A decisão da Justiça do Chile de decretar a prisão preventiva de Daniel Jadue, ex-pré-candidato presidencial do Partido Comunista, determinada nesta segunda-feira (03/06), foi o capítulo mais recente de uma disputa política que envolve não só os interesses da direita opositora ao próprio Jadue e ao presidente Gabriel Boric como também as brigas internas dentro da aliança governista chilena.
A juíza Paulina Moya, que emitiu a ordem de prisão conforme solicitado pelo Ministério Público, avaliou que a liberdade de Jadue seria “perigosa para a segurança da sociedade”. Por outro lado, a defesa do prefeito afirma que se trata de perseguição política. Alguns dos seus aliados compararam o caso com o lawfare sofrido por Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e por Cristina Kirchner na Argentina.
Contudo, a decisão não significa que Jadue foi condenado, mas sim colocado em prisão preventiva no âmbito da investigação do chamado “Caso das Farmácias Populares”, pelo qual é acusado de suborno, administração desleal e fraude contábil.
Para entender melhor a decisão da Justiça chilena, vale a pena conhecer o que são as farmácias populares e que efeitos essa iniciativa gerou no cenário político do país.
Remédios a preço de custo
O dia 15 de outubro de 2015 foi um dia inesquecível em Recoleta, e também para a história da saúde pública no Chile. Daniel Jadue, então prefeito do município que faz parte da Região Metropolitana de Santiago, inaugurou a primeira Farmácia Popular: um empreendimento ligado à prefeitura local que vende medicamentos a preços muito mais baratos que os das farmácias privadas.
O funcionamento era simples: a prefeitura de Recoleta compra os medicamentos diretamente com os laboratórios e revende a preço de custo. As Farmácias Populares de Recoleta exigem comprovante de residência dos clientes, ou seja, apenas quem é morador de Recoleta pode comprar em suas lojas e aproveitar preços que chegam a ser até 70% mais baratos que os das farmácias convencionais.
O modelo de gestão fez tanto sucesso que se reproduziu em mais de 170 municípios em todo o Chile, e aproveitou um cenário no qual as três grandes redes de farmácias do país haviam sido flagradas em uma investigação na qual se descobriu que seus executivos mantinham um esquema de colusão de preços – ou seja, combinavam os preços de acordo com as metas de lucro e outros interesses dessas empresas.
O sucesso desse modelo foi um dos principais fatores que alavancaram a figura de Jadue como pré-candidato presidencial. Além disso, o prefeito comunista reproduziu a fórmula em outros empreendimentos promovidos em sua gestão, como as Óticas Populares e até uma Imobiliária Popular, além da Universidade Aberta da Recoleta, visando garantir o acesso a direitos básicos como educação ou habitação, além de enfrentar a especulação imobiliária e outros interesses de grupos econômicos grandes e médios.
Em 2021, o prefeito disputou as eleições prévias para a Presidência do Chile contra Boric, atual presidente. O eixo da sua campanha se baseou na proposta de reproduzir em todo o país as iniciativas já existentes em Recoleta e criar outras formas de promover o acesso a direitos e produtos driblando os interesses empresariais.
Denúncia
No caso das Farmácias Populares, esse sucesso a nível nacional levou à criação, em 2016, da Associação Chilena de Farmácias Populares (Achifarp), da qual Jadue foi presidente até 2022, quando a entidade teve que ser dissolvida.
É a partir dessa associação que nasce a acusação judicial contra Jadue: as denúncias apresentadas pelo Ministério Público afirmam que ele teria desviado 1,3 bilhões de pesos chilenos (cerca de R$ 7,4 milhões) que deveriam ser pagos à empresa Best Quality, fornecedora de insumos e medicamentos, para uso desses recursos com fins eleitorais.
A investigação contra Daniel Jadue tramita no Ministério Público há quatro anos e levanta suspeitas entre alguns juristas, já que este é o último ano do comunista como prefeito de Recoleta – e que encerra seu terceiro mandato, limite máximo que a lei chilena permite.
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Principal figura do Partido Comunista do Chile na atualidade, Daniel Jadue teve sua prisão preventiva decretada pela Justiça
O advogado de direitos humanos Claudio Nash sustenta que o argumento da juíza para ditar a prisão preventiva – de que haveria risco de “reincidência nos casos ilegais”, e que Jadue seria “um perigo para segurança da sociedade” – atenta contra a presunção de inocência. “A periculosidade não está ligada à possibilidade de fuga ou afetação do processo”, analisou a Opera Mundi.
Outro questionamento sobre o caso tem a ver com a proporcionalidade da medida decretada pela Justiça. A denúncia contra Jadue é similar a que enfrentam outros prefeitos ou ex-prefeitos de direita, nenhum dos quais foi punido com prisão preventiva – em um desses casos, a ex-prefeita de Maipú, Kathy Barriga, foi sentenciada com prisão domiciliar.
Essa situação levou alguns setores a questionar a imparcialidade da Justiça nesses casos. Em suas redes sociais, Jadue publicou uma mensagem que aborda não só essa diferença de rigor como também a tentativa de criminalizar suas políticas. “Eles me julgam pela nossa gestão transformadora. Não tenho um único centavo no bolso, mas eles me punem com a medida cautelar mais pesada. Vamos apelar para esta decisão desproporcional!”, reclamou o prefeito.
Dias antes, quando se iniciaram as audiências sobre o processo, ele falou em tom bem mais otimista, dizendo estar “feliz por poder começar minha defesa e acabar com a configuração que a mídia e a promotoria criaram”.
Efeitos políticos
As questões políticas por trás do processo contra Jadue começam pelo fato de que tanto 2024 quanto 2025 são anos eleitorais no Chile, e o prefeito comunista faz parte da dinâmica eleitoral em ambos os processos.
Em outubro deste ano, o país realizará eleições municipais. No caso de Recoleta, a disputa já não teria Jadue, já que, legalmente, o atual prefeito não pode postular a uma terceira reeleição. Porém, sua condenação afeta as chances de eleger seu sucessor.
Nesse sentido, é importante destacar o fato de que um dos advogados que promove a ação judicial contra Jadue é Mauricio Smok, candidato a prefeito de Recoleta pelo partido de extrema direita União Democrática Independente (UDI).
Em 2025, haverá eleições gerais no Chile. E, assim como em 2021, Jadue figura como possível carta presidencial do Partido Comunista para as eleições prévias da aliança governista Aprovo Dignidade que reúne não só a sua sigla como também o Partido Socialista e outros partidos de esquerda – como o Convergência Social, do presidente Boric. A disputa judicial pode impedir essa candidatura, caso ele seja considerado culpado.
Apesar do Comitê Central do Partido Comunista ter concordado em “dar o seu mais amplo apoio ao camarada Daniel Jadue” e de mais de 1,5 mil pessoas terem assinado uma carta de solidariedade, algumas declarações dos seus colegas de governo foram consideradas mornas, algumas delas descartando a existência de lawfare no caso, o que deixa exposta certa divisão na aliança governista e no próprio PC, devido ao fato de que o prefeito de Recoleta costuma ser um crítico da gestão do presidente Boric, que ele considera moderado demais.
Um dos casos que aparenta essa divisão é o de Camila Vallejo, ex-líder estudantil e atual porta-voz do governo, que afirmou que “na política, os líderes políticos, os partidos, os parlamentares, têm desempenhado papéis diferentes. Tivemos muitos casos de prefeitos que estiveram em prisão preventiva decretados, associados a casos de corrupção ou outros. E em todos os casos sem distinção, como governo, indicamos que respeitamos o trabalho da justiça e continuaremos assim até o fim”.
A secretária-geral do Partido Comunista, Bárbara Figueroa, também foi cautelosa ao dizer que “embora não se possa afirmar que há qualquer intencionalidade ou perseguição política por trás disso, e por isso temos cuidado, também não somos ingénuos, e percebemos que essas coisas só acontecem contra administrações que ousam colocar em xeque certos interesses”.