O arquipélago francês da Nova Caledônia enfrenta o terceiro dia de distúrbios violentos e se encontra à beira de uma guerra civil. Os nativos independentistas, conhecidos como canaques, são contra uma reforma constitucional que visa aumentar o número de eleitores aptos a votar nas eleições locais.
O texto do projeto recebeu sinal verde da Assembleia Nacional em Paris. Os canaques consideram que esta reforma irá diminuir a autonomia conquistada no passado nas decisões políticas locais.
O presidente francês Emmanuel Macron convocou uma reunião de crise com o Conselho de Defesa e Segurança Nacional na manhã desta quarta-feira, após outra noite de revolta que deixou três mortos e centenas de feridos na Nova Caledônia. Macron decidiu declarar estado de emergência nesse território francês no sul do Pacífico, medida que será aprovada ainda hoje em uma reunião ministerial.
“Qualquer ato de violência é intolerável e será objeto de uma resposta implacável para garantir o restabelecimento da ordem”, afirma um comunicado da Presidência.
Os tumultos começaram na segunda-feira (13/05), com depredações e incêndios em delegacias, lojas, fábricas, casas, veículos e bens públicos, além de agressões a residentes não nativos. Em Numea, a capital do arquipélago, os presos de uma penitenciária da cidade iniciaram uma rebelião, segundo a polícia. Vários supermercados foram saqueados na capital e nas cidades vizinhas de Dumbea e Mont-Dore.
Apesar do toque de recolher e da proibição de reuniões públicas impostas pelas autoridades na terça-feira, os distúrbios continuaram, em uma atmosfera de insurreição popular que um magistrado local descreveu como “próxima de uma guerra civil”. Nesta quarta-feira, tropas do Exército assumiram a segurança pública em Numea.
Macron condenou os atos de violência, qualificados por ele como “indignos e inaceitáveis”, e convidou representantes de todas as forças políticas do arquipélago, incluindo os pró-independência, a participar das discussões na reunião de emergência do Conselho de Defesa. Partidos de oposição de direita e extrema direita pediam ao governo que declarasse o estado de emergência.
O representante local do Estado, Louis Le Franc, explicou que durante os distúrbios noturnos, os insurgentes dispararam “tiros com armas de grande calibre” contra os policiais e “casas foram queimadas”, nos incidentes mais graves registrados na Nova Caledônia desde 1980. Além dos dois mortos, um deles baleado, cem policiais e uma centena de moradores ficaram feridos, de acordo com balanço do ministro do Interior, Gérald Darmanin.
Observadores atribuem a violência a grupos de jovens que teriam sido instrumentalizados pelos independentistas para combater o projeto. No entanto, para se proteger, comerciantes e moradores também decidiram se armar. Dezenas de pessoas foram detidas.
Razões da reforma
O censo eleitoral da Nova Caledônia está congelado desde 1998, o que impede quase um a cada cinco eleitores desse território de 270.000 habitantes de votar.
Na noite de terça-feira, a Assembleia Nacional adotou em Paris por 351 votos contra 153 o projeto de reforma que dá direito a voto para os residentes que moram no arquipélago há mais de dez anos, na origem da revolta dos nacionalistas. A reforma ainda precisa ser validada pelo Congresso que reúne deputados e senadores em sessão extraordinária no Palácio de Versalhes. Diante das tensões, o governo já sinalizou que esta votação será convocada apenas em junho.
As eleições provinciais são cruciais nas três regiões desse arquipélago, que dispõem de importantes competências, graças ao acordo de Numea assinado em 1998 com o Estado francês. Este acordo deu maior autonomia às ilhas e estipulou a realização de um referendo sobre a independência. Nos últimos anos foram realizados três plebiscitos sobre a questão e o “não” à independência venceu nas três ocasiões.
Opositores falam em ‘recolonização’
Os opositores à atual reforma manifestam um sentimento de retrocesso. “Se o descongelamento do número de eleitores passar, é uma forma de recolonização”, disse Malo à reportagem da RFI. Atualmente, os canaques representam cerca de 45% do eleitorado.
Malo cresceu na Nova Caledônia e valoriza sua identidade. “A Caledônia é um povo rico em cultura e costumes. Vivemos da nossa cultura e dos nossos costumes todos os dias. Então, não entendo por que seriam pessoas que estão completamente de fora e que não têm nada a ver com a Nova Caledônia que poderiam decidir por nós”, insiste ela, em referência à reforma que dá direito de voto aos residentes com mais de dez anos de moradia no arquipélago.
Para Yolande, originária de Noumea, onde vive toda a sua família, é preciso recordar as lutas anteriores. “Somos filhos dos acordos (de Noumea). Tivemos 40 anos de paz graças aos nossos pais. Eles lutaram para que ficássemos em paz, morreram pela libertação de Kanaky. Hoje, dizemos não à ampliação do eleitorado. Queremos a nossa independência, queremos a nossa soberania”, afirma.
O presidente independentista do governo do território, Louis Mapou, disse à imprensa ter tomado conhecimento da reforma votada em Paris, mas criticou uma “abordagem que impacta fortemente a nossa capacidade de conduzir os assuntos da Nova Caledônia”. “Apelamos à calma”, continuou Louis Mapou. “Há dois dias (…) o território está em chamas”, acrescentou Victor Gogny, presidente do Senado que reúne os nativos canaques.
A principal líder política anti-independência, a ex-secretária de Estado Sonia Backès, havia pedido a Macron que declarasse o estado de emergência. “Estamos em estado de guerra civil”, lamentou ela.
Na manhã de quarta-feira, por falta de abastecimento nas lojas, a escassez de alimentos provocou longas filas diante dos supermercados. O aeroporto de Noumea está fechado desde segunda-feira. O representante local do Estado solicitou reforços do Exército para proteger o terminal.