A ex-presidente Dilma Rousseff concedeu no mês passado à Rádio La Patilla uma entrevista que tratou, dentre outros assuntos, sobre a atuação do Brasil na crise do coronavírus, o processo de impeachment que levou à sua destituição, o governo de Alberto Fernández na Argentina e a crise na União Europeia.
O texto com a conversa foi publicado no último dia 30 de maio. Abaixo, você algumas das principais respostas de Rousseff e, ao final do texto, a entrevista completa em vídeo (em espanhol):
Sobre seu ativismo político desde a época da clandestinidade e a tortura
“Cresci naquela época em que os governos progressistas que haviam construído os Estados nacionais, como Juan Domingo Perón, na Argentina, e Getúlio Vargas, no Brasil, e seus sucessores, foram impedidos de governar por golpes de Estado militares.”
“Minha juventude inicia com um golpe ditatorial, então decidi consagrar toda a minha vida a mudar a realidade e a construir a democracia no Brasil. Naquela época, meu povo estava despojado de direitos, tinha imensas dificuldades para sobreviver. Então, este processo me leva a tomar uma posição de enfrentamento à ditadura. “Nós militamos nestas circunstâncias, quando fomos presos encaramos a morte nos levaram ao limite. Compreendemos com absoluta claridade como é um governo que usa o terror, a tortura e as ameaças de morte para criar as condições que facilitem seu governo. Não que as pessoas mereçam passar por uma experiência como a minha para entender a importância da democracia.”
Sobre sua carreira política e a etapa como presidente
“Naquele momento [outubro de 2014], os meios davam a vitória a meu oponente. Meios como o Jornal Nacional diziam que as votações davam a meu opositor o triunfo eleitoral e informavam sobre a celebração ridícula de sua derrota.”
“Foram muito precipitados como sempre, e, ao mesmo tempo, no dia de minha eleição, poucos momentos antes da apresentação dos resultados oficiais, o ‘jornalismo’ da Rede Globo dizia ‘e agora começa o impeachment’. O resultado ainda não havia sido proclamado oficialmente pelo Tribunal Superior Eleitoral, mas a mídia falava de um impeachment contra mim. Segundo a lei brasileira, alguém só pode ser julgado e condenado em um impeachment no mandato que se está transcorrendo, então é incrível que a mídia tenha anunciado meu impeachment antes que o resultado de minha eleição tivesse sido comunicado. Em termos futebolísticos, diria que a Rede Globo fabricou um pênalti contra mim.”
Sobre o golpe de Estado e a perseguição política
“Todos os golpes são um processo e têm um ato inaugural. No golpe de 2016, o ato inaugural foi o impeachment, mas não terminou aí.”
“Nós fomos golpeados porque tínhamos uma agenda de fortalecimento das políticas sociais, industriais e, também, por nossa posição internacional, que defendeu o multilateralismo e não estava ancorada nos EUA. Eles deram o golpe para impor uma pauta neoliberal, porque o Brasil não tinha essa pauta. Nós tínhamos três bancos públicos, tínhamos Eletrobras, Petrobras, Banco do Brasil, uma sólida reserva econômica e US$ 370 bilhões de reservas, então não tínhamos nenhuma fragilidade estrutural maior.”
“Quando ganhei as eleições, eles viram que, por quatro vezes consecutivas, nós havíamos derrotado suas pautas. Sofri o impeachment no dia seguinte à minha eleição e eles aplicaram a pauta que perdeu a eleição. Também [logo após a eleição] começa a perseguição por meio da operação Lava Jato, o chamado lawfare, que tem como objetivo criminalizar a política.”
Sobre Jair Bolsonaro e Mauricio Macri
“Hoje, há vários pedidos de impeachment contra Bolsonaro. O que o sustenta é um pacto, porque ele é a saída neofascista que viabiliza uma agenda neoliberal. A direita neoliberal sempre viu Bolsonaro como um político que podia ser manipulado, tutelado, e sabiam que ele queria uma possibilidade de se acomodar na cadeira presidencial. Há partes da sustentação deste pacto que se romperam, mas, todavia, ele se mantém. Os mercados seguem aprovando Bolsonaro e, frente a este pacto, há que armar uma frente democrática.”
“Quando chega a eleição de 2018, os setores mais pobres da população já estavam em uma situação mais difícil porque haviam criado uma austeridade constitucional e acabaram com os gastos em educação, saúde, moradia etc. Então, quando chegam as eleições, [os golpistas] sabem que, se deixassem, Lula ganhava o pleito e impedem isso. Os candidatos de centro-direita e direita, que eram a maior força política depois de nós, tinham apenas 4% de aprovação. Destruíram a centro-direita e a direita e o que sobrou foi Bolsonaro. Disseram ‘nós o enquadraremos [Bolsonaro] quando ele for presidente’. O aspecto neofascista de Bolsonaro é extremamente desagradável para os integrantes das elites, mas não suficientemente desagradável para não apoiar suas reformas.”
Roberto Stuckert Filho/PR
‘Aqui, no Brasil, temos um presidente que não crê que exista uma pandemia’, diz Dilma
“Thomas Piketty diz que há uma característica da globalização e da financeirização que é a chamada curva do elefante. Como é a curva do elefante na América Latina? Os mais pobres, o 50% da população que integra esse segmento, ganharam; mas também ganharam, mais do que eles, os ricos que estão na tromba do elefante. Mas, no meio do elefante, onde estão as classes médias, não houve o mesmo ganho, ganharam muito menos que o resto e isso provoca ressentimento. Esta é uma das razões que influi também no impacto do surgimento de personagens como [Mauricio] Macri, que chega ao poder com votos e não com um golpe.”
“O que explica a vitória de Macri na Argentina? Pode ser a chamada curva do elefante (…). Não creio que as pessoas votem por modismo no ‘não’, não votam contra, as pessoas votam por aquilo que precisam. As pessoas votam pelas propostas. No Brasil, as pessoas votaram em Bolsonaro porque acreditaram que era um antissistema, confiaram nisso, mas não suspeitavam que Bolsonaro era a face mais negra do sistema.”
“Criminalizar a política e construir o relato do ‘não, não e não’ passa a ser algo que desrespeita a vida da pessoa e isso abre caminho para salvadores da pátria, aqueles que dão respostas incultas, como Trump, que diz que os problemas são os mexicanos, ou no Brasil, que diziam que o problema era o PT.”
Sobre a crise sanitária no Brasil
“Aqui, no Brasil, temos um presidente que não crê que exista uma pandemia e que pensa que tudo o que há são cérebros que se maquinam contra a população. É um absurdo vivo que considera que a covid-19 é uma ‘gripezinha’. O Brasil é hoje o principal lugar da pandemia. Vamos chegar ao primeiro lugar tanto em contágios, como em mortes, porque não se tomam as precauções necessárias.”
“Se poderia enfrentar perfeitamente esta pandemia [no Brasil] se tivéssemos um presidente como Alberto Fernández, da Argentina.”
Sobre Alberto Fernández
“Creio que, hoje, o papel de Alberto Fernández transcende a Argentina, porque é um presidente que tem a capacidade para guiar um caminho nesta crise nunca antes vista pelo povo argentino, que sabe conduzir para não só enfrentar a pandemia desde o ponto de vista sanitário, mas também desde o ponto de vista da defesa das condições de vida, para que as pessoas sobrevivam, e as empresas também.”
“Alberto dá, neste momento, uma força que é muito importante, é a segurança de uma liderança que tem rumo e claridade, que fala com as pessoas e que é democrático. Ele cumpre um papel que é de grande relevância para a América Latina. Todos nós o colocamos como uma referência.”
“Alberto Fernández nos dá esperança e pensamos, então [no Brasil], ‘ah, nós também podemos ter um Alberto Fernández!’”
Sobre a Espanha e a crise na União Europeia
“Estou muito preocupada com o que vejo na Espanha. O partido Vox, de extrema-direita, quer colocar a conta da epidemia no desgaste do governo de Pedro Sánchez.”
“Acredito que há outros problemas sérios na Europa. Por um lado, está a decisão da Corte Constitucional da Alemanha que questiona as relações de ajuda econômica dentro da União Europeia. Creio que há dois propósitos: o primeiro, é a posição de Merkel e Macron, que falam de uma ajuda [econômica] que não é um empréstimo, mas sim uma contribuição não reembolsável e a posição dos chamados “quatro frugais”, que são os austríacos, os dinamarqueses, Holanda e Suécia: eles minam a União Europeia porque não tem uma política de ajuda e solidariedade. Para que serve então a UE?”
“Acredito que se houvesse uma posição mais consistente da Europa, não haveria esse espaço para partidos como o Vox, que tentam penetrar e desestabilizar a relação política do governo de Pedro Sánchez”.
“Os dois grandes problemas globais são o confronto de Trump com a China e a crise dentro da União Europeia. Um novo mundo dentro das relações multilaterais pode surgir, mas não sei qual…”