Os primeiros acordes musicais surgem ritmados pelo berimbau, o canto lancinante que segue não deixa dúvidas: trata-se de uma roda de capoeira, apesar de estar em um bairro da Cidade do México. A atração mobiliza muitos dos que passam em frente a um enorme edifício chamado Circo Voador. O sociólogo e diretor do lugar, Hector Castillo Berthier, não esconde a satisfação: “Parece Brasil, não é?”.
Mas a falta de firmeza nos passos dos capoeiristas não nos deixa esquecer que estamos longe da Bahia. A alegria nos rostos comprova que Berthier — que trabalha há mais de 20 anos com a socialização de adolescentes — obteve sucesso. “Existem hoje no México cerca de 25 milhões de jovens de 12 a 24 anos. Pelo menos a metade deles vive na pobreza ou na pobreza extrema, e não há nenhuma política social definida para eles”.
Mexicano de nascimento, “chilango 100%”, e professor da Unam (Universidade Nacional Autônoma de México) há trinta anos, Berthier não é um acadêmico convencional. Apesar da paixão pelos livros, o sociólogo vai além dos trabalhos teóricos. Sua especialidade é a “pesquisa-ação”, que lhe faz ir a campo e participar ativamente com o grupo estudado.
Lamia Oualalou/Opera Mundi
Experiência
Em 1977, quando Berthier era apenas um estudante, ele ficou intrigado com o catador de lixo de sua universidade e o destino do material recolhido. Resolveu investigar e descobriu que o homem vendia sua mercadoria para uma loja de materiais industriais e que havia outras 200 como aquela. Resolveu, então, dedicar sua tese ao assunto.
No início foi difícil. Os professores ficaram ressabiados e os catadores também não se entusiasmaram. Cada vez que Berthier aparecia com o gravador, viravam as costas. O estudante resolveu, então, ser ele mesmo um catador de lixo. Alistou-se em um concurso de varredores de rua e foi selecionado.
Aos poucos, o jovem ganhou a confiança do líder, dom José, que aceitou admití-lo na corporação. Com essa experiência, Berthier conheceu toda a comunidade. “Viraram meus amigos e passaram a me chamar de ‘Peru’, pelo meu jeito de dançar”. A dificuldade para realizar o seu trabalho, no entanto, era grande, pois Berthier não podia ter um gravador nem mesmo tomar notas durante o dia.
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Após um ano no lixão, Berthier disse a don José que mudaria de estado. A verdade é que ele retornava à casa de sua mãe. Ou pelo menos tentava: sem reconhecê-lo, a mulher não o deixou entrar. Quando notou que se tratava do filho, esguichou-o ainda no jardim. Fora a sujeira, havia infecção nos olhos e feridas na cabeça. “Faz parte, trabalhar no lixo implica um monte de doenças”, explica Berthier.
Essa experiência lhe rendeu dois livros, “A sociedade do lixo” e “Antropologia da miséria”, com estatísticas, números, assim como histórias de vida e descrições do modo de organização da corporação e as hierarquias. Berthier ficou tão convencido com a eficácia da metodologia que decidiu repeti-la. Foi camelô por vários meses e redigiu o mundo do trabalho informal.
“Tribos Urbanas”
As duas experiências fizeram do professor o candidato ideal para trabalhar, em 1987, em um projeto do governo da cidade do México com bandas juvenis. “Convocaram-me na universidade para saber se eu não queria formar uma banda. Como gostava de rock, topei!”, conta entusiasmado.
Em um ano de trabalho, o sociólogo mapeou a maioria dos grupos denominados “tribos urbanas”: 1.500 só no distrito federal e 2.300 incluindo a zona metropolitana. Na época, o poder público parecia surpreendido. “As primeiras tribos urbanas surgiram na década 40. É o caso dos ‘Pachucos’ e dos ‘Tarzanes’, por exemplo. Eles tinham um jeito especifico de se vestir e de falar, muitas vezes com referências do cinema americano”, explica Berthier.
Na década de 80, três dos grupos — punketos, darketos e skatos — passaram a ser perseguidos pelo governo, pois os considerava criminosos. Foi uma motivação a mais para o sociólogo ingressar. “Queria acabar com a violência policial e demonstrar que a melhor maneira de lidar com esses jovens era torelá-los. Pareciam delinquentes mas, na realidade, muitos só procuravam uma identidade cultural. Acho que vários políticos ou juízes da Corte Suprema podem ser mais perigosos para a sociedade”, avalia Berthier.
Conquistas
A dificuldade era que muitos dos grupos queriam ter o domínio do território, o que provocava conflitos entre gangues, ou com a polícia. Para dialogar com todos, Berthier convenceu o governo a lhe ceder um horário em uma estação de rádio pública, a Estéreo Jovem 105. O programa, chamado “Solo para bandas”, era transmitido sábado entre 22h e meia-noite. “É o horário considerado como o mais perigoso. A ideia era evitar mortes com o rock&roll”, relata.
O “Solo para bandas” era o único programa do país que não transmitia o Hino Nacional à meia-noite. “Batalhei muito para obter essa autorização. Era uma transgressão, mas foi importante para ganhar a confiança dos adolescentes.” Durante três anos, o sociólogo percorreu a cidade em uma Kombi, convidando diversas bandas a se expressar, e transmitia o som em seu programa. “A ideia era substituir os conflitos locais por shows. Pouco a pouco, conseguimos evitar a intervenção da polícia. Isso não me impediu de ser detido várias vezes com os outros, mas deu certo”, conta Berthier.
Durante as peregrinações pelos bairros, os componentes do grupo ganharam vários apelidos, como Gato, Pulga, Cachorro, Touro, Pato, entre outros. “Quando a gente procurou um nome, percebemos que éramos um grupo de animais. Éramos o Circo Voador!”. Somente uma década mais tarde Berthier descobriu que existia, no Rio de Janeiro, uma instituição com o mesmo nome.
Após sete anos de programa, o Circo Voador conseguiu ter local próprio para exercer suas atividades. Em 1995, o grupo revitalizou o cinema Francisco Villa, abandonado há mais de dez anos. O governo da cidade cedeu o lugar, mas ainda assim sem recursos para reabilitá-lo. Os jovens entāo, com ajuda de seus parentes, trabalharam durante dois anos para permitir a abertura, em 1997, do famoso Circo Voador.
O objetivo do centro é desenvolver a capacidade dos jovens e explorar seus potenciais através de diversas oficinas culturais como grafite, dança, música, pintura, teatro entre outras. “Eu me sinto no meu lugar aqui, antes era como excluída, vivemos numa sociedade que julga tudo de maneira superficial. Aqui, ganhei confiança”, testemunha Abigail Vargas, de 25 anos. Ela faz parte dos 1.000 a 1.500 jovens que transitam anualmente pelo centro.
Lamia Oualalou/Opera Mundi
Carthier e a jovem Abigail Vargas
O Circo Voador possui uma sala de ensaios e um estúdio de gravação. “Isso nos permite salvar a memória da cultura juvenil alternativa: já gravamos mais de 500 discos de artistas sem recursos”, comemora.
O único requisito para fazer parte da aventura é ser jovem, de baixa renda e ter vontade de aprender. A ideia é organizar tudo localmente. Quando um show é idealizado, por exemplo, o Circo Voador não contrata empresas externas. A instituição capacita os jovens para que estes possam se encarregar da organização geral.
Ha também outro aspecto a ressaltar, “Com a proposta de atividades temáticas, o Circo acaba progressivamente com as diferenças geográficas: não há uma oficina determinada para um grupo especifico. Cada jovem escolhe o curso e as tribos se misturam o que contribui com a dimuniçāo da violência”, afirma Berthier.
A força do Circo Voador é a independência financeira. Aceita doações, mas consegue se auto-sustentar através de acordos com empresas ou instituições publicas, sobretudo ligadas ao cinema, teatro, luta livre e shows internacionais que atraem os jovens de classe media alta.
“Esta minoria que pode viajar, tem boas universidades e espaços para se divertir, traz com seu dinheiro a possibilidade de propor atividades aos que mais necessitam. É também uma maneira de reconstruir o tecido social entre os “integrados” e os “marginais””, explica o diretor do centro. Entre os grandes nomes, Hector Berthier destaca a intervenção do grupo U2, e de seu vocalista, Bono.
Para o coordenador do centro, Luis Camelo, de 34 anos, as mudanças são rapidamente visíveis depois da entrada dos jovens. Ele mostra os trabalhos de grafite, uma das fontes de orgulho do centro, que virou um projeto independente “A gente ajuda dando outras opções. Não é fácil ser jovem com pouco recurso no México”, lamenta.
Atraindo jovens de todas as categorias sociais, o Circo Voador virou também um dos pontos centrais das campanhas de prevenção contra as doenças sexualmente transmissíveis. Enquanto o público compra ingressos para os shows, um grupo de jovens, organizado por uma ONG, distribui camisinhas e folhetos informativos.
Para a antropóloga Ema Lilia Navarrete, do Colegio Mexiquense, a inicitiava do Circo Voador é muito bem vinda em um país onde os jovens têm “cada vez menos oportunidades de trabalho, de educação e de lazer”. Segundo ela, o trabalho de Berthier “oferece aos jovens espaços para se expressarem e se recriarem, no melhor sentido da palavra. Isso é fundamental, já que no México, muitas das ações adotadas em relação aos jovens são vinculadas somente ao esporte”.
O projeto já recebeu vários prêmios. Em 2004, foi escolhido como uma das doze melhores práticas sociais do mundo pela ONU (Organização das Nações Unidas). Também recebeu o segundo premio Visionaris dado pela Ashoka, uma organização mundial de empreendedores sociais com sede em Washington.
Expansão
Confesso “admirador do povo brasileiro”, Berthier almeja difundir as experiências bem sucedidas contra a violência juvenil para toda América Latina. “A troca de experiências entre os países pode ajudar a montar um verdadeiro modelo de intervenção social. Temos muitas políticas públicas na região, mas muitas vezes desarticuladas”, contou ele durante uma viajem ao Rio de Janeiro.
Nesta viagem, Berthier visitou diversas favelas percorreu comunidades onde foram introduzidas as Unidades de Policia Pacificadora, a nova política de segurança no Rio de Janeiro, e conheceu o trabalho de ONGs.
O trabalho entre as universidades e as redes de ONGs, que deverá posteriormente abranger Colômbia, Argentina, El Salvador e Guatemala, começa com uma comparação entre México e Brasil. “Aqui, a violência parece amenizada, porque há mais alegria aparente, enquanto no México, tudo é muito dramático”, observa Berthier. “A realidade porém é a mesma, basta olhar a demografia para entender que temos urgentemente que tomar conta de nossos jovens excluídos. Para América Latina, isso é uma bomba-relógio”.
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