Quarta-feira, 14 de maio de 2025
APOIE
Menu

A guerra de memes entre brasileiros e portugueses em torno da Guiana Brasileira ainda não foi engolida pelos portugueses. Enquanto uns brincam e devolvem aos brasileiros o meme da Groenlândia Portuguesa, outros encaram a situação com certa animosidade, gerando discussões acaloradas entre eles próprios.

O humorista português Diogo Faro, que ousou defender os brasileiros, perderia a cidadania europeia se contasse, para isso, a opinião de seus conterrâneos. Atualmente é tratado como um “traidor da Pátria”. Faro diz que está acostumado a receber ofensas “por tudo e por nada”, mas não consegue, mesmo assim, esconder seu incômodo. A Opera Mundi, disse ter ficado chateado apenas com as fotos do pai, que é indo-português, circulando entre perfis de extrema direita.

Fábrica de memes criaram bandeiras e até passaportes da ‘Guiana Brasileira’
Reprodução

“Acho engraçado que não tenham qualquer problema em chamar ‘descobrimentos’ a um acontecimento histórico que consistiu em matar, violar e espoliar milhões de pessoas, mas ficam muito ofendidos com piadas. É tragicômico!”, disse Diogo enquanto declarava o amor pelo Rio de Janeiro, a sua cidade preferida no mundo.

Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp!
Inscreva-se

Memes da Guiana são “piada de bom gosto”, diz estudante português

O estudante Rodrigo Azevedo, que namora uma brasileira e tem a Bahia seu destino preferido, atribuiu a irritação aos saudosistas e conservadores. Segundo ele, a negação do passado colonial não está na ordem do dia em Portugal, principalmente em um momento de ascensão do discurso anti-imigração no país.

“Quem confraterniza com a grande parte da população brasileira em Portugal percebe que isso não passa de uma piada de bom gosto. Inclusive, o meu meme preferido foi o da Luana Piovani como governadora do ‘Rio de Fevereiro’, o novo nome da cidade de Lisboa”, disse sorrindo.

Para Diogo Faro todos os memes são cômicos, mas nada foi mais engraçado do que ver os próprios conterrâneos gravando vídeos irritados, como se a situação fosse realmente séria. “Eu amo portugueses, brasileiros e indianos se forem fixes (‘fixe’ é termo em português europeu para ‘legal’), da mesma maneira que desprezo todos eles se forem fascistas. Não é o território onde nasci que me define, mas as pessoas com quem partilho valores”, revela.

Uma das brincadeiras fez alusão de uma possível moeda da Guiana Brasileira estampando o jogador português de futebol Cristiana Ronaldo
Reprodução

Atualmente, Portugal abriga a maior comunidade brasileira da Europa. Apesar de não haver dados oficiais sobre o número exato, a estimativa é a de que 600 mil brasileiros residem no país de forma regular. “Hoje temos mais que um carnaval em Portugal, e o cheirinho da coxinha já está junto com o pastel de bacalhau. Até a própria língua me parece mais viva do que nunca, e essa brincadeira traduz bem toda a riqueza que se vem somando neste país que partilhamos”, explica Rodrigo.

Memes da Guiana Brasileira são “xenofobia reversa”?

No rol de reclamações portuguesas na guerra dos memes, surgiu até a acusação de “xenofobia reversa”. Para a poeta e atriz luso-brasileira Carolina Boreaz, que gravou um vídeo sobre o tema, disse não ver na ação brasileira um desejo de dominação, mas sim um gesto criativo que inverte papéis. O choque provocado pelos memes tem o potencial, na avaliação dela, de promover, na verdade, uma “empatia simbólica”, justamente o oposto de um discurso de ódio.

“Claro que, como em tudo, principalmente no contexto político delicado em que vivemos, existe o risco de distorção por parte de grupos que se aproveitam de qualquer coisa para reforçarem os seus discursos. Entretanto, a resposta a isso não é silenciar os gestos críticos, mas aprofundar a leitura deles. Por isso fiz o vídeo”, pontua ela, que vive há 15 anos no Brasil.

“Gosto especialmente dos memes que têm uma estética de ‘ficção estatal’, como os brasões e os mapas geopolíticos reimaginados ou até mesmo a ousadia de criar um verbete ficcional na Wikipédia”, diz Carolina. Os memes da Guiana Brasileira, na sua opinião, agem como uma “espécie de scanner” ao revelar os lugares onde as pessoas ainda estão colonizadas mentalmente.

memes guiana brasileira
Memes das redes foram encarados com certa animosidade por alguns portugueses
Reprodução

Jéssica Abrahão, socióloga luso-brasileira que vive em Portugal há mais de 10 anos, disse ter visto um pouco de tudo: desde portugueses se divertindo e levando com leveza, até aqueles que não gostaram muito da brincadeira. Ela enfatiza que a impossibilidade de haver uma anexação real de um território soberano deveria deixar os humores mais descontraídos.

“Em Portugal, a situação torna-se um pouco mais complexa por conta da presença de um partido de extrema direita que reproduz racismo e discrimina imigrantes. Entendo que para quem está no Brasil brincar com esses memes é mais fácil, mas quem enfrenta a violência diária aqui em Portugal acaba sofrendo mais”, elucida.

A socióloga lembra ainda que a prática da xenofobia tem como pressuposto uma desigualdade na hierarquia social e, por isso, jamais podemos afirmar a existência de uma xenofobia reversa. “Nosso passado envolve três séculos, duas décadas e dois anos de colonização e escravidão de povos originários do território e pessoas africanas. Os memes não revelam nenhum acerto de contas”, diz ela. Mas também não são tão poderosos assim: “Tampouco será feita a reparação histórica através de uma brincadeira”, finaliza.