A segurança internacional atingiu ultimamente temperaturas apenas vistas nos momentos precedentes às grandes guerras. A deterioração do “sistema internacional”[1] que está sofrendo uma dramática e profunda modificação era visível há já muito tempo e de forma clara. O grito de alerta foi dado pela crise financeira internacional de 2008. Mas não se tratava apenas de uma crise financeira, que se agravou no rearranjo das cadeias produtivas – algo que se aguçou durante o período da pandemia –, já que ela se anunciou como uma crise do próprio “sistema internacional”.
O neoliberalismo fazia água provocando uma brutal concentração da renda que aumentava o abismo social e a distância entre os países. O que tinha sido apresentado como a panaceia de todos os males econômicos e da economia planificada, que aumentaria o emprego social distribuindo rendas, mostrou-se monstruoso e insensível para com o crescimento do desemprego, da fome e da miséria. A “democracia”, que ondeava nas bandeiras das hordas armadas que a impunham à força em todos aqueles países que pretendessem decidir pela sua conta o destino dos seus povos e na direção contrária aos interesses do império, deixou ao seu passo frustração e desencanto com o sistema, desarticulação política, desmobilização social e desamparo ideológico. Os Tribunais, fontes de normatividade, encarregados de distribuir justiça de forma isonômica no sistema internacional, tiraram as vendas da imparcialidade dos olhos para não errar no descarado favorecimento dos poderosos na imposição, ao gosto de Trasímaco, dos seus desejos imperiais[2]. A mídia internacional foi colocando sua parcial visão do mundo como se fosse informação neutra, transformou a ideologia da barbárie acumulativa em “racionalidade ocidental” e do “mundo”, e convenceu todos os países obedientes a condenar aqueles que procuravam seus interesses nacionais como “anomalias” do “sistema”, ovelhas descarrilhadas que deveriam ser trazidas novamente ao rebanho. Em poucas palavras, transformaram a dicotomia “leis ou regras” em “regras ou caos”. Assim foi sendo caracterizado o período regido por regras imperiais que dividiu o mundo maniqueisticamente entre “bons” e “maus” e a gramática entre eles foi de ferro e fogo.
As manifestações da OTAN, que deveriam procurar a dissolução das ameaças e diminuição das suas próprias debilidades, parecem orientadas a fortalecer a frente dos adversários e aumentar suas vulnerabilidades. Talvez por padecer dos impactos contraditórios da expressão política interna estadunidense, ou por ter um objetivo estratégico que eu não consigo adivinhar a partir de minhas limitações cognitivas; o fato é que, na forma como a política externa estadunidense prepara diplomaticamente as guerras (isto é, o desenho das suas linhas exteriores, no sentido que oferece a esta expressão André Beaufre[3]), as decisões político-estratégicas parecem um claro exemplo de como fortalecer seus inimigos e perder a guerra. A menos que exista um desígnio político-estratégico que fuja a minha limitada compreensão da história, creio que se poderia escrever um manual de “Como perder guerras” apenas com a enumeração das guerras perdidas pela potência declinante como exemplos ilustrativos. A tão invejada capacidade tecnológico-militar, eroticamente desejada pelos militares da periferia estrategicamente dependente, de nada serviu para ganhar ao menos uma guerra desde o fim da II Guerra Mundial – nem sequer contra países paupérrimos em armamentos, mas inesperadamente sagazes em estratégia –, talvez pela ignorância do fato de que a guerra é um fenômeno político que a tecnologia nunca conseguirá equacionar.
O ocidente ideológico chegou em poucas décadas ao seu apogeu para, em menos tempo, o peso das suas contradições mostrar-se insuportável, até tornar o declínio do delírio imperial claramente visível. O arrogantemente autoproclamado “mundo ocidental” foi se desidratando frente a uma crescente “maioria global” atenta à dialética da história, que começou a reclamar o retorno a um “sistema internacional” regido por leis e não por meras regras casuísticas. A emergência de outras potências, que exigem para seu desenvolvimento um ambiente de multilateralidade política e o respeito ao conceito de indivisibilidade da segurança que promova uma paz favorável à normalidade da vida, parece hoje uma luz no fim do túnel.
Há fatos carregados de causalidade global que estão passando desapercebidos pelo mundo ideologicamente ocidental ou que, deliberadamente, a mídia corporativa oculta. Uma delas é uma notória mudança na diplomacia chinesa. Outra o movimento de peças perigosamente nucleares no tabuleiro do xadrez geopolítico global e as costuras diplomáticas de Putin para a construção de uma aliança diante de uma eventual III Guerra Mundial. O estado de alerta nuclear e as ações diplomáticas empreendidas ultimamente constituem eventos da maior relevância para tentar compreender o que acontece neste dramático momento no mundo, por isso nos deteremos brevemente sobre eles.
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(Foto: Casa Branca / Adam Schultz)
A milenar diplomacia chinesa se caracteriza pela prudência, moderação, discrição e uma meticulosa precisão na escolha das suas palavras. Focada no comércio internacional equitativo e ajustada milimetricamente às leis que o regulam, seu posicionamento na política internacional procurou pautar-se pela moderação e neutralidade nos conflitos, respeitando as soberanias nacionais, as diferentes formas de governo e suas respectivas expressões culturais. Não obstante isso, ante a agressividade ocidental, as coisas começaram a mudar.
Em julho de 2020, na cúpula da OTAN em Madri, foi aprovada a revisão estratégica da organização atlantista. Nessa oportunidade foi aprovado o novo Conceito Estratégico para a aliança, no qual se definem as prioridades, as tarefas essenciais e as abordagens para a próxima década. Nele, cita-se pela primeira vez nominalmente a China, que é tipificada como um “desafio de defesa”. Aí também se define a Rússia como uma “ameaça mais significativa e direta” à segurança dos EUA e seus aliados europeus. No que se refere ao país asiático, declara que “as ambições declaradas e políticas coercitivas da República Popular da China (RPC) desafiam nossos interesses, segurança e valores. A RPC emprega uma ampla gama de ferramentas políticas, econômicas e militares para aumentar sua presença global e poder de projeção, mantendo-se opaca sobre sua estratégia, intenções e desenvolvimento militar”, e agrega que Pequim “procura controlar os principais setores tecnológicos e industriais, infraestrutura crítica e materiais estratégicos e cadeias de suprimentos. Ela usa sua alavancagem econômica para criar dependências estratégicas e aumentar sua influência. Ela se esforça para subverter a ordem internacional baseada em regras, inclusive nos domínios espacial, cibernético e marítimo”. Um pouco antes disso, o embaixador chinês na ONU, Zhang Jun, tinha afirmado que a OTAN é o principal fator de crises “em diferentes partes do mundo” e que o intento declarado de expandir sua projeção estratégica para a Ásia poderia provocar graves conflitos.
A partir desse momento, no qual os dirigentes da OTAN, incentivados pela política externa estadunidense, acabaram aproximando aqueles que consideravam potenciais inimigos e acabaram promovendo a fusão de uma evidente, mas não formalmente declarada, frente sino-russa, a diplomacia chinesa foi aumentando os decibéis discursivos. Na medida em que os estadunidenses fortaleciam sua presença no Pacífico e fortaleciam seu cerco blindado a Taiwan, a RPC foi deixando mais clara sua posição de poderio regional e sua diplomacia de alcance global, esclarecendo suas críticas à OTAN e ao ocidente ideológico em todos os foros internacionais. Internamente, a China atualizou sua doutrina de defesa e incentivou sua musculosa indústria de defesa, e Xi Jinping discursou alertando suas Forças Armadas para estarem muito bem-preparadas para “todas as guerras”. Considerando a capacidade de potência, inclusive tecnológica e nuclear, da RPC, não parece razoável irritá-la incentivando o separatismo em Taiwan.
Ante a quase declaração de guerra da OTAN contra a Rússia, Putin, por sua vez, está fortalecendo seu posicionamento estratégico, não apenas no território ucraniano, mas noutras latitudes, inclusive nas cálidas águas caribenhas. A carga nuclear disponível em mísseis hipersônicos que estão sendo reposicionados estrategicamente e que, na nossa coluna anterior, chamamos de “restabelecimento do sistema dissuasivo”, não despertou, como esperado, o alarme internacional, nem curiosidade por parte da mídia corporativa. O reposicionamento de armamento nuclear operacional e em estado de alerta criou o desequilíbrio que deveria ter acionado a credibilidade do primeiro ataque nuclear e assim reestabelecer a dissuasão[4], mas, ou pelo deliberado ocultamento da mídia corporativa pró-ocidental, para continuar com a fantasia da guerra contra Rússia, ou pelo seu embasbacamento por cobrir as eleições estadunidenses, não se deu a devida atenção ao tema, e a dissuasão não funcionou.
Outra forma de dissuasão se realiza diplomaticamente por linhas exteriores, fechando alianças e desenhando as frentes de fricção em que uma eventual III Guerra Mundial se desenvolveria. Este tipo de dissuasão, que chamo “dissuasão diplomática”, funciona como tal na medida em que uma das partes da possível beligerância possa visualizar que a capacidade potencial de alianças que o adversário consegue arranjar é muito superior ou mais consistente que a própria. Não é casual, nem porque gosta de turismo, que Putin realizou várias viagens recentemente a países e regiões estratégicas. Para qualquer um com um mínimo de sensibilidade estratégica, o quadro que está se configurando internacionalmente é apavorante. Teoricamente, tanto o dispositivo nuclear montado quanto os movimentos por linhas exteriores de Putin deveriam ter proporcionado suficientes elementos dissuasórios. Todavia, a mídia corporativa internacional está com os olhos fixos no patético embate entre Trump e Biden.
O ocidente ideológico parece ainda não ter percebido o estremecimento geopolítico global que sacode a história em uma profundidade e intensidade inéditas. Sua mídia narcotizada dirige seus holofotes para o lamentável espetáculo das eleições norte-americanas entre o ruim e o pior, duas trágicas marionetes em mãos do operador invisível que define o roteiro da peça. A sociedade internacional permanece grudada nos seus televisores, seguindo atentamente o deplorável espetáculo do debate pelo comando do ocaso do império, sem perceber que o que está em disputa é quem, ao sair, desligará as luzes do último ato da tragédia humana.
(*) Héctor Luis Saint-Pierre é professor da Unesp, coordenador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e ex-diretor da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). É autor de “Max Weber: entre a paixão e a razão” (Editora Unicamp) e “A política armada: fundamentos da guerra revolucionária” (Editora Unesp).