Botas impermeáveis, macacão e capacetes com luzes para iluminar o caminho e proteger as cabeças contra eventuais choques nos estreitos túneis do caminho. Num depósito improvisado aos pés do Cerro Rico, um grupo de turistas estrangeiros se prepara para uma aventura diferente: adentrar a montanha que representou o auge do ciclo da prata no sistema colonial.
Estamos em Potosí, a 4000 metros de altitude no altiplano boliviano. Há pouco menos de 500 anos, o caminho feito pela van que leva visitantes internacionais era a parte final de uma longa caminhada feita a pé por indígenas da região que pagavam a mita, trabalho obrigatório e temporário cobrado pelos espanhóis na exploração das minas repletas de prata. O trabalho era tão duro e perigoso que dezenas de milhares deles jamais voltariam à casa.
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Trabalho nas minas é dificultado pela má iluminação
De lá para cá, a cidade de Potosí, que chegou a ser a maior das Américas e representou o esplendor econômico e cultural do continente, se tornou uma das mais pobres do mais pobre país sul-americano. A prata praticamente se esgotou. Diante da extração e das explosões de dinamite, o Cerro Rico, grande fonte exploração mineral, mudou de cor e de tamanho e se converteu num verdadeiro “queijo suíço”, repleto de túneis e caminhos.
“Atualmente a montanha é explorada por meio de um sistema cooperativista. Há 37 cooperativas que trabalham no Cerro Rico. Já não há tanta prata, mas segue a extração principalmente de estanho e outros minerais”, comenta o guia depois que os turistas já estão propriamente vestidos para entrar na mina. “Hoje é sábado, há menos trabalho, mas com sorte conseguimos encontrar alguns mineiros e conversar com eles”, completa.
Mercado mineiro
A primeira parada antes de subir a montanha e adentrar nas entranhas de um dos símbolos do voraz colonialismo é no Mercado Mineiro, utilizado pelos trabalhadores das minas para se abastecer antes do labor. Ali é possível comprar materiais úteis para o trabalho mineiro, como a folha de coca, que serve para aliviar o cansaço, álcool potável de 95º, consumido assim mesmo pelos mineiros, e cigarrinhos artesanais feitos com canela e tabaco. Até dinamites podem ser compradas sem muita dificuldade.
Vitor Taveira/Opera Mundi
A descoberta de prata do Cerro Rico fez surgir uma das maiores cidades da colônia espanhola na América
Os turistas fazem suas vaquinhas e alguns até compram kits preparados pelas lojas: refrigerante, cigarros, álcool e folhas de coca. São “regalitos”, um agrado que levam aos mineiros que encontrarem pelo caminho.
O guia explica que atualmente cerca de 5 mil pessoas trabalham na mina, porém esse número varia conforme a demanda e o preço do mercado internacional. Os membros das cooperativas ganham melhor e possuem direitos trabalhistas, o que não acontece com mineiros não cooperados e trabalhadores temporários. Alguns, talvez os mais comunicativos ou estudados, encontraram no turismo um caminho para sair do duro trabalho das minas, como guias em inglês e espanhol ou até construindo suas próprias agências para organizar os tours.
Do lado de fora da mina, o guia explica a história da descoberta da prata no local e mostra as marcas de sangue na parede da entrada dos túneis, fruto do sacrifício de lhamas durante a festa anual dos mineiros.
Entrando nas minas
Ao entrar, a sensação é de voltar nos séculos, pois as minas utilizam pouca e precária tecnologia. Tivemos sorte e encontramos alguns mineiros trabalhando. Porém, conversar com eles é outra história. Tímidos, os mineiros são quase sempre monossilábicos. Perguntados sobre o trabalho, um deles comenta apenas que “é muito duro”. Mas suas expressões cansadas e o ambiente ao redor dizem mais que as palavras. Ele mais ou menos comenta que é de um povoado próximo e trabalha há oito meses nas minas.
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O guia bilíngue e comunicativo explica como funciona a máquina rudimentar que está sendo utilizada pelos trabalhadores para transportar o material bruto extraído. Os “regalitos” são entregues e seguimos nosso caminho pelos túneis.
Ricardo Yebra/Opera Mundi
Ao fundo de uma entrada sem saída encontramos mais um aspecto interessante: o Tío, uma estátua de diabo, vestida de mineiro e cercada de oferendas. O guia explica que o Tío é uma espécie de deus das minas e está presente em todas elas, ao menos na região de Potosí. O curioso é que essas estátuas foram implantadas inicialmente pelos espanhóis, que pretendiam que os trabalhadores se sentissem vigiados e ameaçados diariamente. Mas o personagem acabou sendo adotado pelos indígenas, que pedem proteção ao Tío e fazem suas oferendas para que ele não se zangue.
[Implantado pelos espanhóis para controlar os mineiros, o Tío acabou sendo adotado como uma espécie de deus das minas pelos locais]
Terminado o tour, os visitantes devolvem o uniforme emprestado entre comentários sobre suas impressões a respeito do passeio. Em alguns minutos estarão de volta às ruas e praças de Potosí, que exibem sua arquitetura colonial adornada pela beleza do Cerro Rico, avistado de vários pontos da cidade.
Museus e igrejas
O secretário de Turismo do departamento de Potosí, Francisco Quisbert, explica que muitas igrejas foram saqueadas ao longo do tempo, mas ainda persistem suas belas arquiteturas e vistas espetaculares desde suas torres. Vários museus também registram a história e a cultura de Potosí. O principal deles é a Casa Nacional de Moneda, museu mais visitado da Bolívia.
O primeiro pátio, onde se encontra uma famosa imagem de Dionísio, dá acesso à construção de 7.500 m², uma das maiores erguidas pela colônia espanhola nas Américas, que levou 14 anos para ficar pronta. Luis Cruz Moya, Curador da Casa, explica que o local foi utilizado para cunhar moedas e passou por várias mudanças tecnológicos. A partir da década de 1930, passou a incluir em seu espaço um museu, funcionando paralelamente à produção de moedas. Nos anos 50 a Bolívia deixou de produzir sua própria moeda, que hoje é comprada por meio de licitações internacionais.
A Casa de la Moneda, como é chamada, passou a ser exclusivamente museu, guardando importantes obras da época colonial, como o quadro “La Virgen del Cerro”, além de exposições arqueológicas, etnográficas e de esculturas. O maior destaque, entretanto, envolve o processo de cunhar moedas, mostrando a evolução tecnológica e as moedas produzidas no local.
A Potosí que já possui pouca prata e não produz mais moedas ainda atrai interesse de todo o mundo, mostrando que sua dura história tem valor incalculável e inesgotável.