São raras as ocasiões em que as instituições locais de pequenas cidades podem ter algum papel no cenário internacional. Na manhã deste sábado (28/01), a prefeitura de Anguillara Veneta poderia ter entrado para a história como a junta que dá prioridade à vontade dos próprios cidadãos e se redime de seus erros políticos. Mas não foi o que aconteceu.
Em sessão extraordinária, aberta ao público, a junta de Anguillara, cuja prefeita Alessandra Buoso é do partido de extrema direita Liga Norte, votou, em maioria esmagadora, contra o pedido de cancelamento da cidadania honorária concedida ao ex-presidente Jair Bolsonaro em outubro de 2021. Foram 12 votos a favor e um contra.
A moção havia sido apresentada há uma semana pelos vereadores de oposição, que foram surpreendidos com o agendamento da sessão para esta manhã, o que impossibilitou a presença da maioria deles, pois estavam em seus trabalhos. O único voto da oposição foi do vereador Antonio Spada, líder da Lista cívica “Vivere Anguillara Insieme”.
“Foi uma jogada política marcar a sessão sem nos consultar antes, assim puderam obter o que desejavam”, disse Spada.
Irmandade com São Paulo
A prefeitura dessa pacata cidade de cerca de 4 mil habitantes, que se localiza entre Pádua e Rovigo, no Norte da Itália, acordou blindada por cerca de 20 policiais chamados, inclusive, de cidades vizinhas. O intuito era manter a ordem e afastar moradores, partidos de oposição e sindicatos que haviam se reunido para protestar contra a concessão da cidadania e a favor do cancelamento da honraria.
Na fachada e na porta principal ainda se vê o rastro do protesto de dois anos atrás, quando um grupo de manifestantes jogou tinta e esterco no prédio.
Reunidos na sala principal da prefeitura, a junta começou a votar as moções da oposição e votou contra praticamente todas elas, inclusive o pedido de declarar Anguillara Veneta como cidade-irmã de São Paulo, já que muitos anguilarese [oriundos da cidade] foram morar na capital paulista.
O voto contrário foi uma retaliação da junta, que se viu constrangida pela ação popular apresentada no ano passado por uma dezena de moradores de Anguillara contra a concessão da cidadania honorária a Bolsonaro. Tanto que, durante a justificativa do voto, a prefeita Alessandra Buoso declarou que “enquanto a justiça não decidir sobre o caso, o pedido [de irmandade com São Paulo] ficará suspenso”.
Janaina Cesar
Prefeita Alessandra Buoso [de blusa azul celeste] comanda Junta de Anguillara Veneta, deixando isolado o vereador opositor Antonio Spada
“Trapaça política”
Spada interviu chamando a decisão de “trapaça política”. Enquanto na sala os ânimos se exaltavam durante a discussão, era possível ouvir também os gritos de protesto que vinham de fora: “vergonha, vergonha”.
Com o encerramento do voto, os vereadores e a prefeita deixaram a sala sem dar declarações e se barricaram dentro do prédio para evitar a imprensa.
Os jornalistas foram para frente do edifício da Prefeitura aguardar a saída dos políticos. Visivelmente irritado com a presença da imprensa, um funcionário da instituição empurrou o jornalista Ivan Compasso, do jornal Padova Oggi, que estava na porta do prédio tentando falar com a prefeita. “Essa história é maior do que ela, se viu dentro e não sabe como sair”, declarou Compasso. Depois de cerca de uma hora, os vereadores, como um gesto de prudência, saíram de cabeça baixa e mantiveram o silêncio. Já a prefeita, saiu pela porta de trás do prédio.
Publicamente, Buoso sempre declarou que a honraria foi concedida pela raíz anguillarese da família de Bolsonaro. Mas no recurso apresentado à Corte de Cassação, a prefeitura admitiu que foi dada por motivos políticos. O processo tramita na Cassação [terceira instância da justiça italiana] por uma questão de definição da jurisprudência.