O governo do presidente Sebastían Piñera,que há três meses enfrenta uma série de mobilizações estudantis de grande porte que, não raro, terminam em confronto, começa a enfrentar a partir desta quarta-feira (24/08) mais um duro desafio contra sua administração. Desta vez, além de estudantes, mineiros, professores, funcionários do setor do comércio e de outras diversas categorias para exigir o fim da pulverização sindical no país, além de uma série de profundas reformas estruturais.
Temendo fugir do controle, o governo já proibiu as marchas, programadas nas principais cidades do país e pretende utilizar leis de exceção da era Pinochet para reprimir os manifestantes. Os primeiros distúrbios já foram registrados na noite de terça-feira em Santiago.
Efe
Pichação em Santiago chamando a população para a greve
A explicação para a insurreição geral contra o atual governo é que a organização e as leis trabalhistas no Chile são as mais antiquadas em toda a América do Sul, e datam do período ditatorial (1973-1990). É um código que completa 32 anos sem acompanhar as mudanças democráticas. Opera Mundi ouviu algumas histórias desses profissionais e pais de família que, nesta quarta-feira, em nome uma mudança que já se mostrou ser urgente, correrão o risco de serem classificados como criminosos pelo seu próprio governo.
Mineiros: entre o milagre e a realidade
Há mais de cinco anos, Jorge Villela e Roberto Belmar trabalham em grandes mineradoras privadas estabelecidas no Chile. Passaram por diferentes empresas até se conhecerem em uma mina no setor norte da região metropolitana de Santiago, a poucos metros da Divisional Andina, um dos mais importantes complexos mineiros da Codelco, única estatal que explora os minerais no país, sobretudo o cobre.
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A proximidade geográfica entre as duas minas não se reflete no âmbito das condições de trabalho. Enquanto os vizinhos estatais observam os benefícios dos altos requisitos em segurança em mineração cumpridos por sua empresa, Jorge e Roberto enfrentam dificuldades quase diariamente. “Trabalhamos a céu aberto num setor próximo da cordilheira (dos Andes) onde, no inverno, o frio chega a a -25ºC. A neve acumulada pode superar os dez centímetros. No verão, o calor seco também é insuportável”, relata Villela. Isso acontece porque Codelco costuma suspender os trabalhos em dias de mau tempo, o que não acontece no caso das empresas privadas.
Victor Farinelli/Opera Mundi
Os mineiros Roberto Belmar e Jorge Villelalutam por melhores condições nas mineradoras privadas
Apesar de a economia chilena ser fortemente influenciada pela mineração, sobretudo cuprífera, as condições de trabalho para os mineiros chilenos não é das melhores. Basta dizer que o Chile é um dos poucos países mineiros que não ratificou em sua lei trabalhista o convênio 176 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que estabelece as normas mínimas de segurança para este setor.
A empresa que emprega Jorge e Roberto pertence ao chamado grupo das Grandes Mineradoras privadas, que costumam cumprir as regras mais importantes (mais de uma via de evacuação, mais de uma via de ventilação, monitoramento da localização dos trabalhardores, entre outras). Mas também há outro problema: eles são trabalhadores terceirizados, e esse detalhe também traz inconvenientes.
Segundo Roberto Belmar “o equipamento dos que são empregados diretos da planta não é o mesmo que o nosso, e também o tratamento a um empregado terceirizado que sofre um acidente costuma ser muito mais lento e precário. Isso porque a empresa dona da mina não é responsável pela nossa segurança”. Roberto também trabalhou em minas subterrâneas, “onde a temperatura chega a superar os 45 graus, e a ventilação nem sempre é a mais adequada”.
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Na terça-feira, população participou de panelaço em Santiago como aquecimento para a marcha pró-greve. Repressão deve ser dura.
Porém, as Grandes Mineradoras, que juntas possuem pouco mais de 50 mil trabalhadores, e Codelco, que supera os 60 mil, não constituem reunidas nem metade do contingente de trabalhadores mineiros existente no país. Segundo dados da CTC (Confederação de Trabalhadores do Cobre), a grande maioria dos trabalhadores de minas do Chile está empregada na média e pequena mineração onde, segundo o vice-presidente da entidade, Manuel Ahumada, o trabalho é quase artesanal e extremamente arriscado.
Um caso exemplar é o da mina San José, onde aconteceu o acidente no ano passado com os 33mineiros que emocionaram o mundo. “A falta de uma norma mínima de segurança ratificada pelo Ministério do Trabalho permite às empresas mineiras operarem sob as condições mais precárias. Claro que existem multas em casos de acidentes, mas os fatais terminam resultando em multas tão irrisórias que, para o empresário, sai mais barato pagar eventualmente uma multa do que criar e manter condições decentes de trabalho”, explica Ahumada.
O código do irmão
A preferência pelas multas, em detrimento de melhores condições de trabalho por parte do empresariado chileno, é ratificada pela antropóloga da Universidade do Chile Claudia Pascual, quem também enumera outros problemas comuns no país por conta do código trabalhista vigente desde 1979 (de autoria de José Piñera, irmão do atual presidente Sebastián Piñera, naquele ano o então ministro do Trabalho e Previdência).
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“O mais importante do atual código é que ele não permite a livre constituição sindical, os sindicatos são ligados à empresa e não se permite, por exemplo, que existam grandes sindicatos de trabalhadores da mesma área, e isso enfraquece qualquer tentativa de negociação coletiva legal”.
No Chile, só podem se reunir sindicalmente os trabalhadores ligados a uma mesma empresa, não ao mesmo setor de trabalho ou área profissional. Além disso, a manobra chamada “multiregistro” realizada por muitas empresas, pulveriza ainda mais as organizações sindicais. Por exemplo, uma grande rede de lojas de departamentos, que emprega milhares de trabalhadores poderia ter sindicatos fortes caso todos os seus empregados pudessem se reunir em torno do mesmo sindicato. Mas isso não acontece, porque a empresa cria uma pessoa jurídica diferente para cada filial da rede.
Portanto, pode haver um sindicato específico para aquela filial, mas não um sindicato amplo para todos os empregados da rede. Muitos setores também possuem confederações sindicais, que reúnem diversos sindicatos ligados à mesma empresa, ou grêmios profissionais, como o dos professores, para tentar fortalecer as negociações coletivas de suas categorias. Porém, a empresa não está obrigada a aceitar uma reivindicação desses organismos, e segundo Manuel Ahumada, é geralmente o que acontece.
Victor Farinelli/Opera Mundi
Manuel Ahumada luta para fortalecer os sindicatos chilenos
Nesta quarta-feira o Chile se prepara para sua primeira greve nacional, organizada pela Central Unitária dos Trabalhadores, que já conta com a adesão de mais de cem confederações trabalhistas e centenas de sindicatos menores. Ela também chama a atenção por acontecer dez meses depois do maior êxito do governo de Piñera, o resgate dos 33 mineiros da mina San José.
Na ocasião, o presidente chileno anunciou que impulsionaria uma grande reforma em termos de segurança do trabalho e respeitos a condições mínimas, principalmente no setor mineiro, mas também em todas as atividades econômicas do país. Para Claudia Pascual, “Piñera não cumpriu sua promessa, mas a Concertação, aliança política que hoje é oposição, passou vinte anos no poder sem mudar as diretrizes principais do código trabalhista da ditadura”.
A mulher em inferioridade
A antropóloga enfatiza que as condições trabalhistas das mulheres chilenas são duríssimas, apesar de o governo ter anunciado, meses atrás uma proposta de dobrar o período pós-natal. O projeto ainda não foi aprovado no Congresso e, segundo Claudia, contém diversos problemas: “o governo propõe estender os três meses que prevê a lei atual. Mas nos três meses adicionais, a mulher receberia quase um terço menos do que nos meses anteriores.
Além disso, para que ela possa ter acesso a esse benefício, deve estar em dia com uma série de complexos requisitos previdenciários, como estar inscrita num fundo de pensão privado dois anos antes da gravidez”. No Chile, o sistema previdenciário é todo ele manejado por empresas privadas, as chamadas AFPs (administradoras de fundos de pensão).
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A antropóloga Claudia Pascual explica a gravidade da situação dos trabalhadores chilenos
Outro problema da lei trabalhista que afeta diretamente as mulheres é que, no caso de problemas de saúde de algum filho, somente a mãe pode pedir licença para cuidar da criança. “Se um filho apresenta seguidos casos de problemas de saúde que requerem o acompanhamento dos pais, a mãe terá que se sacrificar em todas as eventuais recaídas na saúde dessa criança. Isso leva a muitos empregadores a demitir mulheres, e outros a não contratar força de trabalho feminina para não ter esse problema,. Também leva algumas mulheres a renunciar ao seu trabalho para não sofrer a humilhação da demissão”, analisa Claudia Pascual.
Foi o caso da executiva de vendas Andrea Gutiérrez. Após um ano tranquilo de trabalho numa empresa de planos de saúde, deu à luz seu primeiro filho, que trouxe alegria à família e problemas à vida profissional. Andrea teve que estender seu pós-natal com todas as licenças que pode tirar, devido a um problema gástrico que o seu filho teve durante o seu primeiro ano. “A gerente me exigia metas de rendimento altíssimas, para compensar os meses em que não trabalhei devido à doença do meu filho. Quando eu não alcançava o que era pedido, ela me recriminava em público, e algumas vezes me fez chorar”.
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Andrea Gutierrez relata a discriminação sofrida pela mulher no mercado de trabalho chileno
A executiva suportou a pressão da sua chefe durante sete meses, apoiada no foro maternal, que impede a demissão de uma mulher que teve filho durante os dois anos após o nascimento do bebê. Com a iminente perda do respaldo legal, Andrea pediu demissão. Teve sorte ao encontrar outro emprego semanas depois, também de executiva, em um banco.
“Sou consciente de que o meu caso não é a regra. Para uma mulher que recém abandonou um emprego, conseguir outro trabalho é dificílimo, Sobretudo porque a outra empresa não está disposta a herdar o foro maternal, entre outros benefícios trabalhistas, Esse detalhe do curriculum acaba sendo uma barreira”, comenta Andréa.
Segundo ela, uma de suas amigas que ainda trabalha na empresa de planos de saúde a qual ela renunciou passou recentemente pelo mesmo problema, “mas ela está disposta a aguentar essa situação até o fim do foro maternal”, concluiu.
Mais uma vez, a Educação
As professoras estão entre as profissionais que mais sofrem com a discriminação contra as mulheres. Segundo Paulina Cartagena, dirigente do grêmio dos professores e que dá aulas em uma escola da rede de ensino fundamental na cidade de Buin, a região metropolitana de Santiago, “nem precisa estar grávida. Somente o fato de a mulher ser jovem, em idade de dar à luz, já joga contra ela. É muito mais fácil para um professor jovem conseguir seu primeiro trabalho que para uma professora”, afirma.
Mas a discriminação contra as mulheres não é o único problema enfrentado pelos professores. Paulina conta que desde os governos da Concertação, o Grêmio dos Professores enfrenta o SED (Sistema de Avaliação Docente) do Ministério da Educação. Ele explica que os professores não são contra a avaliação governamental, mas sim contra a forma como ela é feita. O exame do SED se baseia em uma prova escrita e uma aulas filmadas.
Segundo Paulina, ela não considera as condições de trabalho dos professores, a necessidade de dar aulas em várias escolas diferentes para poder se sustentar, tampouco a tarefa de correção de provas dos alunos. Tudo isso também dificulta a capacitação do professor, que muitas vezes querem se atualizar. mas não têm tempo.
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'Provão' chileno é superficial, denuncia a professora Paulina Cartagena
Paulina diz que são pouquíssimos os professores que já perderam seu emprego devido às más avaliações. Porém, acusa o governo de demitir abusivamente alguns dos professores avaliados. Outra medida de pressão, especificamente contra os professores mais jovens, é a prova Inicia, criada pelo atual governo, e que só é aplicada a professores que ingressaram no magistério a partir de 2010. “A prova determina qual será a sua remuneração durante o ano. Hoje, um professor novato com 30 horas semanais de aula recebe em média 300 mil pesos (pouco mais de mil reais), mas se ele tem um mau resultado nesse exame pode terminar ganhando bem menos que isso”, esclarece a dirigente.
Por todos esses conflitos trabalhistas, as convulsionadas avenidas chilenas vão ganhar dois dias a mais de fervor por mudanças.
Dessa vez não só ligadas ao âmbito estudantil, embora um dos seis pontos enumerados pelo documento oficial da CUT chilena, que resume as petições dos diferentes sindicatos e confederações, se refira a apoiar às demandas da Confech (Confederação dos Estudantes do Chile). Também estão incluídos: mudanças do código trabalhista, mudanças no sistema previdenciário, reforma tributária, fortalecimento e melhor acesso à saúde pública e uma nova constituição política.
Repressão
As jornadas prometem ser de confronto, como nas das mais turbulentas manifestações estudantis. A maioria das marchas organizadas por diferentes centrais sindicais, que prometem partir das cidades importantes do país, não conta com autorização do Ministério do Interior. Mas seus líderes anunciaram que estão mantidas mesmo assim.
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Manifestantes fizeramum panelaço na noite de terça-feira em frente ao Palácio La Moneda, na véspera da greve geral
Diante desse impasse, o ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, já adiantou que não titubeará em utilizar, caso julgue necessário, a Lei de Segurança Nacional, no que foi apoiado por deputados e senadores governistas. Esse instrumento, instalado durante a ditadura de Pinochet e mantido até hoje, cria um estado de exceção, o que permite o uso das Forças Armadas nas ruas, a prisão indiscriminada de manifestantes e a aplicação a esses de outro instrumento da ditadura, a Lei Antiterrorista, que prevê o uso de provas ocultas e a condenação, através das mesmas provas, sem que os advogados de defesa tenham acesso às mesmas, entre outras arbitrariedades.
Claudia Pascual lamentou o fato de se cogitar o acionar das leis mais repressivas da última ditadura chilena. Mas ainda assim se declara uma otimista com relação às possibilidades de o evento ter sucesso e fortalecer o anseio da sociedade por um plebiscito. Entretanto, também faz uma ressalva sobre sua validade: “um plebiscito hoje seria um sonho. Eu prefiro sonhar, mas sei que para que ele se torne real seria preciso uma reforma constitucional que faça com que os resultados desse possível plebiscito sejam realmente efetivos”, completou a antropóloga.
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