Sou e sempre fui jornalista. Hoje tenho mais de 80 anos, muito bem vividos. Entrevistei Luiz Inácio da Silva quando Lula era ainda só seu apelido, e não sobrenome, no programa Pinga-Fogo, da TV Tupi. Participei da greve dos jornalistas de 1979 e participei das negociações que permitiram Silvio Santos conquistar seu canal de televisão. Apresentei programas de TV, como o Nordeste de Gala, na TV Gazeta, e rádio e hoje gravo vídeos para as redes sociais, discutindo os problemas que me parecem mais urgentes.
Como jornalista, conheci o Brasil inteiro, de norte a sul, leste a oeste, por conta de um programa que apresentei no Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT, chamado Isto é Brasil, e fiz, com um “fusquinha”, o mesmo caminho por onde passou Lampião. Fiz o roteiro do rei do cangaço e depois conheci muito dos cangaceiros remanescentes que lutaram a seu lado, inclusive Sila, mulher de Zé Sereno e amiga de Maria Bonita, Balão, Criança, Marinheiro e Pitombeira, Dadá, Labareda, e Curió. E me tornei amigo de Expedita, a filha de Virgulino, e de sua neta Vera Ferreira.
Já escrevi livros sobre isso, como o mais recente, Raízes do Cangaço (Oxente), mas a história que vou contar aqui é outra, uma pequena história do litoral do Brasil.
Na minha fase de Isto é Brasil, há duas histórias do litoral que merecem um capítulo especial: uma aconteceu na Paraíba; a outra, no litoral norte de São Paulo.
Eu estava saboreando um caranguejo nas proximidades do Hotel Tambaú, em João Pessoa, quando fui abordado pelo prefeito de Conde, Aluísio Regis. Meu objetivo era fazer um programa sobre as praias de João Pessoa, de Cabedelo ao Cabo Branco, onde está localizada a Ponta do Seixas, o lugar mais avançado do extremo leste brasileiro.
Aluísio veio ao meu encontro para pedir que eu prolongasse meu roteiro na capital paraibana e mostrasse as praias da sua cidade, que fica a cerca de 20 quilômetros de João Pessoa, a partir do Cabo Branco. Eu fiz ver a ele que a programação já estava feita e que eu não poderia alterar, a menos que houvesse um fato extraordinário que justificasse a mudança de itinerário. Ele quis saber o que seria um fato extraordinário e, na forma de blague, eu disse: “se na sua cidade tiver uma praia de nudismo…”
Ele não perdeu tempo e emendou: “e tenho uma praia com grande vocação para o nudismo. Se o senhor for lá, vai ver isso”.
E foi assim que decidi visitar a sua praia no dia seguinte. E ele mais que ligeiro se deslocou de João Pessoa e foi buscar em Recife umas moças, que lá eles chamavam de “quengas” ou “raparigas”, para compor o quadro.
No dia seguinte, às nove horas da manhã, minha equipe estava na entrada da praia, e lá embaixo se banhavam nas águas quentes de Tambaba de 10 a 15 sereias, vestidas como vieram ao mundo. Aproximei-me delas e percebi que elas tinham marcas de biquíni. E nudismo só para mulheres? Percebi que era uma armação feita pelo prefeito.
Paciência, estava lá e decidi fazer a matéria mostrando a belíssima praia e sua “vocação para o naturismo”.
O câmera e o operador ficaram assanhados e, lá do alto, nas encostas das falésias, o prefeito Aluísio e meia dúzia de assessores observavam tudo, não sei se mais interessados nas moças ou com a presença de uma emissora de televisão, fato incomum na época ali, fazendo um trabalho para ser apresentado em rede nacional. Era a glória para Conde.
Até aí tudo bem, mas minha tranquilidade acabou quando retornei ao Hotel Tambaú, joia rara encravada na beira da praia e que é um cartão postal da capital paraibana. Ao chegar ali já tinha três recados urgentes para mim. Um padre, um juiz e um deputado, todos os três estavam indignados com “uma reportagem pornográfica” que estaríamos fazendo na capital pessoense. E 10 minutos depois o governador Tarcísio Buriti e sua esposa Glauce Navarro queriam saber dessa história dessa praia de nudismo.
No telefone mesmo eu tentei explicar, mas fui interrompido várias vezes e contestado inicialmente pelo chefe do Executivo e depois pela primeira dama. Buriti pediu para que eu levasse o filme para ele ver, e marcamos uma conversa para mais tarde, até porque não tinha ainda terminado o trabalho de filmagem.
Mas não perdi tempo e liguei para o prefeito Aluísio. Disse-lhe da inquietação da sociedade paraibana por causa da “filmagem pornográfica”. Perguntei ao prefeito se ele tinha maioria na Câmara e, como a resposta foi positiva, pedi para que ele convocasse os vereadores para votar com urgência, diria emergência, uma lei criando, na cidade de Conde, uma praia de nudismo.
A aprovação foi muito tranquila e eu me senti à vontade para levar a matéria ao ar. Nascia assim esse espaço de nudismo que hoje é uma das maiores atrações para o naturismo brasileiro. Tambaba é visitada anualmente por turistas do mundo inteiro.
A Paraíba tem muito o que se visitar, como o complexo da Estação Cabo Branco, obra de Oscar Niemeyer, o pôr do sol na praia do Jacaré, mercado de artesanato, igreja de São Francisco e as praias do lado norte, mas o grande espetáculo que é projetado a partir das praias da Costa Sul, com paisagens naturais, falésias e praias desertas, tem em Tambaba a maior atração ali.

Praia de Tambaba se divide em duas áreas: uma destinada ao naturismo e outra em que o uso de roupa é obrigatório
Centro histórico de São Sebastião
O outro trabalho que merece aqui um destaque foi em São Sebastião, cidade do litoral norte de São Paulo, que tem como vizinhas coadjuvantes nas belezas naturais, Ilhabela e Ubatuba.
O conjunto é simplesmente sensacional e não fica nada a dever aos outros litorais brasileiros. Não dá para ficar alheio às praias paradisíacas de São Sebastião: Barra do Una, Maresias, Paúba, Baleia, Jureia, Juqueí, Boiçucanga, Camburi, Toque-Toque Pequeno, Barra do Sahy, Guaecá, Santiago, Toque-Toque Grande, Boraceia, Calhetas e Praia Preta e Conchas são iguais em belezas, diferentes em paisagens, mas impressionantes em oportunidades de lazer e contato com a natureza.
Mas quero me fixar num fato ocorrido no centro histórico de São Sebastião. Quando fiz o programa Isto é Brasil na cidade, fui orientado na produção pela minha amiga Maria Angélica de Moura. Ela me ciceroneou e conseguiu entre outras coisas me levar para entrevistar Tia Filhinha, como era conhecida Maria Aparecida Orselha, que sabia tudo sobre São Sebastião e que me contou uma história incrível envolvendo uma figura da cidade chamada João Baleia, pescador que, quando tomava seus pileques, xingava da cabeça aos pés o santo padroeiro da cidade.
Tia Filhinha explica: “todos reprovavam a atitude dessa figura, mas ele não se emendava e continuava com seu ritual quase que diário. O pescador era muito violento principalmente quando bebia e foi advertido várias vezes pelo padre por suas atitudes agressivas praticadas em frente à igreja, mas nada disso adiantava”.
Um dia, o João Baleia foi encontrado morto em frente à escada da igreja matriz. Todos consideram sua morte como um castigo em forma de vingança de São Sebastião. O delegado lavrou boletim de ocorrência e levou o caso ao Ministério Público, o que originou um processo-crime.
E o juiz que morava fora de São Sebastião julgou e condenou o réu, que no caso era a imagem do santo padroeiro, a cinco anos de reclusão em regime fechado. “A imagem do santo foi para a cadeia”, explicou Tia Filhinha, “e só saía na procissão do dia 20 de janeiro, escoltada por policiais”.
Muitos dizem que se trata de uma lenda. Há algumas controvérsias a respeito, porque os historiadores dizem que a imagem ficava trancafiada na prisão para que os piratas não a roubassem da igreja. Mas Filhinha não concorda com essa versão. Para ela houve o fato, existiu, de fato, o João Baleia.
E que o juiz realmente condenou o santo padroeiro.
Na cidade todos, principalmente os mais velhos conhecem a história e juram de pé junto que tudo isso é verdadeiro. Essa história extraordinária virou filme com roteiro de Benedito Rui Barbosa, O dia em que o santo pecou.
Se isto não é Brasil, eu não sei o que é.
Adaptado do livro Coisas que eu vi, de Humberto Mesquita (Alameda Livros Alameda).