Traduzir a urbanidade em palavras assume sua intensidade máxima na obra do jornalista e professor Suketu Mehta. Não porque esse indiano apaixonado pelo frenesi de metrópoles seja arquiteto de profusões descritivas, mas sim porque em sua estética jornalística aprendeu a costurar os paradoxos e desigualdades comuns a toda grande cidade.
Em sua obra mais célebre, Bombaim: Cidade Máxima, lançada no Brasil pela Companhia das Letras, Mehta faz um relato sobre o seu retorno à cidade onde cresceu após vinte anos morando em Nova York. Longe de criar uma acinzentada e concreta narrativa das ruas caóticas de Mumbai, ele mergulha fundo no conhecimento da vida de personagens múltiplas e peculiares. De pistoleiros a políticos, passando por religiosos a prostitutas, o leitor descobre um universo de contradições e paradoxos: luxo e miséria, violência e tradições.
Fillipe Mauro/Opera Mundi
O escritor indiano radicado nos Estados Unidos durante sua passagem pela Flip.
Mehta vem à décima edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) para debater o componente “espaço” dentro de uma lógica de convivência democrática. Tendo em vista as recentes mobilizações que percorreram principalmente o mundo árabe, o autor se lançou ao desafio de compreender até que ponto as ruas de grandes metrópoles são um signo de desigualdade ou de integração.
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Nesse breve encontro com o Opera Mundi, ele fez justiça à diversidade de processos sociais da qual trata em sua literatura e discorreu sobre temas que vão do emprego das redes sociais em levantes populares às implicações da ascensão econômica e diplomática de países como Índia e Brasil.
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Opera Mundi – A Primavera Árabe foi considerada por muitos um levante popular no qual as massas se reuniram por meio de redes sociais. Contudo, sabemos que o número de pessoas que possuem acesso à internet em países como Egito e Líbia é reduzido. O Ocidente superestimou o papel da internet em meio aos fenômenos políticos mais recentes?
Suketu Mehta – Há um grande debate em torno disso. Muitos se questionam se o Twitter ou o Facebook devem receber o crédito por tudo o que aconteceu em revoluções como a da Praça Tahrir [localizada no Cairo, capital do Egito]. Eu venho de um país onde Gandhi mobilizou dezenas de milhares de pessoas sem possuir sequer eletricidade.
O que ocorreu [com as redes sociais], antes de mais nada, foi o surgimento de uma forma de fazer com que parte da sociedade passasse uma mensagem. Só que algumas pessoas viriam protestar de qualquer forma, com ou sem o Twitter ou o Facebook.
O grau de urbanização desses países também tornou-se um dos fatores dessa superestimação. Os grandes acontecimentos acontecem apenas nas grandes cidades e não nos vilarejos. Isso porque é lá que estão pessoas jovens descontentes com as instituições e com o cumprimento de ordens de dinastias como a de Mubarak. A internet foi um facilitador, mas não foi tão substantiva o quanto imaginávamos que era.
OM – Brasil e Índia possuem um parentesco forte entre si. São nações com poderio diplomático crescente e com altos índices de desigualdade social. Até que ponto a literatura é uma ferramenta eficiente para o combate desse tipo de paradoxo?
SM – Os mais velhos acreditam no cumprimento de um destino histórico. Acreditam que nossos países emergirão no século XXI para assumir o lugar a que têm direito. Mas o perigo, tanto para Índia quanto para o Brasil, é excesso de confiança. Temos a ideia de que os Estados Unidos estão em decadência enquanto nosso PIB sofre um primeiro desaquecimento. Os principais desafios em ambos os governos, como a corrupção e os escândalos políticos, permanecem.
Na Índia enfrentamos um sistema de saúde abismal e altas taxas de analfabetismo. Temos a maior classe média do mundo, mas, ao mesmo tempo, uma das maiores estatísticas de pobreza. Temos sérios problemas com a desnutrição infantil enquanto nos orgulhamos da mais volumosa mão de obra técnica e especializada do mundo.
Eu tenho vindo muito ao Brasil recentemente e, em dezembro, passei uma semana visitando favelas do Rio de Janeiro, como a da Rocinha, para avaliar o impacto das UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro]. Encontrei desigualdades terríveis: violência, bordéis, crianças destruindo sua juventude no sexo precoce.
Como lidar com isso na literatura? O desafio do escritor de hoje é competir com filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite, no caso do Brasil, e com as produções de Bollywood, no caso da Índia. Esses trabalhos retratam muito bem a realidade dessas favelas e tenho dificuldades para me lembrar de um livro sequer que reproduza tão bem esse cenário.
OM – Você é autor de dois roteiros – The Goddess e Mission Kashmir. Como é sua relação com o cinema, particularmente com os filmes indianos?
SM – Mission Kashmir é um filme de ação produzido em Bollywood, a indústria do cinema em hindu. Esses filmes possuem o mesmo alcance internacional que as novelas brasileiras. São igualmente o reflexo de nossas relações familiares. É impossível entender a Índia sem entender Bollywood.
Eu sempre acompanhei as produções de Bollywood e sempre tive vontade de ver como funcionavam por dentro. Acabei me oferecendo para entrar em uma equipe e consegui a oportunidade. Ainda que fosse o menos importante dela, o trabalho era compartilhado. Ao escrever um livro somos os mais solitários do mundo. Ficamos dias em nossos pijamas, cheirando mal, tomando café, isolados de nossos amigos para chegar ao final e odiarmos o que escrevemos. Com roteiros isso não ocorre.
OM – Você odeia o que escreve?
SM – Na maioria das vezes, sim. Depois que termino de escrever qualquer coisa me pergunto: como pude escrever essa merda? Demorei sete anos para escrever meu livro e tenho sérias dificuldades de concentração. Não fui feito para escrever.
OM – Para Salman Rushdie, autor indiano radicado no Reino Unido, Mumbai é uma cidade “arruinada”. Ela já era arruinada quando você a deixou, aos 14 anos, ou tornou-se arruinada conforme a Índia se transformou em uma nova referência de poder?
SM – Mumbai é uma cidade em transformação. Se ela é uma cidade arruinada, então é uma cidade arruinada em crescimento. Sua população aumenta em um milhão a cada ano. A maioria desses migrantes vem do norte do país e não possui qualquer sensibilidade metropolitana.
Esses migrantes não sabem como se integrar ao processo democrático, o que faz com que 30% da Índia não seja Índia. Não são urbanizados. Quando vêm para a cidade, trazem seus vilarejos consigo. Se você analisar as favelas da Índia, perceberá que são réplicas dos vilarejos de onde vêm seus habitantes.
Eles chegam a trazer as árvores originárias de suas cidades natais para plantar nas novas vizinhanças. Se encontrarem um rio pelo caminho, darão um novo nome a ele, o nome de outro rio qualquer que passa por seu vilarejo de origem. Eles vão reconstruir os mesmos tipos de templos de suas cidades natais e darão novos nomes às ruas. É uma aproximação psíquica de um pensamento geográfico.
Quando se mudam para uma cidade grande, buscam uma familiaridade que não possuem. Eles renomeiam as coisas buscando acolhimento nessa paisagem altamente hostil. Isso me faz pensar que favelas são grandes vilarejos dentro de grandes cidades.
OM – Você acredita que Mumbai e Nova York são irmãs. Por quê?
SM – Nova York e Mumbai têm em comum sua intensa energia. Ambas são capitais globais. Assim como Nova York despreza Washington, Mumbai despreza Nova Deli. Nova York é e não é parte dos EUA ao mesmo tempo. O mesmo ocorre com Mumbai.
OM – Membros de um projeto canadense chamado Cidades de Migração certa vez o perguntaram como “transformar imigrantes em nova iorquinos”. Eu gostaria de repetir a pergunta com algumas alterações. Transformar imigrantes em nova iorquinos é a melhor maneira de integrá-los a Nova York ou a qualquer outra grande metrópole?
SM – Você precisa necessariamente de uma identidade. Mas isso não impede que você tenha identidades que se sobreponham. Uma identidade não cancela a outra. As pessoas que estão vindo para Nova York agora não precisam ser necessariamente norte-americanas.
O Brasil é um dos países mais multiculturais que conheço, especialmente a cidade de São Paulo. O único grande caso de segregação que ainda vejo por aqui é com os negros, principalmente no que diz respeito ao acesso ao sistema de educação do país. De resto, todos são bem recebidos no Brasil, de japoneses a libaneses.
Acho isso muito interessante, algo que não existe em Nova York. Lá, as pessoas ainda são muito mais apegadas a questões étnicas do que em São Paulo.