A decisão da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, de criar um fundo especial de 6,5 bilhões de dólares com reservas do Banco Central para pagar a dívida externa – cerca de 13 bilhões de dólares em 2010 – provocou um enfrentamento com o então presidente da entidade, o economista Martín Redrado. A presidente decidiu demiti-lo, o que desencadeou uma crise institucional. Segundo o estatuto do BC argentino, a instituição é independente e seu presidente só pode ser retirado pelo congresso. Na teoria, o mandato de Redrado só terminaria em setembro.
Após uma batalha no congresso e na Justiça, a presidente conseguiu a saída de Redrado e nomeou a economista Mercedes Marcó del Pont, que presidia o Banco de la Nación Argentina, para substituí-lo. Ex-deputada de linha desenvolvimentista, Marcó del Pont não deve mostrar resistência à transferência de parte das reservas internacionais mantidas pelo BC para uma conta especial do Tesouro, como quer o governo.
Em 2007, então deputada, ela apresentou um projeto de lei que mudava o estatuto do BC, diminuído sua autonomia e ampliando a missão definida em lei para a instituição. Hoje, o banco tem como principal tarefa preservar o valor da moeda. Marcó del Pont sugeria que essa meta deveria ser buscada “de modo consistente com as políticas orientadas a sustentar um alto nível de atividade e assegurar o máximo emprego de recursos disponíveis”.
É um objetivo semelhante ao buscado atualmente pelo deputado argentino Carlos Heller. Eleito em junho 2009 para representar o PSOL argentino (Partido Solidário) na cidade de Buenos Aires, Heller é um dirigente do movimento cooperativo. Desde 2005, é presidente do Banco Credicoop, que depois da crise econômica de 2001 se tornou o segundo maior banco privado do país. É o maior banco cooperativo de América Latina, como foco no crédito solidário sem objetivo de lucro. Segundo ele, a crise do BC é o último exemplo da batalha entre o governo e a oposição. Nesta entrevista ao Opera Mundi, ele lamenta a “atitude irresponsável” da oposição, que tenta impedir o acesso do governo a mais recursos, de olho na eleição de outubro 2011. Mas reconhece que o estilo da presidente, que parece buscar enfrentamentos, não ajudou para normalizar o clima político.
A Argentina parece ter resistido à crise internacional mundial bastante bem. Como explicar a tensão política que ocupa o noticiário todos os dias?
A Argentina está vivendo hoje uma situação muito paradoxal. Economicamente, o país demonstrou uma ótima resistência frente à crise internacional. Este ano, o crescimento deveria atingir 5%, e o superávit comercial, mais de 15 bilhões de dólares. Quanto à situação fiscal, não é tão boa quanto durante os últimos anos, mas é sempre muito melhor que no resto do mundo, na Europa, por exemplo.
Apesar de tudo isso, a tensão política é altíssima. Isso vem do fato que temos um sistema presidencial onde o executivo perdeu a maioria. De um lado, temos uma presidente com um estilo de confrontação, e do outro, uma oposição constituída por um conglomerado de forças que vão da direita à esquerda, unidas somente pela vontade de derrotar Cristina Kirchner. Nesse contexto, a oposição tenta acabar com a capacidade de gestão do governo, com a ideia de limitar a possibilidade do campo Kirchner de ganhar a eleição em 2011. Frente a esta postura, a presidente multiplica os decretos. O congresso apela à Justiça para impedir a execução dos decretos… É uma enorme luta pelo poder.
O decreto presidencial que decidiu a criação do chamado “fundo do bicentenário” para fazer frente aos vencimentos da dívida externa provocou uma grave crise institucional em relação ao Banco Central. Como o senhor explica esta situação?
A crise do Banco Central é o último exemplo desta batalha pelo poder. Dessa vez, o debate é sobre a melhor maneira de pagar a dívida pública, cujo peso diminui muito graças ao crescimento, ao reembolso de uma parte e à renegociação – passou de 130% do PIB em 2003 a 49% do PIB hoje. No entanto, temos este ano vencimentos de muitos títulos, que nos obriga a pagar 4 bilhões de dólares já.
Em qualquer outra economia, não seria um problema: bastaria contrair novos empréstimos para pagar a dívida. A Argentina, porém, não tem acesso aos mercados financeiros internacionais, já que tem uma série de processos judiciários tentados pelos credores que não aceitaram a renegociação da dívida, em 2003. O debate entre o governo e a oposição é o seguinte: a presidente quer pagar com as reservas do Banco Central, enquanto a oposição prefere cortes nos gastos do governo. Conhecendo a estrutura fiscal do estado, isso significa automaticamente cortes nos gastos sociais, na educação, na saúde – o que é inaceitável para o governo.
O argumento da oposição é de que as reservas constituem uma garantia para o futuro. Conhecendo o passado de crises fiscais e monetárias na Argentina, o senhor não acha que é razoável?
Essa não é a minha posição. A Argentina nunca teve reservas tão altas – atingiram 45 bilhões de dólares no começo do ano – e acho que não precisa de uma rede de segurança tão importante. Além disso, no discurso da oposição, parece que as reservas constituem um produto miraculoso do Banco Central. Não é bem assim. É o resultado de uma política econômica: decisão de manter um câmbio baixo, uma política de diversificação das exportações e de produção local, e, claro, da boa conjuntura internacional. Também é importante lembrar que com o superávit comercial que será registrado este ano, as reservas vão recuperar seu nível muito rapidamente.
A oposição também argumenta que o orçamento para 2010 já tinha previsto o pagamento desses títulos de divida, o que torna inválida a proposta da presidente. O senhor confirma?
Era previsto. Só que surgiram novas medidas, como a gratificação universal (uma bolsa para cada criança de família pobre), que custará mais de 10 bilhões de pesos. Além disso, os aumentos de salários na função pública serão mais significativos, como causa da inflação. É preciso lembrar que esse governo fez do investimento público uma prioridade. Somente na educação, ele gasta 6% do PIB a cada ano desde 2002. É enorme. Mais de 700 escolas foram construídas. O temor da oposição é que estes gastos ajudem a base aliada a ganhar a eleição em 2011, mas é uma atitude irresponsável.
A oposição também denuncia o estilo do executivo: a presidente baixou um decreto, em vez de propor uma lei para o congresso. O senhor acha esta crítica mais legitima?
Eu acho que teria sido melhor apresentar uma lei, em vez de um decreto. Mas é preciso lembrar que o governo não tem mais maioria nem no senado, nem no parlamento. Uma lei ia enfrentar uma grande resistência. Agora, estamos numa situação intermediária. O governo manteve seu decreto criando um fundo com as reservas do Banco central, apenas trocou o nome – passou de Fundo Bicentenário ao fundo do “desendividamento”. No entanto, este decreto deve ter o apoio de pelo menos uma das duas câmaras, senão, será derrubado. Paralelamente, um senador anunciou que ia apresentar um projeto de lei nas próximas semanas. A tensão política é muito grande, já que a presidente anunciou que não vai retroceder. Inclusive, ela já disse que podia não acatar a ordem judicial, o que seria muito ruim para as instituições.
A nova presidente do Banco Central escolhida pelo governo, Marcó de Pont quase foi rejeitada pelo Senado. Ela terá a possibilidade de trabalhar nesse contexto?
O que aconteceu no senado é simplesmente inacreditável. Nunca nenhuma nomeação de presidente do Banco Central foi rejeitada no passado. Além disso, a oposição foi lamentável. Anunciaram que iam vetar Mercedes Marcó del Pont sem mesmo ouvir que ela tinha para dizer. Quando perceberam que isso era um erro, eles a convidaram no Senado, mas não fizeram nenhuma pergunta, mostrando que era uma formalidade, e que já tinham decidido de rejeitá-la. É um espírito de vingança e de obstrução muito grave. É claro que o establishment não gosta dela, já que ela representa como economista e como ex-deputada um modelo de intervenção maior do estado.
Se o governo conseguir criar este fundo para pagar a dívida, qual será o próximo passo?
Acho que a estratégia do governo é a seguinte: pagar com o fundo os títulos da divida que vencem em 2010, o que permite de encarar o ano com tranquilidade, sem acabar com os gastos sociais. Depois, a ideia é fazer um acordo com os credores que ficaram fora da renegociação da divida em 2003, para voltar logo ao mercado financeiro como qualquer país.
Com o risco de voltar a ter uma dívida muito elevada?
Contrair uma dívida não é ruim em si. O problema no passado eram as condições nas quais a gente fazia estes empréstimos, impostas pelos organismos internacionais. O Fundo Monetário Internacional decretava que podíamos aumentar a dívida somente se cortássemos os gastos para educação pública, a previdência para os aposentados, o orçamento do programa nuclear… Esta imposição desapareceu desde que a gente cancelou o acordo com o FMI. Hoje, tomar uma nova divida é somente uma questão de custo e de oportunidade. Além disso, é fundamental voltar aos mercados financeiros não somente para o Estado, também para abaixar o custo do crédito privado. Os bancos repercutem o risco país alto sobre as pequenas empresas, o que limita o crescimento.
A outra razão de um risco-país muito alto é a falta de confiança dos mercados financeiros nas estatísticas argentinas, especialmente a inflação. O senhor não acha que seria urgente enfrentar este problema?
Nenhum país pode viver sem um sistema estatístico confiável. É verdade que o aumento de preços não foi reconhecido de maneira fiel pelo Indec (Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, órgão oficial responsável pela pesquisa de preços). O governo começou a corrigir o problema, chamando universidades para estudar a melhor maneira de calcular a inflação. No entanto, acho que o governo foi muito lento, não demonstrou a vontade política suficiente de lidar com o problema. É muito fácil destruir a confiança, basta um erro. Mas precisa-se de muito tempo para voltar a construí-la.
Não acredito, porém, que o Indec seja o responsável por todos os problemas do país. Existe uma instalação midiática que desqualifica os números do Indec antes mesmo que sejam publicados, dando sempre mais crédito aos institutos privados. Eu acho que a principal razão da inflação não é a política monetária nem a importância do gasto público, e sim exagero do setor distributivo que aproveita uma situação de monopólio para aumentar as margens de lucro.
O senhor não teme o risco de erosão do poder aquisitivo das classes populares com a inflação, especialmente para as pessoas do mercado informal, que não têm grande capacidade de negociação salarial?
Não acho que seja ainda um verdadeiro problema. O ajuste dos salários será significativo este ano. Graças à força dos sindicatos, eles deveriam conseguir mais de 25% de aumento no setor privado, e também no setor público, o que garante o poder aquisitivo. É verdade que as pessoas que trabalham no setor informal não têm sindicatos, mas nesses últimos anos, eles também conseguiram obter bons aumentos. Além disso, a informalidade diminui muito: passou de 49% da população ativa para 36% hoje. É ainda muito alto, mas a evolução é muito positiva.
Como o governo pode tentar limitar os aumentos de preços na distribuição?
Eu acho que o governo deve definir claramente um teto para a rentabilidade dos negócios. Ou seja, fazer acordos com as empresas, explicando que em caso de desrespeito, pode intervir com medidas concretas, como a introdução de taxas. As empresas gozam de uma situação de quase monopólio em todos os setores. Qualquer seja o produto vendido, 70% da cadeia produtiva dependem de três ou quatro empresas. Isso tem que ser seriamente atacado. A rentabilidade das empresas, especialmente das multinacionais, é enorme na Argentina. Somente nos últimos anos, eles fizeram sair do país 38 bilhões de dólares de lucro. Não existe nenhuma obrigação para investir uma parte do lucro na Argentina, isso também deveria mudar.
O senhor decidiu apresentar um novo projeto de lei para mudar o estatuto do Banco Central. Foi inspirado pela última crise?
Na verdade, não. Há muito tempo estamos trabalhando nesse projeto. O estatuto do Banco central precisa ser reformado urgentemente. Ele foi elaborado em 1992 por Domingo Cavallo, então ministro da economia de Carlos Menem, quando a ideia era acabar com todos os vínculos entre o Banco central e as políticas econômicas em favor da geração de emprego e o aumento da renda da população.
A única missão do Banco Central era defender a moeda, no puro estilo das recomendações do Consenso de Washington. O resultado é que o BC se considera um Estado dentro do Estado. A mídia o apresenta como o quarto poder: o executivo, o legislativo, o judiciário e o financeiro. Dizem: “as reservas são do Banco Central”, dando a impressão ao público de que o governo quer roubar este dinheiro, como se as reservas não fossem o resultado de uma política econômica.
Quais são os principais eixos de sua proposta?
Uma das ideias é inspirada do modelo brasileiro. Queremos criar um comitê monetário cujo presidente seja o ministro da fazenda, como no Brasil, e que tenha como missão coordenar as políticas econômicas, incluindo a política monetária e o uso das reservas. O Banco Central terá autonomia na aplicação dessas diretrizes, mas a última palavra dependerá do governo, e mais precisamente do presidente.
O senhor acha que, apesar da falta de maioria no Congresso, essa mudança do estatuto tem chance de ser aprovada?
Vale a pena tentar. É verdade que o governo não tem maioria, mas como já disse, a oposição é um conglomerado de forças muito heterogêneas, que incluem socialistas, pessoas comprometidas com uma agenda mais progressista. Eles já se expressaram no passado a favor do fim da autonomia do Banco Central, então acho que será muito difícil agora para eles explicar para seus eleitores por que votam contra.
Quais foram as mudanças introduzidas por este governo no sistema financeiro?
São marginais. Por exemplo, o governo levantou algumas limitações para facilitar o crédito às pequenas empresas, mas é ainda muito pouco. Somos o país com a taxa de crédito para o setor privado mais baixa da região: apenas 12%. É necessária uma nova lei das entidades financeiras. A última foi elaborada durante a ditadura, por José Alfredo Martínez de Hoz. O eixo principal dessa lei é que os bancos podem fazer todo que quiserem menos o que é expressamente proibido. O espírito deveria exatamente o contrário: os bancos podem fazer somente o que é previsto pela lei.
O senhor está também preparando um projeto de lei, que será apresentado nas próximas semanas. Que tipo de modificações pensa propor ao Congresso?
A atividade financeira deve ser regulada como um serviço público. É importante demais para deixar o mercado decidir sozinho. Precisamos democratizar o sistema financeiro. Por exemplo, devemos impor uma distribuição geográfica mais justa: se um banco quiser ser muito importante na capital, ele também devera abrir uma agência no interior. Hoje, todo o crédito é concentrado em Buenos Aires e em poucas cidades de sua periferia. O Estado também deve obrigar os bancos a emprestar mais às pequenas empresas, não somente às grandes: hoje, 30% do crédito dependem somente de 100 empresas! O crédito deve ser mais produtivo: hoje os bancos preferem emprestar para que as pessoas comprem uma geladeira, e não para que uma pequena empresa compre uma máquina, porque a primeira opção é muito mais rentável.
Esta lei prejudicaria muitos interesses. O senhor acha que pode ser aprovada no Congresso?
Tenho o mesmo diagnóstico para a lei de entidades financeiras do que para a do Banco Central. Espero que, quando estes temas, que são muitos concretos, forem discutidos, os deputados e senadores abandonem a obstrução básica para se concentrar em suas propostas de campanha e no que seus eleitores querem. Quando Martínez de Hoz fez esta lei, ele declarou que era tão fundamental que ia dirigir a vida dos argentinos para todo o século. Mudar esta lei significa acabar com o projeto social e político da ditadura.
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