A conservadora Theresa May deixa nesta quarta-feira (24/07) a liderança do partido e o cargo de primeira-ministra do Reino Unido apresentando sua renúncia à rainha Elizabeth II em cerimônia privada no Palácio de Buckingham.
Após sofrer diversas derrotas políticas durante o processo do Brexit, a segunda mulher a liderar um governo no Reino Unido moderno anunciou sua renúncia em maio, dando início a uma disputa interna dentro do partido conservador que terminou com a vitória de seu ex-ministro das Relações Exteriores Boris Johnson.
Na liderança dos tories – como são chamados os conservadores – durante três anos, Theresa May foi encarregada de conduzir e concluir um dos mais complexos e polêmicos processos pelo qual o país já passou, quando assumiu a liderança do partido em 2016 após o referendo que decidiu a retirada do Reino Unido da União Europeia. O chamado Brexit, abreviatura em inglês para “saída britânica”, ocupou massivamente o noticiário político local desde seu início e desgastou duramente o capital político com que May iniciou seu governo.
Antes de assumir o cargo, a agora ex-premiê era classificada por seus colegas parlamentares como uma “forte liderança” e por vezes chegou a ser comparada com a ex-primeira ministra Margaret Thatcher, conservadora chamada de “dama de ferro” que governou o país entre 1979 e 1990. Entretanto, May enfrentou diversas derrotas políticas que, acumuladas, custaram a renúncia de 36 ministros, três rejeições de seu acordo para o Brexit no Parlamento, súplicas a Bruxelas por um prazo maior para a saída do bloco, uma fracassada tentativa de acordo com os trabalhistas e, apesar de sobreviver a duas moções de desconfiança que quase a derrubaram, sua renúncia.
Para Giorgio Romano, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, a tarefa da qual May foi incumbida “era uma missão impossível”. “Parecia Dom Quixote. Porque a decisão [de se retirar da UE] é uma decisão irracional. A motivação da população podia ser concreta, mas o populismo está muito forte. Era um salto para o caos”, afirmou.
‘Deporte primeiro, ouça apelações depois’
May ingressou na política da forma tradicional, trabalhando em grupos de base do partido conservador, ainda nos anos 1980, antes de ser eleita vereadora em Londres pelo distrito de Merton, em 1986. Se tornou parlamentar apenas em 1997 pelo distrito de Maindenhead, na cidade de Berkshire, e desempenhou funções de fiscalização dos ministérios dos governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown, entre 1999 e 2010, quando os conservadores eram oposição.
Com a vitória eleitoral do conservador David Cameron em 2010, May foi nomeada ministra do Interior, cargo do qual só saiu para assumir a chefia de Governo em 2016. Sua gestão à frente da pasta ficou marcada pela chamada “política de ambiente hostil” a migrantes, o que levou ao escândalo de deportações da geração Windrush.
Embalada por um discurso anti-imigração, a então ministra instituiu uma política restritiva contra moradores do Reino Unido que não possuíssem visto permanente. À época, May afirmou que o objetivo era realmente “criar um ambiente hostil para imigrantes ilegais” e, assim, tornar cada vez mais difícil a vida de uma pessoa sem visto. Com as medidas, proprietários de terra, empregadores, instituições de caridade, empresas, bancos e, até mesmo, o Sistema Nacional de Saúde pública (NHS) foram legalmente obrigados a checar documentos de identidade e negar serviços aos indivíduos que não apresentassem a documentação necessária.
Em 2013, durante pronunciamento no Parlamento, May chegou a dizer que, em alguns casos, o governo planejava deportar primeiro, para depois ouvir apelações. Criticada por organizações de direitos humanos e parte expressiva da sociedade britânica, a política migratória da então ministra chegou a afetar a chamada geração Windrush, filhos de migrantes vindos de países caribenhos membros do Commonwealth britânico que chegaram ao Reino Unido entre 1948 e 1970, por meio de uma política que concedeu o direito de se estabelecer no país europeu a cidadãos de antigas colônias.
O “escândalo Windrush”, como ficou conhecido, aconteceu após diversas pessoas que faziam parte desta geração serem presas, terem seus direitos civis negados e serem ameaçadas de deportação para o “país de origem”. Segundo o jornal britânico The Independent, mais de 160 cidadãos que pertencem a essa geração foram presos ou deportados erroneamente pelas autoridades de migração do governo. Do total, ocorreram 83 deportações, sendo que o Ministério do Interior, já ocupado pela conservadora Amber Rudd que assumiu após May se tornar premiê, reconheceu e se desculpou por apenas 18 delas.
Brexit means Brexit!
A passagem turbulenta de May pelo Ministério do Interior, no entanto, não a impediu de concorrer ao cargo de premiê, que ficara vago após a renúncia de David Cameron em junho de 2016. A saída de Cameron foi acompanhada pelo início do processo de retirada do Reino Unido da União Europeia, que se transformou no gatilho da renúncia do então primeiro-ministro.
Em 24 de junho de 2016, 51,9% dos britânicos decidiram que o país deveria deixar o bloco europeu, dando início ao Brexit e provocando a renúncia de Cameron, que apoiava a permanência britânica na UE. “Agora que a decisão foi tomada, precisamos encontrar o melhor caminho. Farei o que for preciso para ajudar. Eu amo esse país e me sinto honrado de ter servido a ele”, disse o premiê antes de apresentar sua renúncia à rainha Elizabeth II.
A chegada de May ao cargo de premiê se deu após todos os outros concorrentes dentro do partido abrirem mão de suas candidaturas, inclusive Andrea Leadsom, que acabou se tornando a líder do governo de May no Parlamento e renunciando em maio deste ano por divergências em relação ao Brexit. Embora fosse favorável à permanência do país no bloco europeu, May assumiu a liderança do governo com a promessa de respeitar os resultados do referendo e concluir o processo do Brexit. “É muito importante que reconheçamos que o Brexit irá acontecer, mas não podemos deixar isto nos consumir. Brexit significa Brexit! [Brexit means Brexit!]”, disse à época.
Uma vez empossada, a conservadora chegou em Downing Street com o desafio de conduzir o país em sua retirada da UE da melhor maneira possível e fez uso de um mecanismo legal que estipulava um prazo máximo de dois anos para que o Brexit fosse concluído, tempo que se mostraria insuficiente ao longo das negociações. Logo no primeiro ano de seu governo, May enfrentou resistência não apenas do Partido Trabalhista, como dos Liberais Democratas e dos movimentos de independência da Escócia, o que a levou a convocar eleições em uma manobra para tentar se fortalecer durante os diálogos com Bruxelas.
Apesar dos conservadores saírem vencedores do pleito, perderam maioria no Parlamento e tiveram que firmar acordo com o direitista Partido Unionista Democrático da Irlanda (DUP) para garantir os 326 assentos necessários. O episódio seria apenas uma prévia das duras derrotas que May enfrentaria dentro da House of Commons.
Em julho, May perdeu um dos seus principais ministros quando o atual primeiro-ministro Boris Johnson renunciou ao cargo de chefe das Relações Exteriores. À época, o ex-prefeito de Londres afirmou que se o acordo de May fosse aprovado, o Reino Unido ganharia o “status de uma colônia”.
Segundo o professor Giorgio Romano, Johnson trabalhou pela queda de May “desde o início”. “O óbvio seria ele assumir. Ele quis deixar May se queimar para agora colher os frutos e apostar em uma relação especial com só EUA. Ele jogou muito contra o Brexit de May”, disse.
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O Brexit desgastou duramente o capital político com que May iniciou seu governo
Dançando em volta dos problemas
Mesmo após o fracasso nas eleições, a premiê conseguiu que a União Europeia aprovasse seu acordo de 585 páginas sobre a saída britânica do bloco, fato considerado uma vitória do governo. Porém, de volta a Londres, o documento ainda precisava passar pela aprovação do Parlamento, o que se mostraria um longo e tortuoso trajeto para May. No final do ano, em dezembro, a premiê ainda sobreviveu a uma moção de desconfiança dentro próprio partido, apresentada por 48 parlamentares que alegavam “atraso no Brexit” e medidas muito suaves presentes no acordo aprovado entre Londres e Bruxelas.
Em 15 de janeiro, o Legislativo rejeitou o acordo da conservadora por 432 votos contra 202, marcando a maior derrota de uma proposta apresentada por um governo na história do país. Além de recusar a proposta, o Parlamento aprovou duas emendas que modificariam o projeto original: uma, sobre a fronteira com a Irlanda do Norte, e outra, que proibia o Reino Unido de deixar o bloco sem um acordo. Após a primeira derrota no Parlamento, May enfrentou e sobreviveu a uma segunda moção de desconfiança, desta vez apresentada pelos trabalhistas.
A premiê assistiu à segunda rejeição de seu acordo em 15 de março, 14 dias antes do primeiro prazo para conclusão do processo, quando 391 parlamentares votaram contra sua proposta para o Brexit. A segunda derrota obrigou May a apelar à UE por um adiamento, que definiu o dia 22 de maio como data limite e, caso o acordo não fosse aprovado pelo Parlamento, o Brexit ocorreria em 12 de abril.
A terceira rejeição do acordo do governo não demorou a chegar e, no dia 29 de março, a House of Commons decidiu, por 344 votos a 286, que a proposta da primeira-ministra não era adequada para retirar o país da UE, colocando mais uma pedra na lápide política que ia se construindo para May.
“As implicações da decisão do Parlamento são graves. O marco legal é que o Reino Unido terá que deixar a União Europeia em 12 de abril, em apenas 14 dias a partir de hoje. Não é tempo suficiente para concordar, legislar e ratificar um acordo, e, mesmo assim, o Parlamento disse de maneira clara que não irá permitir a saída sem um acordo. Senhor presidente [da Câmara], temo que estejamos chegando aos limites deste processo aqui”, afirmou a premiê à época.
A oposição, que vinha sendo criticada por manter uma postura volátil, pediu eleições gerais. Corbyn, líder dos Trabalhistas, trabalhou na contramão dos pontos mais conservadores do acordo do governo e chegou a ironizar, ainda em 2018, a primeira-ministra, fazendo referência a um episódio em que May apareceu dançando durante uma visita à África do Sul. “Ela não pode continuar dançando em volta dos problemas”, afirmou o trabalhista durante um debate no Parlamento.
Por fim, em abril, a União Europeia concordou em conceder, pela segunda vez, uma prorrogação no prazo do Brexit e estendeu a data limite para o dia 31 de outubro. “Isso significa que o Reino Unido terá mais seis meses para encontrar a melhor solução possível. Por favor, não desperdicem esse tempo”, declarou, após a resolução o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. Com isso, o país foi obrigado a participar das eleições europeias que ocorreram em maio e marcaram mais um fracasso não só para May, mas para todo o Partido Conservador.
O Partido do Brexit, fundado pelo nacionalista Nigel Farage, angariou quase 32% dos votos e simbolizou a insatisfação popular com o governo dos tories, que receberam 8,6% dos votos, terminaram em quinto lugar e garantiram apenas quatro assentos no Parlamento Europeu – uma perda de 15 parlamentares.
Quase um mês após a terceira rejeição de seu acordo no Parlamento, no dia 24 de maio, Theresa May anunciou sua renúncia. “É e sempre será um motivo de profundo pesar para mim que eu não fui capaz de finalizar o Brexit.”
Segundo Romano, por mais que as derrotas políticas pareçam ter caído sobre May em uma velocidade e força impressionantes, “a Inglaterra não afundou, e o fracasso não foi da premiê, mas sim do próprio Brexit”.
“Tenho que dizer, independente de posições políticas, ela foi uma mulher determinada e persistente. Conseguiu se manter por mais tempo no poder do que se imaginava e manteve, de uma forma ou de outra, a unidade do partido enquanto buscava uma solução para negociar a saída [da UE]. Os jornais vão jogá-la no lixo da história, mas quem deve ser atirado na lixeira não é Theresa May, é o Brexit”.