Passadas sete semanas da deposição do presidente Mohamed Mursi, o que predomina no Egito é um cenário de incerteza. Simpatizantes de Mursi e do Exército, que tomou o poder e indicou o civil Adly Mansour como presidente interino, continuam a se enfrentar nas ruas do país, elevando diariamente o número de mortos. Com isso, antigos aliados do Egito, como os Estados Unidos e a União Europeia, ameaçam retirar seu apoio ao país, que, nesse cenário, contaria com o suporte dos líderes árabes, em especial da monarquia saudita.
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Morando no Cairo há pouco mais de dois meses, a economista pernambucana Tamires Tais, de 25 anos, conta a Opera Mundi as contradições vividas na capital egípcia nos últimos dias. Apesar de a maioria da população respeitar o toque de recolher, ela própria já “driblou” a medida imposta pelo governo interino sem sofrer qualquer punição.
“O toque de recolher é horrível, porque a vida à noite funcionava muito normal aqui. Agora, somente 30% das pessoas estão nas ruas até às 20h, depois disso quase ninguém se arrisca, só os corajosos”, declara Tamires, que já viu dezenas pessoas irem para as suas casas neste horário com comida para muitos dias.
“Em Ma’adi, no bairro onde moro e trabalho, não tem muita fiscalização, então as pessoas estão furando o ‘toque’. Saí com uns amigos e voltamos depois do horário, no domingo (18/08), e passamos por uma fiscalização. Pediram nossos passaportes e perguntaram o que a gente fazia, mas foram muito simpáticos e disseram que isso não deve durar mais do que cinco dias”, conta a brasileira, que faz no Cairo um intercâmbio profissional pela AIESEC (Associação Internacional de Estudantes de Ciências Econômicas e Comerciais).
Apesar dessa experiência tranquila no bairro de Ma’adi, a assistente de consultoria vê um clima de tensão e insegurança no país árabe.
“É possível sentir a tensão no silêncio das ruas, nas prateleiras dos supermercados e no fato de todos os voos estarem lotados. É possível sentir a tensão nos gritos de protesto e nos tiros que escutamos ao longe. As ruas estão bloqueadas, parte do comércio está fechada e não é possível trocar dinheiro nas casas de câmbio, todas fechadas por aqui”, conta a brasileira. Segundo ela, um amigo que mora em Nassr City mal consegue sair de casa por causa dos confrontos.
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A mais de 8 mil quilômetros de distância do Egito, vivendo em Recife, o escritor Habib Zahra, 32 anos, vive a aflição paradoxal de quem está preso, embora livre. O egípcio, que mora há oito anos no Brasil, diz que os contatos com os pais agora são mais frequentes. “Meus pais ainda estão lá [no Egito] trancados no apartamento com medo, mas estão bem”, afirma. O pai de Zahra tem 71 anos, a mãe, 55. Eles vivem na ilha de Zamalek, próximo à Praça Tahrir, um dos epicentros do conflito.
Política e religião
Sem conhecer com profundidade a política egípcia, a brasileira prefere não escolher um lado, até porque chegou no meio da confusão. Contudo, acredita que Mohamed Mursi, por ter sido eleito democraticamente em 2012, deveria ter um tempo hábil para tomar ações. Ela salienta que, no Egito, os militares têm poder constitucional.
Arquivo Pessoal
A pernambucana não pretende deixar o Egito, apesar do conflito no país, que já deixou centenas de mortos
Diante disso, Tamires pondera que “em qualquer discussão política tem que entrar dizendo que é contra o presidente deposto [Mohamed Mursi], mas que também é contra os militares, senão a pessoa perde a simpatia dos egípcios”. Essa postura rígida só mudou durante o Ramadã, que terminou no último dia 8 de agosto. “O pessoal estava tão focado na imersão religiosa, apesar dos protestos, que quase não se falava de política durante”, diz.
Já o egípcio Zahra explica que “(os pais) são cristãos e, portanto, não gostavam da Irmandade Muçulmana. Quando a organização caiu, ficaram felizes e até foram às ruas protestar e comemorar. Mas agora estão acuados em casa”.
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“Eles acompanham os confrontos pela televisão e dizem que a mídia não publica tudo, por causa da censura. Eu aqui com a internet consigo ter uma ideia, talvez melhor do que a deles lá”, avalia o egípcio a Opera Mundi, acrescentando que, mesmo de longe, fica acompanhando o que se passa no Egito. “Fico triste pelo meu país”, diz.
“Match of Anger”
Na última sexta-feira (16/08), a Irmandade Muçulmana convocou seus seguidores a marcharem pelas ruas do Cairo até a Praça Ramsés para mostrarem o quanto estão insatisfeitos com a situação política do país árabe, em protesto que ficou conhecido como o “Dia de ira” ou a “Sexta-feira de raiva”.
Segundo Tamires, foi um dos dias mais tensos e, desde então, diversos lugares estão fechados. “Lugares turísticos estão todos fechados. Quarta-feira passada (14/08), quando começaram a limpar os acampamentos, a empresa onde eu trabalho não funcionou. Quarta, quinta e sexta-feira [a “sexta-feira de raiva”] foram os dias mais tensos”, declara Tamires. Estima-se que nestes três dias cerca de mil pessoas morreram.
Tamires esclarece que os números de mortos não são completamente confiáveis. “Os pró-Mursi querem que o número seja maior do que realmente é, na tentativa de derrubar o golpe, e o exercito quer o número seja menor do que é, para acobertar a falta de preparo deles próprios. A mídia fica no meio dessa confusão tentando captar a quantidade de mortes, mas é difícil”, avalia.
No entanto, a brasileira assegura que agora a situação está mais tranquila e a vida está voltando ao normal, ao menos no bairro onde ela mora e trabalha. “Apesar de a mídia falar em guerra civil, as pessoas estão muito esperançosas de que isso vai melhorar logo”, acredita Tamires, que, apesar dos distúrbios, não pretende deixar o Egito tão cedo.