Sábado, 17 de maio de 2025
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Cristina tem 75 anos e os olhos marejados. Caminha entre as pessoas que lotaram a Praça de São Pedro, no Vaticano, carregando consigo mais que o luto por um papa: carrega uma história de exílio, resistência e memória.

“Vivo na Itália há 44, 45 anos”, contou a Opera Mundi. É uma das tantas argentinas que fugiram da última ditadura militar (1976 -1983), um regime que sequestrou, torturou e fez desaparecer ao menos 30 mil pessoas.

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Cristina integra um grupo de exilados argentinos na Itália que, desde o início do governo autoritário, se organizou para denunciar, na Europa, os crimes cometidos pelos militares. “Nosso grupo é o ‘Argentina por Memória, Verdade e Justiça’. Começamos a atuar ainda durante a ditadura, e seguimos até hoje, porque quando dissemos ‘nunca mais’, era pra valer”, disse.

O grupo esteve reunido no Vaticano para se despedir de Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, argentino como eles, cúmplice de sua causa. “Sempre nos sentimos muito unidos a ele. Pela sua luta constante pelos mais fracos, contra a guerra, contra as opressões”, afirmou Cristina. “Até o último dia ele quis dar seu testemunho pelos mortos em Gaza, dizendo que isso não é possível. Ele só tinha a palavra, mas era uma autoridade moral”.

Cristina (esq.) e seu grupo de exilados argentinos se despediram do papa nesta sexta

Francisco, desde o início de seu pontificado, demonstrou sensibilidade com as feridas abertas pela ditadura argentina. Reuniu-se com Mães e Avós da Praça de Maio, apoiou publicamente investigações, e ouviu, pacientemente, histórias de dor e desaparecimento. Para muitos dos exilados, seu papado foi uma extensão da luta por justiça iniciada nas ruas de Buenos Aires e continuada nas associações italianas onde encontraram refúgio.

Cristina lembra ainda o orgulho que sentiu quando Bergoglio foi eleito o líder da Igreja Católica em 2013. “No começo a gente nem entendeu direito, foi um momento de surpresa… Mas depois foi um orgulho enorme. As pessoas diziam: ‘olha que bonito, o papa é argentino’. E ele era um homem com uma qualidade humana enorme. Isso dava orgulho, como foi com Maradona, em outro campo”.

A presença do grupo no Vaticano neste momento simbólico é também um gesto político. Cristina critica abertamente o atual governo argentino, liderado por Javier Milei, que colocou em xeque o número de desaparecidos e relativizou os crimes da ditadura. “Reafirmamos: foi uma ditadura cívico-militar. Foram 30 mil desaparecidos. E não pode se repetir. Agora, com esse governo, vemos uma aceleração para se apoderar dos recursos do país, como fizeram naquela época”, disse.

A despedida de Francisco, portanto, é mais que uma homenagem religiosa — é um ato de memória. Um lembrete de que, mesmo longe, o exílio não silenciou suas vozes. “Estamos aqui em nome dos 30 mil. Pela memória. Pela verdade. Pela justiça.”