O primeiro governo de esquerda da história do México está prestes a terminar e, neste domingo (02/06), segundo todas as pesquisas, obterá o aval do povo para um novo mandato de seis anos. A experiência política única é chamada no país de “Quarta Transformação”. Nesta entrevista realizada no Distrito Federal mexicano, o famoso escritor Paco Ignacio Taibo II, militante governista, oferece uma visão interessante sobre esse fenômeno, mas com uma condição: a bola de cristal só serve para jogar boliche.
Paco Taibo é um nobre defensor da Quarta Transformação (4T), o processo de mudança promovido pela esquerda mexicana após a sua chegada ao governo, há seis anos, está alinhado ao lado do líder Andrés Manuel López Obrador desde o século passado e faz parte de uma geração que nasceu na política no mítico ano de 1968, por isso viu o rosto da crueldade do poder. Mas Paco é também, e acima de tudo, um escritor insaciável. Publica livros com a mesma frequência com a que fuma cigarros, um após o outro, sem parar. Os romances policiais de Héctor Belascoarán são a sua marca pessoal, mas são as biografias de figuras políticas importantes, como Che Guevara e Pancho Villa, as suas verdadeiras bombas editoriais.
Como se não bastasse, Taibo sempre foi um ativista cultural consistente. Um promotor obsessivo da leitura plebeia. Um extremista de tinta e papel. Portanto, chegar à direção geral do Fundo de Cultura Econômica (FCE), histórica editora pública que em breve celebrará o seu aniversário de número 90, é para ele como tomar o céu de assalto.
Nos cumprimentou logo após nossa chegada ao prédio corporativo localizado no centro da Cidade do México, em algumas mesas instaladas na calçada, num quente meio-dia de primavera.
Para começar com calma, pedimos a ele um balanço do primeiro sexênio da esquerda no poder com Obrador. “Sempre se pede mais do que a vida pode dar e a vitória da 4T em 2018 foi cheia de ilusões. Demorou para descobrirmos que estávamos herdando um aparato muito podre, muito ineficiente, cheio de regras, bloqueios, sistemas. Uma coisa era ocupar o governo federal e outra era ter o poder. Os obstáculos estavam por toda parte, vinham aparecendo de forma cáustica. O mais virulento foi a resistência de uma parte do Judiciário que continua sendo comprada e vendida. Porém, não se pode deixar de dizer e reconhecer que a gestão deste governo tem sido muito positiva em alguns espaços. Os gastos sociais, que têm sido defendidos com unhas e dentes, significaram uma nova forma de decidir o destino dos recursos públicos, uma mudança substancial na administração pública mexicana. Estamos falando de milhares de bolsas de estudo para jovens e, quando nos aprofundamos no que está por trás disso, descobrimos que a evasão escolar caiu cerca de 30%. E a única resposta para isso é que estas bolsas permitiram que esses jovens tivessem dinheiro para transporte, para alimentação durante o dia e, portanto, não tiveram que abandonar o ensino secundário ou superior. Em termos de grandes infraestruturas, houve avanços extremamente ambiciosos: a Ferrovia Transoceânica, o Trem Maia, as novas refinarias, a rede de barragens. As informações sobre quando essas novidades vão começar a funcionar são compartilhadas rapidamente com toda a população. Quando as refinarias fornecerem gasolina, quando o Trem Maia transporta produtos das comunidades e não apenas turistas, quando o polo de desenvolvimento comercial-industrial do sudeste facilita a situação conflituosa no Panamá, tudo isso é amplamente divulgado”.
“Por outro lado, há uma mudança substancial na consciência popular, uma mudança brutal, que está se enraizando na sociedade. Obrador tem sustentado sua popularidade, contra todas as probabilidades, através de um discurso direto, usando vários mecanismos, como as visitas a todos os locais do país, as coletivas matinais realizadas quase diariamente, promovendo um tipo diferente de diálogo com o povo. Ele representa um fenômeno único no mundo, porque todo projeto de governo, historicamente, tem um período de desgaste: o sujeito governa por cinco anos, perde 20% de aprovação, ou 30%. Aqui, Obrador manteve seus 60% em todo o mandato, para surpresa, ou delírio, ou desespero da direita, que não consegue compreender como é que ele sustenta essa aprovação durante tanto tempo. Mas ele também tem sido consistente em dizer não à reeleição, em dizer que após o mandato vai voltar para casa. A vitória de Claudia (Sheinbaum) nas eleições prévias – com a qual a ex-prefeita da Cidade do México se tornou a candidata presidencial do partido governista Movimento de Regeneração Nacional (Morena) – representa, na minha opinião, o triunfo que na minha da ala esquerda da 4T, e abre uma porta de continuidade que teria de enfrentar imediatamente o problema da simplificação burocrática administrativa, de tal forma que, do dizer ao fazer, não há muita distância. Você começa a descobrir a lógica profunda do PRI (sigla do Partido Revolucionário Institucional, de centro-direita) e do PAN (sigla do Partido da Ação Nacional, de extrema direita) quando estão no poder, aquela quantidade de etapas ou mediações que era preciso passar para qualquer procedimento no aparelho de Estado. Porque quando tudo é difícil, a corrupção é o óleo que mantém o sistema funcionando. Em resumo, eu diria que, de um modo geral, ganhamos a batalha ideológica, e vamos ganhar as eleições”, acrescenta Paco.
O presidente Obrador disse em seu livro Obrigado, publicado recentemente, que o objetivo é construir um país pós-neoliberal. Houve avanços nestes seis anos? Estamos no meio do caminho com as principais bases já estabelecidas?
Eu tinha uma bola de cristal, mas outro dia a usei para jogar boliche. Não me molestem com previsões. Quando entramos no Estado, há seis anos, eu não tinha ideia do quão maligna era a opressão diária desse aparato. Não tínhamos ideia de onde estava o dinheiro da corrupção, porque era para obras públicas: se constrói uma estrada e em vez de custar 10 custa 18, mas não havia dinheiro, estava escondido, ou nem isso, como foi claramente revelado, no não pagamento de impostos por parte da oligarquia. Conseguimos resgatar uma parte desses milhões de pesos em obras públicas, mas o dinheiro que escapou com a corrupção não está mais lá. E, com os partidos de direita destruídos, essa oligarquia se refugiou nos meios de comunicação: centenas de jornais, milhares de estações de rádio e dezenas de televisões. Os setores mais conservadores desta sociedade estão se unindo.
O governo da Claudia gera expectativas para você?
Primeiro, a vitória será clara. Depois, será preciso implementar uma política de simplificação administrativa, que permita que os projetos fluam muito mais para a população. Vai ser divertido, porque é uma missão com objetivos muito complicados. Por exemplo, o desequilíbrio entre o público e o privado em termos de comunicação é mortal, já que 90% dos meios são privados. Isso é uma prioridade. É preciso recuperar propostas sobre promover televisão e rádio de qualidade, com níveis de independência em relação ao setor privado e às suas máfias midiáticas.
A mudança de mentalidade popular tem a ver com o discurso de Obrador ou existe uma abordagem mais estratégica?
A figura de Obrador é um fato, mas o fenômeno da 4T também é outro fato. Muito provavelmente, Claudia herdará um país mais fácil de governar do que o que aquele que Obrador recebeu, porque já se descobriu quem são os inimigos. Mas é preciso muito trabalho quando se propõem políticas de médio e longo prazo. Por exemplo, quando Obrador diz que a única forma de combater o tráfico de drogas é aquele jovem parar de admirar o bandido que tem uma corrente de ouro de um quilo no pescoço, e encontrar um sentido para a vida na educação, na saúde, no esporte, na cultura. Enfim, essa mudança requer pensar em políticas com resultados a longo prazo. É uma questão cultural, numa sociedade que, graças à mídia privada, aplaude o sucesso de quem anda com corrente de ouro.
Também é verdade que a promessa de integração e avanço social do projeto estatal-nacional não é muito válida para a maioria.
Não sei, quando você navega nas profundezas desta sociedade como eu navego, porque o trabalho que o Fundo Cultural faz é totalmente ligado ao cotidiano das ruas, é possível sentir a comunidade em todos os lugares, conversar com as pessoas, nas feiras de livro, nos clubes de leitura. Na base social, a primeira coisa que se descobre é que o grande sucesso da 4T é que os programas sociais estão criando perspectivas de avanço social. Esses direitos sociais adquiridos funcionam como uma renda extra que permite que o negócio se expanda. Isso está funcionando e precisamos que funcione ainda mais. Aqueles que estão semeando vida nas áreas de lagos deveriam começar a criar cooperativas para comercializar o peixe que pescam. A primeira parte já foi alcançada: nessas comunidades a dieta proteica cresceu significativamente, mas agora é necessário ir além.
Livros para o povo
Paco Taibo promoveu uma reviravolta no FCE. Transformou-o numa editora popular, dando a ele um poder de comunicação que não tinha, além de um horizonte utópico pelo qual ele se tornou um movimento social de base. Entre as conquistas que o entusiasmam está o crescimento de subsidiárias no exterior, principalmente na Argentina. E Paco não pensa em ir a “a la chingada” (“quebrar a cara”), como se diz no México. Sua nomeação já foi renovada por mais cinco anos. Portanto ele deixará o Fundo como um octogenário.
Pode nos dizer em que consiste a tarefa que o Fundo de Cultura Econômica realizando?
Começamos com três objetivos: um, baixar o preço dos livros, caso contrário as pessoas não conseguiriam pagar. Depois, lançamos coleções como Popular e Vientos del Pueblo. São publicações vendidas por menos de um dólar, com tiragens massivas, redes de distribuição inovadoras, chegando aos lugares mais remotos, ônibus de livros visitando escolas todos os dias, feiras de livros que ninguém conhecia.
E fizeram isso graças a um aumento no orçamento do Fundo?
Não, fizemos isso com menos dinheiro. É um problema de racionalização de recursos e mudança de eixos: livros mais baratos, distribuições populares, chegar a qualquer canto do país onde haja potenciais leitores, clubes e salas de leitura para promover o movimento organizacional de base. E isso permitiu ao Fundo crescer tremendamente em termos de impacto social. Quando cheguei, o Fundo era aquela coisa que publicava livros que se você fosse estudante de Economia ia ter que ler. Agora, tornou-se uma área de prestígio social. É famosa até mesmo em localidades como Pochutla, em Oaxaca e nas montanhas de Durango, porque já estivemos lá.
Você luta há muito tempo para promover a leitura entre as classes populares. Essa luta está sendo vencida ou está se tornando mais difícil, tendo em conta a mudança de mentalidade do mundo contemporâneo?
Está ficando cada vez mais divertido, com resultados cada vez mais positivos, e se tornando cada vez maior. Todos os dias, nós encontramos colegas de diferentes clubes de leitura, de populações das quais nunca tínhamos ouvido falar na vida, e isso me permitiu percorrer o país diversas vezes, até dizer chega. Estamos realmente criando raízes sociais, aumentando o nível de leitura deste país. E ler é democracia. Um mexicano que lê é mais esperto que um mexicano que não lê, não há dúvida.
Como é essa proposta de criação de um movimento social em torno dos clubes de leitura?
Quando chegamos havia uma base que eram as salas de leitura. Existe um mediador, que tem a função de promover a leitura. Demos forma a isso, falamos por telefone e ao vivo com todos os mediadores do país e lançamos uma missão mais simples, que é a dos clubes de leitura: oito pessoas se organizam e recebem três dias de formação via internet sobre como organizar, como os livros chegarão, como definir quais livros podem funcionar e quais não, como detectar as necessidades de leitura de sua própria comunidade. Aí, eles recebem uma coleção de sementes que o Fundo doa, nós doamos milhões de livros. Eles batizam o clube com o nome que quiserem e começam a funcionar. Então, interrelacionamos os clubes para que haja sabedoria compartilhada: clubes que fazem dinâmicas com apresentações de marionetes, clubes que trabalham com deficientes, clubes que trabalham com educação materna, clubes especializados em lidar com crianças bem pequenas, daquelas que mordem os livros. No momento, temos uma rede massiva de 16 mil clubes.
Todos aqueles que participam o fazem voluntariamente?
Todos, porque se começarmos a distribuir salários nós pervertemos, e burocratizamos isso.
Cuspir para cima
Há 13anos entrevistamos Paco pela primeira vez. Naquele momento lhe perguntamos: como está o México? “Besteira”, ele respondeu. E olhou para o Cone Sul, onde se multiplicavam os governos progressistas, com uma certa inveja: “o México e a Colômbia são como os patinhos feios deste filme. Nós, mexicanos, temos uma tendência muito poderosa de nos trancarmos dentro de nós mesmos. Não sei se é um fenômeno cultural, ou algo histórico, ou da geopolítica peculiar em que estamos inseridos, ou da intensidade com que vivemos. Mas existe uma espécie de autismo em comparação com o resto da América Latina”.
Hoje a situação mudou, mas tudo parece indicar que o país de Zapata continua a olhar mais para o norte do que para baixo. Embora Paco esclareça: “no início deste mandato de seis anos, Obrador olhava pouco para a América Latina, estava obcecado com o problema de controlar a presença e a pressão norte-americana. Ao final desse mandato de seis anos, ele tem uma perspectiva muito mais latino-americana do que antes, houve confrontos e abraços, houve de tudo. Acho que isso vai se aprofundar com Claudia”.
No entanto, o problema é mais profundo: “ainda não recuperamos um nível comum no aspecto cultural e esta é uma das chaves”, afirma Taibo. “Porque nas sociedades divididas pelo Tampão do Darién (istmo que divide a América Latina, no Panamá) e pelo fato de os argentinos dizerem ‘cabasho’ e não cavalo, temos o terrível problema de criar pontes de comunicação. A grande ponte dos Anos 60 é influenciada primeiro pela Revolução Cubana, depois por uma combinação de indústrias editoriais muito fortes, como a mexicana e a argentina, a cubana, a queda do franquismo na Espanha, a trova, a canção, o cinema. Aquela grande onda desapareceu, o neoliberalismo a engoliu, tudo voltou a ser mercado e negócio. E agora está voltando lentamente. É difícil fazer com que um livro publicado na Argentina seja bem distribuído no México, porque cada vez mais é preciso explicar quem é e de onde vem”.
Ou seja, há um desmantelamento daquelas correntes culturais que atravessavam todo o continente.
Hoje existe boa vontade.
Com relação às eleições nos Estados Unidos deste ano, quem você prefere que ganhe, pensando no futuro da 4T?
Não dou a mínima, não tenho poder de influência. Embora tenhamos projetos para alcançar leitores latino-americanos que moram nos Estados Unidos com nossos livros. O plano para o próximo ano é criar 200 clubes de leitura em 200 cidades dos Estados Unidos, sem apelar para uma tendência de mexicanismo. A ideia é chegar aos leitores em espanhol, gosto dos argentinos de Nova York, dos latinos de Chicago, até dos colombianos do Tennessee.
Não sei se você viu a proposta da extrema direita para uma iberosfera, baseada na língua comum, que permitiria à Espanha recuperar uma área de influência.
Meu pai dizia, com muita sabedoria, que existe um oceano que nos une e uma linguagem que nos separa, a tal ponto que aquilo que no México se chama ‘banqueta’, na Espanha se diz ‘acera’, e de um país para outro o que é um ‘ascensor’ pode virar ‘elevador. Acredito que o pensamento imperial espanhol só tem alguma possibilidade de ressuscitar se estivermos dispostos a assumi-lo como nosso, e no México isso é impossível. Se Hernán Cortéz (colonizador espanhol) quiser vir dar uma volta, seus pés vão arder diante dos que virão vingar Cuauhtémoc (líder asteca). Eles não têm capacidade de recuperação histórica, as glórias imperiais espanholas no México não valem nada. A iberosfera? Deixe-os falando bobagens.
Você vê alguma vitalidade na literatura latino-americana hoje?
Estou lendo o que posso, de vez em quando você encontra coisas interessantes, mas não tenho pulso. Além disso, há um problema geracional: tenho dificuldade em ler um jovem uruguaio de 20 anos que tenha talento, onde diabos o encontro, como leio, como ele me alcança, como ele se sintoniza comigo, ou sua literatura é muito descolada para eu entrar? Há muitos tons que eu não domino, é difícil para mim distinguir entre uma cantora de rock da moda e a mãe do Elvis Presley. Meus parâmetros culturais envelheceram de forma cruel.
Em seu último livro aparece novamente uma figura que é recorrente para você: Rodolfo Walsh.
É um dos amores da minha vida, uma obsessão. Quando sento ao lado de Walsh, eu o repreendo: desgraçado, o caminho não era só virar guerrilheiro, era preciso continuar escrevendo “Essa Mulher” e “Esse Homem”. Não dissocie a literatura, porque existe uma espécie de síndrome do “assim foi forjado o aço”, porque “o partido me pede para não continuar escrevendo poemas”. Não idiota, o jogo pede que você seja mais humano do que nunca. Minha relação com Walsh é uma relação de profundo amor e carinho, de curiosidade, de respeito, criada ao longo de muitos anos de ter lido toda a sua obra, de ter feito o documentário, que deu muito certo e está carregado de emoção. Mas eu tenho esse debate com ele: a carta para a filha dele é muito boa, mas eu estava escrevendo uma história e estou preocupado em saber onde diabos essa história foi parar.
Não é também um pouco do transe em que você está agora, tão focado na política?
Não, porque acabei de terminar um livro e estou escrevendo outro. O último se chama Los Alegres Muchachos de la Lucha de Clases (Os Alegres Rapazes da Luta de Classes), é uma canção geracional para dizer que estar na esquerda não é apenas emocionante, não é apenas estar do lado bom da sociedade em que você vive, mas também é um muito divertido, e idiota.