Em 2023, a Argentina terá eleição presidencial, e o futuro da coalizão governista argentina, a Frente de Todos (FdT), ainda é incerto.
Com um presidente com baixa popularidade e a figura política de maior força, Cristina Kirchner, na mira de uma campanha judicial e midiática, a configuração da fórmula vitoriosa em 2019 depende, em grande medida, dos passos que decidirá dar Cristina Kirchner diante desse cenário. Um cenário marcado, também, pelas profundas discórdias com o presidente Alberto Fernández.
Em seus dois últimos discursos, Kirchner deu o tom de candidatura para a eleição presidencial que a Argentina irá encarar em 2023. Ou pelo menos foi assim que boa parte da mídia argentina interpretou a postura da vice-presidenta. Foram suas primeiras aparições públicas pós-atentado de 1º de setembro, quando uma arma foi engatilhada duas vezes a centímetros de sua cabeça, mas a bala não saiu.
No dia 4 de novembro, Kirchner participou de um evento convocado pela União Obreira Metalúrgica (UOM), ao lado de dirigentes do sindicato. Emocionada por estar diante de uma plateia pela primeira vez desde a tentativa de magnicídio contra sua vida, Cristina voltou a lembrar que o caso representou a quebra de um pacto social, em que dirigentes e forças políticas podem discordar sem querer eliminar o outro.
Em seu discurso, resgatou, como de costume, políticas implementadas durante seus anos de governo (2008-2015) e o governo de seu falecido marido, Néstor Kirchner (2003-2007). Ao mencionar o aumento da classe média, foi enfática: “É possível fazê-lo, porque nós já o fizemos.”
“Vou fazer o que for preciso para que a nossa sociedade possa se organizar em um projeto de país que volte a recuperar a esperança, a força e a alegria”, disse ao finalizar seu discurso, entre lágrimas. “Éramos um povo alegre.”
No dia 17, Dia da Militância, foi a segunda e última aparição pública de Cristina Kirchner. Ela discursou para uma plateia ainda maior, no estádio Diego Armando Maradona, na cidade de La Plata, e remeteu ao “modelo sustentável econômico e social” dos governos Kirchner. “A população deverá decidir se quer voltar a ser essa Argentina que alguma vez foi”, disse.
Para o analista político Gustavo Marangoni, Cristina pode tomar diferentes papéis para a eleição do ano que vem.
“A Cristina parece querer organizar as bases doutrinárias para a oferta do ano que vem e, em todo caso, avaliar sua candidatura. Há quem acredite que isso é uma consequência natural de tudo o que ela vem fazendo: os atos, a centralidade, a fidelidade do eleitorado”, comenta o cientista político. “Reafirmam essa possibilidade considerando que, escolher outra pessoa como candidato à presidência seria repetir o que não funcionou – o que, de alguma maneira, demonstra que o poder real e o poder formal devem coincidir”, acrescenta. “Mas devemos contemplar um cenário adicional em que ela busque chefiar da oposição em um eventual próximo governo de outro alinhamento político, tendo o controle das câmaras do Congresso, de deputados e senadores, e tentando conservar a província de Buenos Aires.”
Qual será a fórmula?
Alberto Fernández desfrutou de uma alta popularidade durante o início de gestão da pandemia, incorporando uma figura paternalista com aparições frequentes em cadeia nacional, pessoalmente citando dados e gráficos que baseavam suas políticas. A aceitação de seu governo caiu não muito depois, com idas e voltas sobre decisões importantes como foi a expropriação da cerealífera Vicentin, mas com o ponto alto sobre a dívida com o FMI. O presidente apostou no corte de investimentos para as políticas econômicas do país, o que aprofundou as diferenças na coalizão.
Flickr/Ministerio de Cultura de la Nación
Em seus dois últimos discursos, Kirchner deu o tom de candidatura para a eleição presidencial que a Argentina irá encarar em 2023
Para vencer o então presidente Mauricio Macri em 2019, Kirchner optou por uma grande aliança de diferentes alas do peronismo. Colocou-se como vice, chamou um antigo crítico de seus governos para candidatar-se à presidência em sua chapa, refez pontes com alas que haviam migrado para a oposição. Assim nasceu a Frente de Todos.
“Naquele momento, eu tinha a responsabilidade, como força representativa, de garantir que o peronismo ganhasse as eleições”, disse Kirchner na UOM. “Principalmente, contra a política de endividamento, contra a volta do FMI, contra a perseguição judicial a dirigentes políticos e sindicais”.
Na ocasião, disse não arrepender-se de sua decisão, referindo-se à escolha de Fernández para sua chapa. “Atingimos nosso objetivo, que não era votar contra alguém, mas contra determinadas políticas.”
Apesar das diferenças entre Kirchner e Fernández, que afetaram a governabilidade, há aspectos da fórmula que devem ser mantidos. “Os três pilares estão estáveis, que são os setores que haviam sido críticos das duas gestões de Cristina; os 30% de votos fixos de Cristina; e o antigo Peronismo Federal, que traz Sergio Massa e um conjunto de governadores”, observa Bárbara Ester, socióloga integrante do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica (Celag).
“Parece que a reconfiguração da Frente de Todos continua sendo apostar na unidade, claramente. Não vejo grandes conflitos como em 2015, quando parte do Peronismo Federal passou à oposição. Já tiveram a experiência do que foi ser oposição com o macrismo, e todos entendem que devem apostar na unidade.”
Seja com Cristina liderando a chapa da FdT ou não, o que já está consumada é a incompatibilidade entre a líder peronista e o atual presidente. Há rumores de que Alberto Fernández buscará lançar uma fórmula com o atual chefe de gabinete, o tucumano Juan Manzur, e a Ministra de Desenvolvimento Social, Victoria Tolosa Paz. Os movimentos se antecipam a uma possível mudança no processo eleitoral impulsionada pela ala kirchnerista da coalizão: buscam retirar a tradicional eleição de meio-termo do ano eleitoral no país, que define as preferências do eleitorado e organiza as listas dos partidos para a eleição geral no fim do mesmo ano.
A oposição também encara seus conflitos internos. O ex-presidente Mauricio Macri não definiu se participará das listas do Juntos por el Cambio (JxC), enquanto Horacio Rodríguez Larreta, atual chefe de governo da cidade de Buenos Aires, e a ex-ministra de Segurança de Macri, Patricia Bullrich, aparecem como favoritos na coalizão direitista. Bullrich representa a “ala dura”, radicalizada, de direita – e que tem ligação com figuras apontadas nas investigações sobre o atentado contra Cristina –, e Larreta busca os votos da centro-direita, encarnando um perfil de maior diálogo.
“Ao não saber quem são os candidatos do outro lado, é difícil definir a fórmula própria”, pontua Ester. “Contra Macri, Cristina poderia ganhar, inclusive ser uma referência [contra a política neoliberal do ex-presidente]. Já em uma guerra entre mulheres, por exemplo, contra Patricia Bullrich, aí o cenário muda um pouco. Porque é algo novo, porque também é uma mulher, porque poderia incluir outros setores da sociedade.”
Diante das incertezas sobre o futuro da coalizão governista, nas duas ocasiões recentes em que Cristina esteve novamente diante de um público, os cantos em uníssono de “Cristina presidenta” foram contundentes.