O título deste texto usa o mesmo nome do livro do coronel do Exército Alessandro Visacro (Editora Contexto, 2018), que descreve que a guerra, além de ser um fenômeno político, é, antes de tudo, um fenômeno social e relata a importância do controle informacional numa disputa. O novo modelo de comunicação/informação vem provocando alterações nas guerras; faz com que os conflitos – declarados ou não – enfrentem uma redefinição das agendas nacionais de segurança e defesa no enfrentamento do chamado inimigo, com uma narrativa que domine os pensamentos e arraste seguidores, observa o texto do livro.
Desde 1964, com um plano de comunicação composto por diretrizes profissionais e eficazes, as forças armadas vêm conseguindo esconder e/ou camuflar ações de violência praticadas durante o período de exceção, construindo uma narrativa de ordem e poder que até hoje se mantém no imaginário popular, mesmo passados mais de 30 anos após o fim do regime e da censura, a abertura política e a consolidação da democracia no país, os trabalhos da Comissão da Verdade e de toda a historiografia registrada. Afinal, quantas vezes você já escutou comentário sobre pessoas presas e torturadas na ditadura afirmando que “alguma coisa boa ele não fez”?
O conceito registrado por Visacro exalta a importância da comunicação, da construção de uma narrativa própria ante o enfrentamento em campo de batalha. Diz o teórico militar que o planejador que, inadvertidamente, priorizar as ações cinéticas, ou seja, a guerra simples de enfrentamento em campo, atribuindo-lhes um fim em si mesmas, estará fazendo uma opção deliberada pela derrota. “Há que se desenvolver uma compreensão holística mais ampla, que incorpore as abordagens securitárias, política, econômica, social e informacional, de forma complementar e interdependente”.
Assim, foi criado um mecanismo de comunicação eficiente, sem constrangimento ou controvérsias. Esse esquema narrativo não recebe até hoje questionamentos sobre sua veracidade ou parcialidade. Construiu-se uma narrativa especial para se ver e entender a história da ditadura, com o olhar militar. Situação muito semelhante com o negacionismo e revisionismo praticados no governo Bolsonaro.
Afirma o coronel Visacro que é necessário combater a anomia que contribui para o avanço de ideias subversivas e práticas delituosas. É preciso identificar e fortalecer os valores éticos e culturais que historicamente dão coesão e sustentação à sociedade local. Talvez essa parte do plano hoje esteja um pouco tresloucada, mas ainda funciona com parte da população.
O controle da narrativa na guerra
A história da ditadura brasileira no período 1964-1985 teve e tem a adesão de enorme parcela da população, meios de comunicação, comunidade acadêmica, religiosa e empresários. Soma-se a isso o fato de os movimentos de resistência à ditadura e à repressão durante os anos de chumbo contarem com poucos acessórios e meios de comunicação junto à população nacional e internacional.
Ainda que tenha se registrado a existência de periódicos de comunicação independentes que circularam no período da ditadura militar no Brasil fazendo oposição intransigente ao regime militar – a chamada imprensa alternativa –, que denunciavam sistematicamente as torturas e violações dos direitos humanos e criticavam o modelo econômico estabelecido – tratava-se de uma rede pouco articulada e precária (até mesmo por conta da situação de clandestinidade), se comparada com a sofisticada estratégia comunicacional desenvolvida pelo governo militar e a atuação da e na grande imprensa. Sem contar que a propaganda oficial que também direcionou e manipulou muita informação.
A estratégia comunicacional das forças militares descrita pelo coronel do Exército Alessandro Visacro no livro A guerra na era da informação revela a existência efetiva de teoria e planejamento para a comunicação como um dos mais importantes planos a serem postos em prática durante o que chamam de guerra. Visacro demonstra que a estratégia de comunicação colocada em prática foi eficaz e é duradoura. No capítulo “Desconstruindo um futuro distópico”, ele trata da retomada do controle territorial sobre áreas não governadas.
Importante relembrar que o livro mostra como o Exército se posiciona numa guerra em relação à comunicação, item considerado mais do que importante num enfrentamento. A comunicação para os militares tem tanta importância quanto o treinamento militar dos soldados, a logística, os recursos existentes na luta com o inimigo. Podemos vivenciar isso hoje, na guerra de narrativas que está dominada por um certo “gabinete do ódio” e pelas redes sociais bolsonaristas.
No item “dimensão informacional”, o coronel Visacro elenca ações a serem planejadas e colocadas em prática. Ele aponta que até mesmo as narrativas a serem utilizadas devem ser controladas de acordo com o interesse do Estado no poder. Fala em desenvolver campanha agressiva para garantir que a informação a ser repassada para o público – leia-se a população e também opinião nacional e internacional – mostre credibilidade. Ou seja, ensina a construir um mecanismo eficaz de informação.
Para obter o controle da narrativa, escreve, é preciso “desenvolver campanhas agressivas de comunicação estratégica com o propósito de auferir credibilidade, iniciativa e primazia às informações governamentais: desenvolver mecanismos eficazes de gestão de informação; fortalecer os vínculos de cooperação com os órgãos de imprensa nos níveis local, nacional e internacional”.
Para o militar, a estratégia de comunicação a ser adotada está reproduzida a partir de experiência de outras ações das forças militares no Brasil e no exterior. Visacro traça o perfil existente das ações propagandísticas e comunicacionais adotadas durante a ditadura e aponta que mais importante do que a guerra em si, as ações consideradas e usadas para manipular e orientar a opinião pública são mais do que necessárias. São ações estratégicas que iam além das ações de censura e de repressão aos grupos que tentavam desempenhar uma “guerra popular” contra as forças de repressão, contra o governo militar.
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Uma das páginas do jornal alternativo Em Tempo
Além de reagir violentamente contra os chamados subversivos, os militares passaram a pensar e a implementar ações de comunicação e criação de narrativas próprias, explica o estudioso do modus operandi dos militares brasileiros Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para conseguir eliminar qualquer tipo de divergência que pudesse se contrapor à segurança nacional.
Seria concepção igualmente redutora explicar a criação do sistema de segurança do regime militar com base em fatores reativos: na verdade a montagem de um “setor especificamente repressivo”, paralelamente à constituição do sistema de informações, era um projeto que, apoiado em outros instrumentos (como a censura e a propaganda política), pretendia eliminar ou ocultar do país tudo o que constituísse divergência em relação à diretriz geral da “segurança nacional”, relata o Carlos Fico no livro Como eles agiam – os subterrâneos da ditadura militar: espionagem e polícia política.
A estratégia comunicacional de manipulação usada pelos militares durante o período em que estiveram no poder (1964-1985) e durante o período de anistia, e que chega aos dias de hoje, foi capaz de sedimentar na opinião pública um conceito forte de aversão aos movimentos de esquerda, denominados subversivos, comunistas, conforme observa Jurgen Habermas, em Mudança estrutural da esfera pública.
“Ao invés de uma opinião pública, o que se configura na esfera pública manipulada é uma atmosfera pronta para a aclamação, é um clima de opinião. Manipulativo é sobretudo o cálculo sociopsicológico de ofertas endereçadas a tendências inconscientes e que provocam reações previsíveis, sem, por outro lado, poder de algum modo obrigar aqueles que, assim, se asseguram a concordância plebiscitária: apoiando-se em “parâmetros psicológicos” cuidadosamente elaborados e em apelos experimentalmente comprovados, quer-se que, quanto melhor eles devam atuar como símbolos da identificação, tanto mais eles percam a sua correlação com princípios políticos programáticos ou até mesmo argumentos objetivos”.
“Assassinato da memória”
Será que há alguma semelhança com o que vivenciamos hoje?
Todo esse processo que vem sendo desenvolvido desde 1964, e cresce de intensidade e violência nos dias de hoje. Esse processo, Irene Cardoso chama de produção do inexistencialismo, como “assassinato da memória”. “No Brasil, o processo de abertura altamente controlada pelas Forças Armadas, que se segue a um período de violenta repressão – e em alguns momentos ocorre simultaneamente com ações repressivas extremas -, configura a “normalização” da sociedade e da política.
De um lado, a característica da longa transição concorre para o esquecimento ou diluição, na memória coletiva, do terror implantado pela ditadura militar e, de outro, a imposição do esquecimento, que toma forma no processo de anistia, interdita a investigação do passado e produz a necessidade do recalque da situação extrema da repressão. No limite, o esquecimento como imposição da repressão podendo produzir o “inexistencialismo” – realidades que passam a ser consideradas inexistentes pelos “assassinos da memória”.
É no quadro destas considerações que se pode propor uma interpretação do processo de “normalização” da sociedade e da política no Brasil, marcado pela interdição do passado, seja no aspecto da longa transição, onde o tempo parece adquirir uma dimensão inercial que em si mesma produziria o esquecimento, seja no aspecto da imposição mesma do esquecimento – a anistia – que provocaria o efeito de uma “neutralização moral” do passado”.
Todo o trabalho comunicacional militar teve estreita aliança com setores da sociedade, como a imprensa e mídia de massa, que fez a população, desintegrada enquanto público, fosse midiatizada de tal maneira pelos meios publicitários e da grande mídia que, por um lado, conforme descreve Habermas, pode ser chamado a legitimar acordos políticos sem que, por outro lado, ele seja capaz de participar de decisões efetivas ou até mesmo de integrar essas instâncias de decisão. O que fica bem evidenciado com a mistura das ações de relações públicas que manipularam os fatos históricos. Ou seja, a mídia emprestou seu prestígio para que o poder de plantão, os militares, divulgassem sua narrativa contra o comunismo, pela família e a tradição, travestidos com o manto da segurança nacional.
Estes aspectos de neutralização da oposição, com ênfase em narrativa, criaram confusão dentro da parcela de brasileiros que ainda conseguia acompanhar os acontecimentos no período de ditadura, embora fossem grandes a censura e a falta de informações. Tal confusão dentro e fora das instituições, segundo Ulrich Beck, favorecem a formação de redes de apoio a quem detém o poder, que ultrapassa os limites dos sistemas e das instituições, gerando perigo para a sociedade e a manipulação dos discursos.
Para Beck, a definição do perigo é sempre uma construção cognitiva e social. “De certa maneira, portanto, a desintegração das instituições dá lugar a uma refeudalização dos relacionamentos sociais. É a abertura para um neomaquiavelismo em todos os setores da ação social”. Não se deve esquecer que paralelamente às ações manipuladoras da mídia de massa, o uso da força – a repressão – também foi utilizada para assegurar a dominação do Estado.
O Estado como força de execução e de intervenção repressiva, a serviço das classes dominantes, segundo definição de Louis Althusser em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado – notas para uma investigação, de 1970. Compreende-se como Estado, segundo Althusser, as organizações nele contidas, como o Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, a Justiça, etc. que foram denominadas, sob o prisma marxista, de Aparelho Repressivo de Estado.
Tudo isso escrito acima tem relação com o período da ditadura – 1964-1985 – e se prolonga até hoje. Ou não?
(*) Eduardo Reina é jornalista e autor de Cativeiro sem fim – As histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil (Alameda).
(*) Texto publicado originalmente na página QuarentenaNews.