Santos (SP), reside hoje na cidade de São Paulo. Foi premiada em novembro de 2015, com o Troféu Zumbi dos Palmares, do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Santos, pelos projetos culturais realizados na cidade. Com licenciatura em Filosofia e especialização em Gestão Cultural, pelo Centro de Pesquisa e Formação do SESC, pesquisa feminismo interseccional, cultura popular e as histórias das diásporas negras. Em julho de 2017, no XXI Cine PE – Festival Audiovisual (Recife), foi premiada pelo documentário “Mulheres Negras: Projetos de Mundo” (direção de Day Rodrigues e Lucas Ogasawara), nas categorias júri popular e direção.