Enquanto muitos cidadãos se escandalizam com a facilidade que a Presidência da República tem facilitado o acesso a armas de fogo no Brasil, uma outra vertente sobre essa situação passa desapercebida. Trata-se do impulsionamento psicológico-sensorial da violência e sobre o uso de armamento e violência e o ato de matar.
Duas ações prometem colocar mais gasolina nessa situação. Uma é o lançamento de videogame de guerra do Exército Brasileiro, denominado Missão Verde-Oliva, previsto para 2021. O outro é a reedição do livro Matar! Um estudo sobre o ato de matar, que estava esgotado e voltou às prateleiras da Biblioteca do Exército em 2019.
Ambos, paralelo à facilitação do acesso às armas, estão criando situação que poderá sair de controle e transformar cidadãos brasileiros em matadores cruéis e legais.
Nos primeiros quatro meses de 2020 foram registradas 48,3 mil novas armas de fogo no Brasil. Este número equivale a mais de três vezes a média de 2015 e 2019 no mesmo período. E ultrapassa seis vezes a média registrada em 2010 a 2014.
O videogame Missão Verde-Oliva, segundo portaria do Exército, tem o objetivo de melhorar a imagem da instituição entre o público jovem. O jogo deverá ser online, onde o combatente disputará guerra contra inimigos de um país fictício. A portaria nº 110, que instituiu o projeto, é assinada pelo Estado Maior do Exército.
Segundo a instituição, o jogo “pode conscientizar a sociedade brasileira sobre a importância dos assuntos de defesa do país ao divulgar missões do Exército Brasileiro em tempo de guerra, como a defesa de instalações estratégicas”.
A portaria cita ainda como objetivo criar impressões positivas sobre o Exército Brasileiro (EB), principalmente nas faixas etárias de 16 a 24 anos; desenvolver atitudes favoráveis ao EB; ampliar a integração do Exército à sociedade; divulgar programas estratégicos do Exército; contribuir para a preservação da coesão e da unidade nacional.
O game brasileiro é uma cópia de um jogo do exército dos Estados Unidos chamado America’s Army Proving Grounds, conforme mostra a própria portaria nº 110. O jogo dos EUA existe há nove anos e está hoje na sua terceira versão.
De acordo com estudo do Massachusets Insttute of Technology (MIT), realizado em 2008, 30% de todos os norte-americanos com idade entre 16 a 24 anos passaram a ter uma impressão mais positiva do Exército por causa do jogo. O game teve mais impacto em recrutas do que todas as outras formas de divulgação combinadas. No Brasil, a plataforma deverá usar como base jogos similares como o Arma 3, Insurgency Sandstorm e Game Squad, além das diferentes versões do game do Exército dos EUA.
As metas da Missão Verde-Oliva são atender inicialmente volume de 15 mil jogadores e cerca de 3 milhões de downloads para o game do Exército Brasileiro em até dois anos.
Vencerá o jogo brasileiro quem matar e dominar um inimigo. Mas a portaria de criação do game determina que os projetistas deverão criar “personagens humanizados” que “não somente trocarão fogos/tiros”. A disputa deverá conter ações denominadas “mão amiga”, possivelmente com apresentação de pequenos vídeos. “Os jogadores poderão escolher diferentes características e montar os seus próprios avatares”, que “deverão representar a composição étnica e social da sociedade brasileira”.
O Estado Maior do Exército chega a demonstrar preocupação com possível desgaste da sua imagem com o jogo violento. Tanto que faz as seguintes ressalvas:
– Nenhuma cena com potencial para gerar desgaste da imagem ou crise institucional deverá estar presente;
– O game não deverá mostrar sangue em demasia para evitar a ideia de violência exagerada;
– O game deverá mostrar combate urbano, mas não em áreas de comunidades em situação de fragilidade social;
– Os jogadores só poderão jogar como militares do Exército, nunca como o invasor.
Reprodução
Imagem do jogo America’s Army, que inspirou o Missão Verde-Oliva
Matar! Um estudo sobre o ato de matar
Já o livro Matar! Um estudo sobre o ato de matar estava com tiragem esgotada. Uma nova edição foi impressa em 2019, com apenas 300 exemplares. A obra justifica a ordem de defenestrar o inimigo.
As edições antigas podiam ser encontradas em sebos, com um custo extremamente alto, variando de R$ 500 a R$ 750. Na Livraria da Biblioteca do Exército, os exemplares que ainda restam são vendidos a R$ 35.
A obra é escrita pelo tenente-coronel Dave Grossman e mostra estudo desenvolvido pelo militar dos Estados Unidos sobre “o preço cobrado do combatente e da sociedade”. Grossman escreve sobre o ato de matar seres humanos, praticado por militares em combate. Analisa a situação psicológica dos combatentes e os reflexos no ser humano.
Ele reconhece a repercussão negativa e o peso do ato de matar. “A busca do equilíbrio entre a obrigação de matar e o consequente sentimento de culpa constitui importante causa das baixas psiquiátricas no campo de batalha. O filósofo e psicólogo Peter Martin menciona a lição de responsabilidade e culpa do combatente. Com a guerra, o soldado aprende que ‘os mortos permanecerão mortos, os aleijados continuarão eternamente aleijados e que não existe mais maneira de negar a responsabilidade ou a culpabilidade de ninguém, pois os erros estão gravados para sempre, marcados a ferro e fogo na carne dos outros”, escreve.
Grossman procura justificar o ato de tirar a vida de uma pessoa, facilitar e aceitar a situação. “Até mesmo o linguajar de homens em guerra mostra-se repleto de negativas a respeito das crueldades por eles cometidas. A maioria dos combatentes não ‘mata’: o inimigo foi derrubado, desgastado, amaciado, expulso e varrido para fora. Ou então ele é batido pelo fogo, ‘fritado’, reconhecido e alvejado. Sua humanidade é negada e ele se transforma num estranho animal conhecido por nomes como Kraut, Japa, Reb, Yank, Dink, Slant ou Slope”.
Kraut é a palavra alemã que significa repolho, usada pelos soldados norte-americanos para se referir ao inimigo alemão. Reb e Yank eram termos usados na Guerra Civil dos EUA por nortistas e sulistas, respectivamente, para se referirem aos rebeldes e aos yankees. Dink, Slatn e Slope são termos depreciativos empregados para se referir a inimigos asiáticos. Dik e Slope eram termos usados para se referir a guerrilheiros vietcongs na década de 1960; enquanto Slant é mais empregado em referência a chineses e japoneses na Segunda Guerra.
Nomes com cunho pejorativo muito similares com a guerra que querem recriar hoje no Brasil contra “comunistas”, “não patriotas”, “subversivos”. A banalização da morte e do mal.
Ainda conforme destaca o autor de Matar!, “a lição é muito clara: matar é a própria essência da guerra, e o ato de matar em combate, por sua própria natureza, causa profundas feridas de dor e culpa. A linguagem da guerra ajuda-nos a negar a verdadeira natureza e assim torná-la mais palatável”.
Interessante também é mostrar que o próprio Grossman cita no fim do livro o que chama de “condicionamento nas salsas de videogames”, que capacitam para o estímulo à violência. “Esse tipo de diversão caracteriza-se pela interatividade, exige e desenvolve a aplicação de processos de tentativa e erro e sistemáticas capacidades para a resolução de problemas, ensina a planejar e mapear soluções e a suportar a demora em obter recompensas”.
“Quando falo de capacitação para o exercício de atos violentos, não me refiro aos jogos nos quais os contendores derrotam criaturas golpeando-as na cabeça. Nem àqueles em que o jogador manobra espadachins e arqueiros para triunfar sobre monstros. Os jogos situados no limiar do estímulo à violência são aqueles em que se usa um joystick para mover a mira de uma arma pela tela, para liquidar bandidos que surgem repentinamente e tentam matar o jogador. No tipo de jogo inquestionavelmente capaz de capacitar o usuário à prática de violência, o jogador empunha uma arma e a dispara contra alvos de forma humana na tela”.