Travados na mira do atirador de elite mais letal da história militar dos Estados Unidos estão dois iraquianos: mãe e filho. Em sua primeira operação no Iraque, o sniper acompanha de perto a mulher entregar um explosivo à criança, enquanto um comboio norte-americano — potencial vítima da bomba — se aproxima da dupla. Antes do fim da cena, cujo desfecho a plateia já imagina, o primeiro corte temporal do filme. Chris Kyle, agora uma menino de oito anos de idade, efetua o disparo fatal e acerta um cervo, recebendo elogios do pai. Na mira do franco-atirador, o animal selvagem substitui a família iraquiana.
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Filme 'Sniper americano', dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Bradley Cooper, concorre a seis prêmios Oscar, incluindo melhor filme
Assim começa Sniper americano, longa dirigido por Clint Eastwood, sucesso de bilheteria nos EUA e candidato a seis estatuetas no Oscar, incluindo a de melhor filme. A película, que estreou nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (19/02), traz Bradley Cooper no papel de Chris Kyle, “A Lenda”, herói de guerra norte-americano por ter acumulado o maior número de mortes confirmadas ao longo de sua carreira militar. São cerca de 160 vítimas em quatro passagens pelo Iraque.
A associação sugerida pelo plano inicial já dá indícios de como o filme lida com a questão do terrorismo — e por que tem protagonizado debates tão polêmicos. Em repetidas passagens, Kyle se refere aos inimigos como “selvagens”, tática de desumanização que pode até ser compreensível para o bem da saúde mental de um franco-atirador, que enxerga, através da mira de seu rifle a instantes do disparo, os rostos e feições das vítimas bem de perto. Mais do que isto, Sniper americano peca ao não retratar sequer um civil iraquiano “do bem”. No Iraque do diretor Clint Eastwood, todos, até mesmo as crianças, aplaudem e participam de atos terroristas. No Iraque “de verdade”, a contagem de corpos de civis no conflito que se estendeu de 2003 a 2011 varia de 150 mil a até 1 milhão de mortes.
Carlos Latuff/Opera Mundi
Charge do cartunista Carlos Latuff questiona modo como filme 'Sniper americano' lida com questão iraquiana
Não à toa, Sniper americano, cujo roteiro foi baseado na autobiografia escrita pelo protagonista, tem sido alvo de duras críticas. Uma organização árabe-americana de direitos humanos diz que o filme é islamofóbico, glorifica a guerra e estimula “violentas ameaças” contra muçulmanos. Em vez de advogar pelo boicote, a entidade pede que denunciem mensagens de ódio recebidas: “O filme me fez ficar com vontade de sair e atirar em uns árabes”, disse um usuário no Twitter.
Desonestidade histórica
Mais perigoso, entretanto, do que o flerte com o racismo — “Mal desprezível. Era isto que combatíamos no Iraque. (…) Acredito que o mundo seja um lugar melhor sem esses selvagens tirando vidas americanas”, chegou a escrever Chris Kyle —, é o modo como os eventos históricos da Guerra do Iraque são recriados pelo diretor Clint Eastwood, que, embora republicano convicto, desde o início se manifestou contra a invasão. Em mais de um momento, Sniper americano é intelectualmente desonesto com os espectadores.
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A primeira falsa impressão que o filme causa é a ideia de que os Estados Unidos invadiram o Iraque como uma consequência direta (e natural) aos atentados de 11 de Setembro de 2001. Na película, Kyle e a esposa assistem perplexos pela televisão os aviões atingirem as torres do World Trade Center; logo depois, o protagonista já é enviado ao Iraque. Não há nada, nesse meio tempo, que explique o que realmente serviu de pretexto para George W. Bush: as alegações — provadas infundadas — de que Saddam Hussein possuiria armas de destruição em massa. Tampouco há menção ao Afeganistão, esta, sim, uma retaliação aos ataque às Torres Gêmeas. No filme, é como se os eventos de 11/9 não deixassem outra opção aos EUA senão invadir o Iraque. A guerra aparece como um espasmo natural norte-americano.
Outra falsa impressão que o filme deixa é a de que o principal objetivo dos EUA no Iraque era combater a Al Qaeda, organização chefiada por Osama bin Laden e responsável pelo 11/9. Logo na primeira passagem de Kyle pelo país, presumivelmente nos idos de 2003, 2004, seu pelotão é incumbido de eliminar quadros da filial iraquiana da Al Qaeda. Assim, o espectador é levado a crer que os EUA foram forçados a intervir no Iraque porque o país havia se transformado em um novo celeiro de operações da organização terrorista. O que aconteceu foi precisamente o contrário. A invasão norte-americana trouxe ao Iraque a desestabilização necessária para que uma célula terrorista da Al Qaeda se desenvolvesse no país. Número um da Al Qaeda no Iraque, e retratado no filme, Abu Musab al Zarqawi, como bem recorda o site Vox, só formaria o grupo mais tarde; sua entrada no país se deu especificamente por causa do caos instalado com a ocupação norte-americana. O grupo terrorista, inclusive, aproveitou-se do apoio de iraquianos insatisfeitos com a presença dos EUA e as ações desastrosas de Washington no país.
Tática da despolitização
Esquivando-se das acusações de que o filme exacerba no patriotismo e desafina no tom político-histórico, Bradley Cooper, protagonista e produtor da película, diz que Sniper americano não é um filme político e muito menos toma posição sobre o conflito. “Não é um filme sobre a Guerra do Iraque, é sobre o horror do que um soldado como Chris Kyle tem de enfrentar. Não é um filme político, mesmo. É um filme sobre um homem, um estudo de personagem”, diz Cooper, indicado ao Oscar de melhor ator pelo papel.
Abaixo, o trailer, legendado em português, do filme 'Sniper americano':
De uma maneira geral, Sniper americano hesita entre estas duas funções. Como filme de guerra, traduz com precisão a experiência militar de um específico SEAL norte-americano no meio do front. Também como filme de guerra, falha grosseiramente tanto ao deixar de esclarecer as reais motivações históricas que explicam o episódio, quanto ao ignorar a experiência dos impactos da guerra nos civis iraquianos. Nos dois casos, a saída é pela tangente: tentar despolitizar uma obra cultural cujo conteúdo vem claramente embutido de um carregado discurso político.
A estratégia usada para salvar Sniper americano de seus vícios é a mesma empregada desde 2001 pelos patriotas norte-americanos mais ferrenhos na defesa cega da chamada “Guerra ao Terror”. Diante das críticas às consequências do esforço dos EUA pós-11/9 — suspensão de direitos civis, violações aos direitos humanos, acusações de tortura, prisões de exceção, Guantánamo, Abu Ghraib, Ato Patriótico, etc —, o atalho era esvaziá-las de conteúdo político. Opor-se aos arroubos belicistas da Casa Branca não tratava-se de opinião política, mas sim de endosso automático ao terrorismo.