Pesados passos retumbam na face da terra anunciando a tenebrosa aproximação da Terceira Guerra Mundial. Já se escutam os redobres dos gastados couros de tambores de guerra que arrepiam a Europa. Detrás dos muros dos seus quartéis, se escutam acelerados passos de coturnos nervosos indo e vindo e os gritos dos suboficiais mandando e desmandando. Estão se alistando para o que se prepararam a vida toda, mas que imaginavam improvável. Os olhos desorbitados de recrutas resignados parecem descrever seu imaginado trágico destino. Não se declama, nem se escreve, mas o murmulho é ensurdecedor: “Aí vêm os russos! Aí vêm os russos!”. A Terceira Guerra Mundial foi representada de forma indelével no futuro imaginado da sociedade europeia, mas sem que ela tivesse clara consciência das suas consequências.
Os militares, sabidos que são do preço existencial de uma guerra, afiam seus sabres num silêncio sepulcral. Diferentemente deles, e estimulados pelo lucro das empresas de armamento, são os políticos, desde as tribunas dos holofotes, quem vociferam aos quatro ventos “Guerra! Guerra!”, porque no melhor dos casos ganham sua reeleição antes da guerra que talvez nem aconteça, e no pior dos casos perdem a eleição, mas terão onde raspar para manter sua vida parasitária. Tudo é oportunidade para eles, que não veem diferença entre a guerra real e os combates de videogame; entre o cheiro ácido de urina, fezes, sangue e medo e o ambiente perfumado dos seus escritórios. Os acadêmicos, oh! os acadêmicos… Muitos acadêmicos, pensando exclusivamente nas suas carreiras, se deixam levar pela sua fragilidade moral que os aproxima dos vozeiros oficiais que anunciam a fácil derrota do inimigo, sabendo por dever de ofício que na guerra não existe derrota fácil. Sua covardia intelectual os convence a aceitar a superficialidade manipulada dos acontecimentos para ganhar seus segundos de fama televisiva e, quiçá, um futuro contrato. Para os meios de comunicação o negócio não é a informação, mas a notícia. Entre uma verdade gratuita e uma dúvida rentosa não vacilam: noticia-se a dúvida como certeza inquestionável (haverá tempo para a desculpa se alguém reclamar).
Ante o ineludível futuro de um confronto mundial de consequências impensáveis, só resta preparar corações e mentes (como explicou Ana Penido no Opera Mundi em 27/05/24) para enfrentar com inteireza e desprendimento (para justificar os gastos de uma guerra desnecessária) o drama final não buscado nem provocado, mas inescapável. O cenário está pronto para o último ato da obra começada na Segunda Guerra Mundial: a profecia autorrealizada.
A situação contemporânea traz à memória as reflexões do sociólogo estadunidense Wright Mills nos anos 60 do século passado, isto é, no período quente da Guerra Fria que, acredito, pode auxiliar a compreender o argumento deste último ato da tragédia humana. Assumindo uma rara atitude ética, difícil de ver nos acadêmicos da atualidade, Mills confrontou o poder do seu país numa militância intelectual que talvez ilumine o inexplicável acidente que encurtou sua vida. O prestígio dos seus estudos sociológicos sobre as elites, em alguma medida, ocultou uma jóia de reflexão que nos deixou em As Causas da Próxima Guerra Mundial. Frente a possibilidade de uma guerra, Mills se pergunta se “qualquer grupo de homens e mulheres pode ou não fazer algo sobre isso, e no caso positivo, o que devem fazer para que haja paz”[1]. Por isso, neste momento em que as nuvens radioativas obscurecem o horizonte do futuro humano, talvez não seja ocioso retomar alguns conceitos daquele texto analítico —que acaba por resultar num manifesto pacifista.
Para Mills, o destino não depende da deusa fortuna ou da predeterminação; para ele “dizer que um acontecimento histórico é provocado pelo destino é dizer que constitui o resultado sumário e não premeditado de inúmeras decisões de inúmeros homens.”[2] Decisões essas que coincidem, colidem, concorrem, potenciam-se e anulam-se, tornando o resultado incerto e o decorrente acontecimento histórico autônomo. Não há, nesses casos, nenhuma vontade, intenção nem decisão que possa ser imputada causalmente sobre as consequências. O processo que segue desse resultado parece responder a uma ordem externa a todas e cada uma das decisões. Os acontecimentos parecem não responder a nenhuma decisão em particular, mas, ainda assim, não há mãos invisíveis nem predeterminações transcendentes: “o destino é uma característica de formas específicas de estrutura social.”[3]
A dinâmica histórica do destino não depende da natureza humana nem dos desígnios divinos, ela está ligada ao Poder. A relação entre destino e poder, para Mills, representa-se na seguinte fórmula: a maior distribuição de poder corresponde à maior incidência do destino; a concentração absoluta do poder é o reino da decisão. Por sua vez, a concentração de poder realiza-se historicamente pela acumulação, também histórica, dos meios de Poder, que para nosso autor, “incluem hoje as instalações de produção industrial e de violência militar, de administração política e de manipulação da opinião”.[4] A quantidade e concentração destes meios determinam o papel das decisões explícitas na mecânica do processo histórico.
Quando aquele livro foi escrito,[5] o mundo se preparava para uma guerra que era considerada inevitável. Como guiados pela invisível mão do destino, as pessoas, os grupos e governos se dirigiam impotentes ante a inexorabilidade de um futuro que parecia não depender das vontades e decisões de líderes políticos e das elites no poder. Ante este panorama, Mills oporá, à aparente irreversibilidade do destino, a responsabilidade criminal da decisão que girava a contingência da história na direção desse futuro desejável (ou não), mas não irreversivelmente necessário. Para Wright Mills, a história da humanidade resulta da tensão essencial da díade “decisão” e “destino”. Pensando nessa tensão, Mills questiona se o ser humano pode ser artífice do seu futuro e responsável das decisões que originarão cadeias causais que levem a um futuro desejado, pela sua própria deliberação e premeditação, ou se ele é apenas uma marionete nas mãos do inexorável destino. O autor quer saber se é possível determinar se a tendência que parecia arrastar o mundo à III Guerra Mundial obedecia a um destino inescapável ou era resultado consciente e deliberado de alguma vontade. Sua posição é clara: “devemos reagir aos acontecimentos, definir as políticas orientadoras. Se deixarmos de fazê-lo, estaremos faltando aos nossos deveres intelectuais e públicos, e abdicamos do papel que a razão possa ter nas questões humanas. E isso é o que não devemos fazer”[6]. Hoje a concentração de poderes coloca claramente a responsabilidade por toda esta loucura em poucas mãos, não há lugar para o destino sociológico. A III Guerra Mundial que se apregoa como fatalidade não é fruto do destino, mas da irresponsabilidade daqueles que podem decidir sentar-se e negociar. Os responsáveis pela hecatombe nuclear têm nome e sobrenome.
Mas não se iluda leitor, a omissão responsabiliza. Procure sua trincheira e faça sua parte, porque é possível parar essa guerra nuclear antes de que a política não tenha mais sentido. Hoje não se trata apenas da nossa espécie, os líderes que poderiam parar a guerra podem também acabar com a maioria das espécies que, diferentemente de nós, nada podem fazer para parar a loucura dos irresponsáveis que tomaram o poder.
Reconheçamos, há uma diferença de nossa época em relação àquela sobre a que pensou Mills. Naquela época havia consciência de que dessa guerra ninguém saldaria vitorioso, o que anulava a famosa definição de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, porque nenhum objetivo político pode resultar da Mútua Destruição Assegurada. Hoje a humanidade parece não ter aprendido nada do crime contra a humanidade perpetrado em Hiroshima e Nagasaki e seus rastros radioativos. Os líderes europeus que cacarejam sua vontade de guerra parecem acéfalas marionetes monotemáticas. Certos de que algum bunker os salvará, talvez imaginem que consigam parar a tempo seu perambular em direção ao precipício e conseguir algum resultado político ou econômico com essa loucura. Talvez esperem que a sociedade, carente de bunkers antinucleares, consiga se apavorar e ver no seu representante a única possibilidade de salvação. Mas nisso os lobotomizados líderes europeus também se equivocam: hoje as sociedades não temem a guerra real que não distinguem da virtualidade do War Game, não são conscientes do holocausto nuclear como na época de Mills, quando até as crianças nas escolas treinavam seus comportamentos ante um eventual ataque nuclear.
Hoje a humanidade é essencialmente outra, sua percepção virtualizada de um ataque nuclear é meramente estética e fugaz, como qualquer outra imagem virtual com as quais é bombardeada incessantemente e absorvida na sua dissonância cognitiva. Hoje, na inconsciência sonâmbula da sua vigília virtual, a humanidade caminha de olhos fixos nos seus celulares rumo à autofagia da espécie. Mas, talvez, ainda consigam levantar seus olhos para ver no horizonte histórico que outra possibilidade se descortina deixando entrar a luz da política, porque outro mundo é possível. Sobre este tema nos deteremos na próxima coluna.