A entrevista abaixo foi publicada originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de abril de 2001. Resultado de uma conversa tensa, mas muito interessante, com o sociólogo Hélio Jaguaribe (1923-2018), morto no último domingo (09/09), um dos grandes nomes do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) que aderiram ao projeto tucano no processo de redemocratização.
Jaguaribe demonstrou grande apreço pela discussão, discorrendo com enorme entusiasmo e sem incômodo diante das discordâncias que apresentei. A conversa foi por telefone, transcrita e um tanto condensada. Não tenho mais a versão completa.
Discordo profundamente de muitos aspectos conservadores da leitura dele, mas não posso negar que gostei da conversa.
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O fim da história ou a civilização planetária
Patrocinado pela Unesco e publicado inicialmente em inglês em 2000, Um Estudo Crítico da História será lançado no início de maio no Brasil, em dois volumes (Paz e Terra, 684 e 792 págs.). A obra é resultado de seis anos de trabalho de uma equipe coordenada por Hélio Jaguaribe.
“Depois do governo Collor, voltei para a vida acadêmica”, afirma o sociólogo, que foi secretário de Ciência e Tecnologia até o impeachment do ex-presidente, em 1992. “Quando surgiu o escândalo, decidimos ficar, para proteger o Estado, até que o sucessor pudesse indicar seus assessores”, explica Jaguaribe, de 77 anos. “Nos demos conta de que nenhuma pessoa aceitaria ser ministra de Collor a não ser para roubar.”
A pesquisa inclui estudos sobre Mesopotâmia, Egito, Israel, Pérsia, Grécia, Roma, Bizâncio, Islã, índia, China, África, América pré-colombiana e o Ocidente. Cinco coautores (Joseph Ki-Zerbo, Heraclio Bonilla, Kees Bollo, Hugh Kennedy e José Calvet de Magalhães) participam dos capítulos 10, 11, 13, 14 e 16. Outros nomes colaboraram, como consultores.
O trabalho do sociólogo alemão Alfred Weber, irmão de Max Weber, serviu como um dos pilares do trabalho de Jaguaribe, especialmente o livro História da Cultura como Sociologia da Cultura. “Ele mostrou que era necessária uma abordagem sociológica da história”, diz Jaguaribe. Outro autor que serve de apoio para Jaguaribe é Arnold J. Toynbee, autor de Um Estudo da História.
Segundo o autor, Um Estudo Critico da História foi escrito em “inglês da ONU” (cheio de erros), a língua franca entre os pesquisadores. “Depois, passei o texto para um conhecedor, que o converteu para um inglês de verdade; agora, o embaixador Sérgio Marques fez essa tradução para o português – tenho a impressão de que mesmo a teria escrito assim”.
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Qual o principal objetivo desse trabalho?
Esse livro é uma tentativa de fazer algo que é chamado muito pomposamente de sociologia da história. Eu fui muito motivado pela leitura de Alfred Weber. O objetivo era estudar a partir de uma visão sociológica, e não dogmática e apriorística, as condições que influenciam a emergência, o desenvolvimento e a decadência das grandes civilizações.
Por que isso é importante, para o sr.?
Para compreender a nossa situação, é cada vez mais necessária uma perspectiva histórica. Uma análise isolada do Ocidente no mundo contemporâneo elucida muita coisa, mas é insuficiente. É preciso comparar com o que aconteceu com Roma, Atenas, Babilônia. Além do interesse intrínseco que o entendimento do processo histórico apresenta, a necessidade de nos compreendermos a nós próprios exige essa análise histórica comparativa.
Para o sr., o Ocidente está em emergência, desenvolvimento ou decadência?
Uma das coisas que o trabalho mostra é que existem civilizações que vivem “decadências não-irreversíveis” e são susceptíveis de serem reajustadas a partir de modalidades novas. O Islã está atravessando uma fase desse tipo. A civilização indiana passa por esse momento. Assim também a ocidental. A civilização ocidental, tal como ela vai se desenvolvendo a partir da ruína do império de Carlos Magno até a Primeira Guerra Mundial, tinha como centro uma convicção de que o fundamental era a presença de Deus. A partir da Primeira Guerra e, de uma maneira acelerada, após a Segunda Guerra, as convicções profundas do homem ocidental deslocaram-se dessa visão cristã para uma centrada na ciência e na tecnologia. Ninguém usa mais Adão e Eva para explicar o surgimento do homem, mas a teoria darwiniana da evolução das espécies. Essa transformação gerou a transformação da civilização ocidental clássica no que eu chamo de civilização ocidental tardia.
Para o sr., há, portanto, uma separação clara entre esses dois períodos.
Há uma comparação histórica interessante, que é a adoção do cristianismo pela civilização romana. Hoje, os historiadores reconhecem que o período cristão romano corresponde ao que se chama da Antiguidade Tardia. Os valores da civilização romana a partir de Constantino não são mais os do tempo do Augusto. Algo de equivalem e ocorre conosco. Nossos valores não são mais os da Idade Média, mas os científico-tecnológicos. Isso vai levar à decadência ou não? É uma questão em aberto. Há alguns sinais preocupantes de decadência, como a conversão do homem em um ser movido pelo consumismo destituído de valores superiores. Se esse consumismo intransitivo se consolidar de modo irremediável, a civilização ocidental tardia entraria em decadência. Se esse consumismo for objeto de revisões que sustentem valora superiores, a civilização ocidental pode dar margem a algo que eu chamaria de civilização planetária.
É o fim da história, proposto por Francis Fukuyama?
Fukuyama tem uma visão um tanto simplista. Acha que o fim da história vem com o liberalismo, o capitalismo, com a eleição de George Bush. Creio que a história terá um fim, na medida em que a Terra é um planeta que terá um fim. Mas antes da catástrofe cósmica, creio que haverá o fim da história, porque o progresso não é indefinido. Os parâmetros culturais de nossa civilização ainda dispõem de certa margem de possibilidade de progresso. Mas, quando o progresso acaba, o homem se repete, a história termina.
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O que o sr. pensa do modelo do choque de civilizações, proposto por Samuel Huntington?
Não acho que vivamos um choque de civilizações. Huntington confundiu choques de países pela disputa da hegemonia mundial com choques entre as civilizações. O que ocorre, na verdade, é a adoção, por civilizações como o Islã, a indiana e a chinesa, de valores que emergiram com a civilização ocidental tardia, no sentido de formar uma civilização planetária. A ideia de uma guerra entre os EUA e a China só é possível na medida em que a China adquira condições científicas e tecnológicas equivalentes às dos EUA. Portanto, que se torne coparticipante da civilização ocidental tardia. No ritmo mais longo, as civilizações estão se fundindo.
O que é, exatamente, uma civilização?
A palavra civilização tem dois sentidos: o socioantropológico e o histórico. Em sentido tido socioantropológico, é a característica de uma sociedade que emerge do neolítico para a idade urbana – constrói casas, passa a ter uma escrita, a ter um sistema político, um sistema religioso, uma certa tecnologia. Historicamente, as civilizações são uma superestrutura cultural. Ela ocorre quando uma sociedade que atingiu socioantropologicamente a condição de civilizada gera uma cultura, que exerce com estabilidade num determinado território, de modo autossustentável.
Como assim?
As civilizações acabam quando perdem a capacidade de autossustentação. A autossustentação, analisada de mais perto, apresenta dois aspectos: a auto-operacionalidade e a autorregulabilidade. Ou seja: como auto-operacionalidade, a civilização tem de dispor de técnicas para enfrentar o meio ambiente, adversários externos; a autorregulabilidade decorre do fato de a cultura de uma civilização gerar noções do mundo e normas de conduta que permitem que ela se regule, por conta própria, em função dos seus valores. Quando as civilizações perdem os seus valores, elas perdem a autorregulabilidade. É o que ocorreu com a civilização egípcia e com a civilização babilônica, que foram devoradas pelos valores helênicos.
O sr. afirmou que, no século 21, não haveria espaço para os índios.
Eu disse em 1994, mas pensando num prazo muito mais longo, não no ano 2000. Assim como o homem neolítico se converteu num homem urbano, ou seja, civilizado, o nosso índio, que é o neolítico, será arrastado, independentemente do que se faça, a converter-se num homem civilizado. Ele será absorvido pela cultura brasileira porque ele vai se tornar civilizado.
Então o sr. realmente crê numa absorção completa, não num processo de redefinição da cultura indígena.
As coisas se passam nos dois aspectos. As culturas tendem a se defender dos impactos de culturas superiores absorvendo instrumentos como o rápido, pensando que podem adotar esses instrumentos modernos sem adotar a sua cultura. Mas, na medida em que elas aumentam seu grau de complexidade, descobrem que quem cura não é o pajé, mas a penicilina. Quem opera direito não é o feiticeiro, mas o cirurgião. Eles são arrastados a se integrar pela própria experiência. Não é o branco que a impõe violentamente, o que seria uma idiotice. Há outra idiotice, a dos que querem transformar o índio numa espécie de jardim zoológico do primitivo, como se pudessem conservar um homem neolítico cercado pelos civilizados. Isso termina quando o neolítico decide que é melhor ser civilizado.
Como foram escolhidas as civilizações analisadas no livro?
Foi uma escolha subjetiva. Quais são as civilizações que merecem um estudo comparativo, sem prejuízo de outras, que poderiam configurar. Eu não estudei especificamente os fenícios, embora tenha tratado deles em conexão com o império persa. Não trato deles isoladamente, assim como não trato da civilização cartaginesa, que é uma decorrência da egípcia. Não era necessário. Da mesma maneira, não trato isoladamente a civilização japonesa, que no seu fundamental é próxima da chinesa e no seu aspecto de modernização já é uma civilização ocidental. Refiro-me ao desenvolvimento do Japão a partir da Revolução Meigi, mas não tenho um capítulo sobre o Japão.
O sr. afirma que há pontos em comum em todas essas civilizações.
Toda civilização consiste numa superestrutura que se mantém enquanto preserva sua capacidade cultural. Quando, por motivos diversos, perde sua auto-operacionalidade ou sua autorregulabilidade, ela desaparece. Isso ocorre quando há um esmagamento militar de uma sociedade por outra ou, o que é mais frequente, a penetração cultura de uma sociedade por outra, minando os valores dessa sociedade. Foi o que se passou com as civilizações cosmológicas da Mesopotâmia, que foram contaminadas pelo logos grego. Um dos casos mais interessantes é o da civilização israelita antiga. Uma parcela importante de Israel foi convertida ao logos grego. Outra, refugiando-se no Talmud, resistiu e pôde manter uma cultura israelita que acabou se fundindo com a ocidental a partir do século 18.
E o que torna as civilizações específicas?
É a cultura, uma certa visão do mundo, uma forma de operar fisicamente sobre o mundo. Daí esse fenômeno que parece caracterizar um futuro previsível: a constituição de uma civilização planetária, pela fusão da civilização ocidental tardia com elementos das civilizações indiana, chinesa e islâmica, e de outros elementos, africanos, por exemplo.
De certo modo, essa é uma antiga utopia.
Sim, em termos de que várias civilizações aspiraram a tornar sua cultura universal. A primeira que aspirou a isso foi a persa, que encontrou resistência grega. A segunda, foi a grega, que, por intermédio de Alexandre, conseguiu ultrapassar o limite europeu e penetrou na Pérsia, invadindo inclusive parte da Índia. Outra civilização que tem essa aspiração é a ocidental.
O sr. não estaria repetindo essa utopia?
Mas não é utopia. São processos reais. Alexandre helenizou a Pérsia. Era utopia pensar que helenizava o mundo todo. Mas, hoje, os recursos à disposição da civilização ocidental são tão amplos que, com o processo de globalização, essa civilização está se tornando realmente ecumênica. Ela vai encontrar resistências em núcleos civilizatórios que subsistiram. Uma das coisas mais interessantes do mundo contemporâneo, na minha opinião, é o fato de que a civilização chinesa dá demonstrações de que deverá integrar a civilização planetária sem se deixar absorver pela ocidental.
Para o sr., os EUA que lideram o Ocidente?
Mais ou menos. Os EUA certamente exercem uma hegemonia parcial do ponto de vista econômico, financeiro, técnico, militar. Mas os EUA têm uma capacidade de difusão de sua cultura proporcioi a seu ingrediente cultural europeu. Na medida em que há uma certa perda do coeficiente europeu nos EUA atual, eles perdem capacidade de influência superior, passam a depender da cultura popular. A União Europeia terá um papel muito importante na configuração da cultura da civilização planetária.
É possível prever uma data para essa civilização planetária?
Essas coisas são difíceis. Tudo indica que ela deverá se configurar no curso do século 21, já adquirindo características observáveis no século 22. As civilizações são processos culturais de maturação muito lenta.