Ver grupos terroristas impondo treinos militares a crianças é algo chocante. Entretanto, se nada for feito, é difícil imaginar um futuro para esses meninos e meninas fora desse ambiente de terror e violência. “E ninguém vai pensar duas vezes antes de matá-los quando forem adultos”, alerta o pesquisador John Horgan, da Universidade da Georgia, nos Estados Unidos. Horgan, um estudioso experiente do terrorismo, e sua colega de trabalho Mia Bloom, também referência no tema, passaram os últimos três anos levantando informações sobre o uso de crianças em conflitos em Israel, Paquistão, Afeganistão, Palestina, Iraque, Síria e Somália.
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O projeto, bancado pelo departamento de defesa norte-americano, trazia no nome sua ambição: “Preventing the next generation” (“Evitando a próxima geração”, em tradução livre). A ideia era mapear o porquê do aumento da cooptação de crianças por grupos terroristas, permitindo assim a criação de estratégias para interromper esse ciclo. Desde então, porém, muita coisa mudou – e, infelizmente, não para melhor. Estratégias como a do grupo extremista Estado Islâmico (EI), de envolver crianças desde os primeiros anos de vida em atividades militares, surpreendem até mesmo os pesquisadores. Prestes a lançar o livro, produto dos três anos de investigação, Horgan conversou com Opera Mundi sobre o tema e não se mostrou muito otimista. “O poder que o EI conquistou vem da nossa inércia”, diz o especialista, que acredita que muito pouco tem sido feito para evitar um futuro nebuloso não apenas para essas crianças, mas para todos nós.
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O pesquisador norte-americano Josh Horgan, da Universidade de Georgia, nos EUA
Opera Mundi: No começo de janeiro o Estado Islâmico publicou um vídeo em que mostrava um garoto britânico fazendo ameaças aos “não-crentes”. Em sua opinião, qual é a intenção do grupo ao fazer isso? É mostrar poder?
John Horgan: Para mim o maior objetivo [do EI] é chocar as pessoas. Eles são mestres da guerrilha psicológica e sabem que é exatamente isso que um vídeo como esse faz. Eles querem nos fazer crer que não existe nada que eles não possam fazer. Neste caso, eles estão mostrando que podem manipular crianças desde muito pequenas.
OM: As crianças não entendem exatamente esse “jogo” no qual elas são postas, não é mesmo? Como elas são afetadas por isso?
JH: De um ponto de vista psicológico, essas crianças claramente não entendem o que elas estão fazendo. Elas não sabem que aquilo é errado e é justamente isso o que torna essa atividade tão aterrorizante. No senso comum, as pessoas se referem ao que o EI faz com essas crianças como “lavagem cerebral”. Eu definiria como uma completa transformação psicológica. Eles estão transformados essas crianças de espectadores em militares. Vi crianças fazendo de tudo no EI, desde assistir a execuções até realizar elas mesmas as execuções. Há ainda alguns casos em que elas se tornaram “crianças-bomba”.
OM: E por que o EI está tão interessado em não apenas treinar essas crianças, mas também em mostrar o que estão fazendo?
JH: Acho que há várias razões. A primeira, como disse anteriormente, é chocar a audiência, é promover a guerrilha psicológica. Eles sabem que mostrar crianças é algo que nos incomoda profundamente e eles querem provocar esse tipo de reação: eles querem que vejamos, que falemos sobre eles, que tenhamos medo deles. Outro motivo, este interno, é mostrar para potenciais combatentes em outros países que ser soldado do EI é compatível com ter famílias e filhos. É como se dissessem: “Podem vir, porque aqui há espaço não só para você, mas também para seus filhos”. A terceira grande razão, acredito, é porque eles estão preparando uma nova geração de combatentes.
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Meninos em treinamento militar do Estado Islâmico
OM: Então não é apenas uma questão de usar as crianças como material para propaganda?
JH: Não. Se você fizesse essa mesma pergunta há um ano, eu diria que sim, que era apenas propaganda. Agora, porém, é claro para mim que o interesse nas crianças vai além disso. Ao preparar essas crianças, eles estão investindo no futuro do grupo.
OM: O EI é mais violento com as crianças do que outros grupos terroristas?
JH: Sim. Há outros grupos no Paquistão e no Afeganistão que também usam crianças em sua estrutura, por exemplo, o braço paquistanês do Talibã recorre a “crianças-suicidas”. É comum que os grupos terroristas tenham alguma maneira de envolver os adolescentes na sua estrutura, mas o que temos visto com o EI é que eles abraçam o uso de crianças desde muito cedo. Essa característica faz com eles se assemelhem mais às milícias do que a outros grupos terroristas. Por exemplo, há alguns grupos armados africanos em que é comum ver crianças-soldado.
OM: Nos seus artigos você menciona que as crianças do EI têm origens diferentes: alguns são órfãos, outros se voluntariam e há aqueles que são levados pelos pais estrangeiros ao se juntar ao grupo. Qual dessas “fontes” é a mais difícil de controlar?
JH: Essa é uma pergunta difícil de responder. Não sei se é possível definir. O EI vai recrutar gente em qualquer lugar em que eles consigam se meter. É difícil evitar que crianças órfãs sejam recrutadas porque o grupo controla os orfanatos na região. É difícil controlar a entrada das crianças vindas de outros países, especialmente naqueles casos em que pessoas fogem de casa para se unir ao grupo. Provavelmente é mais fácil reduzir a chegada de crianças de fora do que diminuir a participação das crianças das áreas controladas.
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OM: Mesmo assim, continuamos vendo crianças de países como a França ou o Reino Unido fugindo para se juntar ao EI. Você considera que os governos estão errando ao prevenir esses casos?
JH: Não é ilegal para alguém com um passaporte válido viajar para a Turquia, por exemplo. Entretanto, acho que deveria haver alguma intervenção quando a segurança de uma criança possa estar em risco. Houve casos no Reino Unido em que famílias inteiras viajaram juntas, sem problemas.
OM: Casos de crianças vindas de outros países sempre geram muita repercussão, mas há milhares de meninos e meninas da Síria e do Iraque nas mãos do EI. Como é possível ajudar essas crianças?
JH: Onde o EI controla o território, não há nada que possa ser feito para evitar que eles explorem as crianças. Temos visto membros do grupo usando crianças estrangeiras, crianças da região, reféns. A verdade é que não temos nada a fazer enquanto eles estiverem dominando uma área.
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Meninos em treinamento aparecem em diversos vídeos divulgados pelo EI
OM: No último ano vimos pela primeira vez o uso de mulheres-bomba na Europa. Você acha que essa prática pode se tornar mais frequente?
JH: O caso francês ainda precisa ser esclarecido pelas autoridades para se ter certeza de que a explosão foi intencional. De qualquer maneira, não acho que o EI vá recorrer a essa prática. A liderança do grupo deixou muito claro que a única situação em que mulheres estão autorizadas a se explodir é nos casos em que elas são atacadas dentro de suas próprias casas. São situações muito limitadas. Há outros grupos que sim, têm recorrido a essa prática nos últimos anos. Um exemplo é a Al Qaeda no Iraque, que tem usado mulheres-bombas com frequência. Não acho, porém, que esse venha a ser o caso do EI.
OM: Isso tem a ver com o pano de fundo religioso, com a maneira como o EI entende o papel das mulheres sob este viés?
JH: Em parte sim, mas em parte também tem a ver com a cultura organizacional do grupo e com o fato de que, por agora, eles não precisam de mulheres-bomba. Eles têm ainda um arsenal grande de homens que pode cumprir esse papel. As mulheres, no geral, têm atuado mais em funções secundárias, de auxílio. Além disso, há algumas que são figuras centrais para as atividades de recrutamento do grupo.
OM: O mesmo vale para o treinamento de garotas para cumprir funções militares?
JH: Sim. Também acho pouco provável que eles comecem a treinar meninas.
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Meninos em aula de leitura do Corão em campo de treinamento do Estado Islâmico
OM: O EI tem reforçado o recrutamento de mulheres jovens em países ocidentais. Como eles conseguem ser tão atraentes a ponto de fazê-las irem para uma região em guerra, muitas vezes levando seus filhos?
JH: A imagem que o EI projeta para essas mulheres é a de que eles oferecem uma experiência libertária: um lugar onde elas podem ir e circular livremente. A ironia dessa situação é que essas mulheres estarão sob um controle muito maior estando dentro do grupo do que estavam antes, em seus países. Existe uma diferença muito grande entre a fantasia e a realidade que as mulheres encontram dentro do califado.
OM: Durante o período de pesquisa para seu próximo livro, qual história relacionada ao EI lhe marcou mais?
JH: Acho que o mais assustador em todas as histórias com que tive contato é a falta de ação. O poder que eles conquistaram vem da nossa inércia. Eles têm sido autorizados não apenas a conquistar territórios, mas também a mantê-los como um santuário. A maior parte dos grupos terroristas desaparece depois de alguns poucos anos, mas o EI tem crescido mais e mais, sem ser punido. Falta uma ação contínua para efetivamente barrar o grupo. O caso das crianças é só um exemplo disso: essas crianças que hoje são exploradas pelo EI serão os terroristas de amanhã e ninguém vai pensar duas vezes antes de matá-los quando forem adultos.