Na edição desta quinta-feira (15/04) do programa SUB40, o fundador de Opera Mundi, Breno Altman, entrevistou Itamar Vieira Jr., doutor em estudos étnicos e africanos, e autor do romance Torto Arado, vencedor do Prêmio Jabuti de Literatura de 2020.
Durante a conversa, Vieira Jr. disse que sempre soube que queria ser escritor, desde criança. Aos 11 anos ganhou sua primeira máquina de escrever e aos 16 pensou, pela primeira vez, na história que um dia daria origem a Torto Arado.
“Cheguei a escrever 80 páginas dessa história naquela primeira máquina de escrever, mas nos mudamos de casa e as páginas se perderam, mas a história não. O título era a única coisa que me lembrava das páginas originais, e permaneceu”, contou o autor.
A profundidade e densidade do livro, no entanto, são fruto de suas experiências mais recentes, com trabalhadores rurais, movimentos sociais e comunidades quilombolas. “As intersecções de raça, por exemplo, que remontam à tragédia da escravidão, eram coisas que eu não tinha consciência sobre quando era mais jovem”, ponderou.
Torto Arado foi publicado em Portugal, antes mesmo de ser publicado no Brasil, pois Vieira Jr. tinha receio de mandá-lo para uma editora brasileira e que ele fosse esquecido. Acabou inscrevendo a sua obra e vencendo o Prêmio Leya, português, em 2018.
Apesar disso, avalia o cenário da literatura brasileira como “muito fértil e importante”. Para ele, nunca se teve tanto acesso à literatura e à publicação, devido à grande quantidade de pequenas e médias editoras que têm um papel fundamental na democratização da literatura.
“Mas as grandes editoras têm despertado para novos autores. O volume de publicações ainda está muito aquém do que a gente produz, mas tem aumentado a presença de escritoras e escritores negros, indígenas. Meu desejo é que a literatura brasileira reflita a diversidade do nosso povo e acho que em breve o fará”, discorreu Vieira Jr.
‘Na literatura, a gente pode se transmutar’
Vieira Jr. falou também sobre os desafios de escrever seu livro, principalmente por estar narrado a partir da perspectiva de não uma, mas de três personagens femininas.
“Não foi difícil, mas não sabia se seria exitoso. A literatura é esse espaço em que a gente pode se transmutar e pode viver outras vidas, seja como leitor ou autor. Então escrevi de forma muito tranquila”, revelou.
A verdadeira dificuldade estava em evitar que as narradoras se parecessem demais entre elas. A inspiração para criá-las veio de William Faulkner, cuja literatura “me fascina, tudo dele é quase um coro de vozes, nenhum narrador é absolutamente confiável”.
“Tinha consciência de que as vozes poderiam ficar parecidas. Afinal, são escritas pela mesma pessoa, mas depois fui me deparando com as angústias dos tradutores [ao realizar as traduções] e percebi que havia muita diferença entre as vozes”, afirmou.
A linguagem do livro foi outro fator com o qual Vieira Jr. teve bastante cuidado. As personagens possuem um linguajar bastante sofisticado, sem muitas gírias ou dizeres populares. “Eu poderia ter reescrito tudo o que ouvi no campo, mas tentar mimetizar esses falares talvez tornasse o livro hermético demais”, refletiu, descartando também a possibilidade de criar uma linguagem própria, como fez João Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas.
Por outro lado, a linguagem das personagens está justificada no fato de uma das narradoras ser professora. A outra, ávida leitora. “Acho que é uma ingenuidade achar que o camponês não tem a capacidade ou a habilidade de escrever e falar corretamente”, defendeu o autor.
Próximos passos
Após o sucesso de Torto Arado, Vieira Jr. revelou que tem mais dois projetos encaminhados. Em junho, publica uma coletânea de contos, alguns inéditos. Além disso, está trabalhando num novo romance.
A nova obra é, na verdade, o segundo livro de uma trilogia que começa com Torto Arado. O autor contou que sua intenção sempre foi escrever uma trilogia, “para falar da relação do homem com a terra”.
“Embora os personagens não sejam os mesmos e Torto Arado se passe na região da Chapada Diamantina, e o próximo na região do Recôncavo baiano”, afirmou. Ele contou que a trama girará em torno de moradores que vivem nos arredores de um monastério e cujas terras pertencem à igreja.
“Talvez eu já tivesse escrito esse novo romance se não fossem as demandas que Torto Arado gerou”, comentou o autor, que faz questão de dedicar tempo aos seus leitores e segue trabalhando como servidor público.
Literatura e política
Como servidor público, Vieira Jr. trabalha no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), tratando diariamente com movimentos como o MST e comunidades tradicionais.
“Eu tenho sido procurado por esses movimentos como autor. Como servidor já era minha responsabilidade, mas eles têm se visto nesse romance. Não só os movimentos sociais, mas as comunidades quilombolas e indígenas. Acho esse diálogo muito importante porque muito do que eu aprendi e pude revelar no livro foi graças às histórias do campo. Então é importante para mim que eles se sintam representados na história”, relatou.
É por isso que Vieira Jr. afirmou não ter problema algum com ser rotulado de “autor engajado”: “Acho que todos somos seres políticos, até os que optam pela neutralidade. Ser ou não ser um escritor engajado não importa, quero apenas contar histórias. Mas é claro que as histórias carregam os dramas que me comovem e a realidade em que eu vivo”.
Citando um episódio em concreto, o autor disse que recebeu uma crítica chamando Torto Arado de “o melhor livro de literatura soviética escrito no Brasil nos últimos três anos”: “Fiquei lisonjeado”, riu. Ele vê como positivo um livro que “incomoda”.
Ainda há aqueles que chamam o livro de “literatura ideológica”, como contou o autor, talvez porque a obra tenha sido recomendada por Lula, ídolo do autor, como ele mesmo disse durante a entrevista.
Sobre o ex-presidente, Vieira Jr. comemorou a decisão do Supremo Tribunal Federal desta quinta-feira que mantém a nulidade das condenações contra Lula, que poderá ser candidato em 2022. “Acho que a justiça está sendo feita, ainda que tardiamente. Isso mostra que a gente precisa acreditar nas instituições da República, da democracia. Elas podem até tardar, mas esperamos que não falhem”, refletiu.
É por isso que Vieira Jr. se considera um otimista em relação ao futuro. “Eu tenho uma esperança engajada. Não é passiva, é ativa. Ou seja, precisamos ser a transformação que queremos ver no mundo. Então essa esperança engajada passa por tudo o que fazemos, escrevemos, como agimos, nossos valores. Por isso sou otimista”, explicou, ressaltando que esse otimismo não é permanente e não tem a mesma intensidade todos os dias.
“Mas preciso ser otimista para levantar da cama todos os dias. Se formos pensar no passado, sem voltar muito no tempo, a vida era muito pior. Não havia acesso à educação, saúde, direitos sociais. A gente retrocede, mas a humanidade segue sua marcha e em breve retomaremos as rédeas da nossa vida coletiva”, concluiu.