Fanta Berete, 48 anos, de Lyon, é uma das autoras do projeto de lei contra a chamada discriminação capilar na França. Se aprovada no Senado (a norma já passou pelo crivo da Assembleia), será a primeira desse gênero na União Europeia.
De pais guineenses (Guiné Conakry, antiga colônia francesa), a deputada macronista conhece em primeira mão o sofrimento desse tipo de preconceito. Por pressão social e para encontrar emprego, ela passou décadas alisando os cabelos crespos com produtos nocivos à saúde – uma técnica conhecida na França como “alisamento brasileiro”.
A deputada afirmou querer gerar uma tomada de consciência, pese as reações negativas de parte da imprensa – “uma reivindicação sectarista”, segundo Le Figaro, “uma palhaçada”, segundo Le Point.
Em entrevista exclusiva a Opera Mundi, Berete defende que a norma, inspirada na lei de 2019 aprovada na Califórnia (chamada “Crown Act”), contribuirá para que os afrodescendentes possam usar seus penteados ou rastafaris sem medo de perderem o emprego, serem repreendidos no trabalho ou mesmo desclassificados em processos seletivos.
Mas não somente: também seriam impactadas outras pessoas cujos cabelos não se encaixam no padrão de beleza – de ruivos a calvos, incluindo aqueles que perderam os cabelos devido à quimioterapia.
Leia na íntegra a entrevista de Opera Mundi com Fanta Berete:
Opera Mundi: a lei francesa estabelece 26 critérios de discriminação passíveis de sanção. É necessário adicionar outro critério?
Fanta Berete: não se trata de um critério suplementar e sim de uma precisão. Ou seja, queremos adicionar precisão a um desses critérios, o da aparência física. Isso visa proteger as pessoas que, por exemplo, tiveram câncer ou que, pelas suas origens, têm cabelos cacheados, principalmente devido à mestiçagem. Cerca de 20% da população na França seria impactada pela lei.
Como de fato prevenir a discriminação capilar durante uma entrevista de emprego? O recrutador pode sempre indicar outro motivo para recusar um candidato, a fim de não incorrer em crime.
Se um candidato pensar que teve uma discriminação durante uma entrevista, pode apelar à Procuradoria ou à instituições como o DILCRAH [órgão governamental que combate o racismo, o antisemitismo e o preconceito anti-LGTB]. Cerca de 80% das empresas cumprem as leis francesas. Por isso estamos tão otimistas.
Enquanto não há lei ou enquanto ela não for bem precisa, cada qual faz o que quer. É assim que avançamos: com luta e, muitas vezes, com leis. Isso serve para remexer o status quo. Um bom exemplo foi a discussão sobre moda e cor. Antes quase não tínhamos modelos negras, agora sim.
Você é filha de pais guineenses. Nos conte um pouco o seu percurso pessoal, se você sofreu preconceito pelos seus cabelos.
Chorei muito, muito na minha vida, mas eu sempre tentava seguir adiante. É ainda uma batalha diária. Eu sempre tive de passar por muitos processos seletivos, de enviar um monte de candidaturas, recebia muitos nãos. Acabei encontrando pessoas que não era preconceituosas e que avaliaram meu mérito profissional.
E hoje, como as pessoas veem os seus cabelos?
Quando mudo de penteado, os meus colegas deputados me tocam o cabelo, acham que têm direito de fazer isso, eu, com 48 anos, como se o meu cabelo fosse engraçado. Minha filha de 20 anos tem o cabelo muito crespo e ela faz alisamento todo dia. Ela gasta um tempo enorme e muita energia com isso, e os produtos são ruins para a saúde dela.
Num domingo, três dias após a primeira votação da lei na Assembleia, ela saiu para comprar pão sem alisar os cabelos. Ela me confessou que tinha acompanhado os debates na Assembleia e que seguiria alisando os cabelos para ir à escola, mas não mais para comprar pão. Tive vontade de chorar.
Por que tantas críticas contra uma lei que beneficiaria tantas pessoas?
Ainda há muito preconceito. E há a ideia de que as pessoas que têm sucesso profissional, como eu, são exemplos de que não existe racismo. Não é assim. Eu também sofri e sofro discriminação. O que esta lei quer é fazer uma espécie de reparação, dizer “nós pensamos em vocês”. É isso já é muito importante. Hoje eu posso dizer que uma professora que eu tive na escola primária era racista. Na época, eu não podia.
Deveria se aplicar a discriminação positiva, com a instauração de cotas em concursos públicos ou no acesso às universidades, por exemplo?
Eu sou a favor, mas na França esse debate ainda não existe.