Reprodução/Colectivo Hombre Nuevo
O campeonato foi disputado por 18 equipes masculinas e 4 femininas
Argentinos, brasileiros, chilenos, uruguaios e pessoas de variados países calçaram as chuteiras no mês de fevereiro em busca da conquista do título de campeão da América. A cena facilmente se ligaria ao início da Copa Libertadores. Mas, paralelamente à grande exposição e aos milionários patrocinadores que envolvem a principal competição de clubes do futebol profissional latino-americano, dezenas de equipes amadoras do continente se reuniram no balneário argentino de Gualeguaychú, província de Entre Ríos, para a segunda edição da Copa América Alternativa.
A proposta do evento é criar um ambiente que possibilite o intercâmbio esportivo, cultural e político a partir do futebol entre times de diferentes localidades. Por mais que as equipes tenham disputado a taça com seriedade, houve um esforço coletivo para colocar os ideais de solidariedade à frente da competição dos campos.
Imagens de Che Guevara e símbolos anarquistas e comunistas se juntavam a bandeiras de diversas lutas sociais estendidas entre as barracas dos participantes. As cerca de 300 pessoas que acamparam, entre os dias 14 e 17 de fevereiro, no Parque Unzué alternaram os jogos com atividades culturais, musicais e tarefas coletivas de manutenção do local, como a limpeza dos banheiros e vestiários.
De movimentos sociais a grupos de amigos, o campeonato reuniu 18 equipes masculinas e 4 femininas, além de coletivos artísticos e outras pessoas que foram ao torneio apenas para participar da confraternização. Alguns times eram compostos por colegas de universidade, escola ou militância que jogavam futebol semanalmente, outros eram times de bairro que disputam regularmente torneios amadores de futebol, enquanto uma menor parte foi formada apenas para esta segunda edição da copa.
Da Europa a Jesus Maria
A ideia de organizar um campeonato de futebol nesses moldes surgiu de um contato, em 2011, entre o Autônomos Futebol Clube, de São Paulo, e os argentinos do Club Social Atlético y Deportivo Ernesto Che Guevara. Ambos os clubes nasceram em 2006, com propósitos e práticas iniciais diferentes, encontrando pontos de convergência na crítica ao futebol mercantilizado e na ideia de aproveitar o potencial do esporte mais popular do planeta como meio conscientização e transformação social.
Inspirados por eventos semelhantes já tradicionais e frequentes na Europa (como a Copa do Mundo Alternativa e o Mondiali Antirazzisti), as equipes decidiram organizar a primeira edição do torneio em 2012 em Jesus Maria, uma cidade da província de Córdoba marcada pelos cultivos sojeiros de grandes proprietários de terras. Na ocasião, o Club Che Guevara, que promove a educação socialista por meio do futebol, recebeu dezenas de equipes e pessoas vindas de países da América Latina e Europa.
Longe da FIFA
A Copa América Alternativa possui diferentes significados para os grupos participantes: enquanto alguns apontam o futebol como um instrumento de luta em busca de “um homem novo”, outros enfatizam a experiência libertária e igualitária que emerge desses encontros. Todos desejam, no entanto, recuperar o espírito democrático do futebol longe das grandes empresas e associações que o regem.
“Consideramos que nossos garotos não são objetos e não possuem valor no mercado do futebol”, diz Monica, explicitando a ideia do clube em permanecer fora do futebol mercantilizado, dando a esses jovens a autonomia de decidir sua permanência ou transferência para outro clube sem o constrangimento de vínculos contratuais.
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Para poder chegar à edição de 2013 do torneio, o clube de Jesus Maria utilizou os laços comunitários criados em torno da equipe. Promoveu a venda das tradicionais empanadas e a realização de um bingo a fim de arrecadar a quantia necessária para percorrer os mais de 700 km que separam sua pequena cidade de Gualeguaychú.
À parte toda a experiência proporcionada pelo torneio, que colocou os garotos de Jesus Maria em contato com outras equipes do continente, dentro de campo o Che Guevara superou o cansaço das longas horas na estrada e realizou uma bela campanha. Eliminou nas quartas-de-final o Autônomos FC, que além de ter sido o campeão da edição passada detinha também, até então, a melhor campanha. Adiante, parou nas semifinais, quando perdeu para os anfitriões da vez, o La Cuchimarra.
Reprodução/Colectivo Hombre Nuevo
Além do campeonato de futebol, evento também contou com diversas atrações, como festas e apresentações musicais
O Club Social Deportivo y Cultural La Cuchimarra segue uma proposta que se assemelha ao Che Guevara. Formado em 2007, em um bairro popular chamado La Cuchilla, além participar de torneios amadores regionais, a equipe mantém um projeto social com jovens por meio do futebol. Junto com a CUBA-Mtr (Coordenação de Unidade Barrial, Movimento Teresa Rodríguez ), movimento social argentino que mantém uma seção no bairro, e o coletivo político-cultural Hombre Nuevo, o La Cuchimarra organizou a segunda edição do torneio.
Carnaval e papeleiras
Se fizermos um rápido esforço de memória, lembraremos que a pacata ‘Gualeguay’ teve seu nome mundialmente alçado quando a multinacional finlandesa Botnia se apresentou interessada em “investir e gerar empregos” no vizinho Uruguai e seu rio homônimo, que também corre pelo território argentino, tendo no Rio Gualeguaychú um de seus afluentes.
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Após enorme contenda diplomática entre os hermanos platinos, com direito a três anos de fechamento da ponte que liga os países, o projeto de produção de pasta de celulose nas margens do Rio Uruguai prosperou, o que não significa que o lado ora derrotado tenha desistido da reversão do processo.
Por onde se andava na cidade, liam-se pichações e cartazes “Fuera, Botnia”, “la lucha no terminó”, dentre outras mensagens desafiantes. “A papeleira já opera há cerca de cinco anos e nossa luta contra ela é necessária, pois dependemos muito de nossa natureza, até pela questão turística da cidade, e se ela continuar a operar será questão de poucos anos para os nossos rios morrerem. O Rio Uruguai tem baixa profundidade e é muito pouco caudaloso, de modo que as espécies que o habitam não terão como escapar da poluição produzida”, conta Ariel Olivera, representante do La Cuchimarra.
Além deste caso mais conhecido, é possível dizer que a cidade é um ignoto pedaço de Brasil em solo vizinho, sendo famosa entre os hermanos por seu animado carnaval, com desfiles e “sambódromo” nos moldes que conhecemos. E um adendo: os moradores locais gabam-se de possuir o “maior carnaval do mundo”, uma vez que as festividades percorrem todos os finais de semana que separam o carnaval da quaresma, isto é, são cerca de 40 dias permeados pela festa.
Com isso, a cidade de cerca de 80 mil habitantes tem sua população até quintuplicada, sendo também brindada por todo o repertório dos sucessos populares brasileiros, tocados em diversos bares e locais de festas pelos artistas locais.
As veias abertas da América Latina
Se a primeira edição em Jesus Maria foi batizada pelo Club Che Guevara como Copa América Alternativa “Hombre Nuevo”, em alusão à necessidade que o revolucionário argentino enfatizava de transformação do indivíduo, a edição de 2013 tratou de colocar luz em uma parte silenciada e esquecida da história latino-americana. O torneio ganhou o nome de Copa América Alternativa “Chanás Timbúes”, homenageando um grupo indígena que viveu perto do Rio Uruguai e que foi completamente dizimado durante o processo de colonização.
Na grande final do torneio, a equipe local enfrentou Los Imer, da cidade de Resistência, na província de Chaco, próxima à fronteira argentina com o Paraguai. A equipe de Resistência entra na categoria dos times formados de última hora, juntando militantes de movimentos sociais e comunitários que viajaram até Gualeguaychú para participar do torneio.
A escolha do nome que batizou a equipe remete a mais um triste capítulo dos 500 anos de massacres aos povos indígenas, de todo o continente e também do Chaco, onde mais de 70% da população é de ascendência aborígene. No início de 2013, Imer Flores, um garoto de apenas 12 anos, membro da comunidade Qompi Naqona’a, da etnia Qom, foi brutalmente assassinado. Seu corpo foi encontrado às margens do rio Bermejito, área em que o crescimento da atividade turística ao longo dos últimos anos convive com a situação de profunda miséria em que se encontra hoje o povo originário Qom, a exemplo do que tem ocorrido com indígenas de diversas regiões brasileiras exploradas pelo agronegócio e suas monoculturas.
Os jogadores de Resistência decidiram homenagear Imer Flores e manter viva, de alguma forma, uma longa história, marcada por episódios como o Massacre de Napalpi, em 1924, quando mais de 200 indígenas foram executados à bala pela polícia e por fazendeiros.
Maior taça não vai para o campeão
Dentro de campo, o maior entrosamento falou mais alto e o La Cuchimarra derrotou a equipe de Resistência na final pelo placar de 2 a 1. Na cerimônia de encerramento, ao lado da taça que coroava o campeão, foi apresentado outro troféu – maior e com mais cores. Feito pelo artista independente Martín Naef de Gchú, simbolizava o espírito daquela reunião de pessoas, coletivos e ideias. Formado por várias pequenas esculturas de homens com os braços erguidos, o troféu se transforma em um grande balão colorido ao ter reunidas todas as suas colunas. Cada equipe participante, independentemente do desempenho nos gramados, levou uma dessas partes para casa.
Reprodução/Colectivo Hombre Nuevo
Trófeu simboliza a união dos cerca de 300 presentes no evento
Apesar do clima de satisfação pela realização de tal evento, talvez sem nenhum similar anterior pelo continente, fica a impressão de que o curto tempo de encontro pode e deve ser melhor aproveitado entre os grupos presentes, de modo a afirmar a copa como um evento mais que esportivo.
“Acredito que tais encontros devem ser mais fluídos e promover maior contato com as organizações, compartilhando mais entre todos, para além do esportivo. Devemos avaliar bem o evento, por mais breve que tenha sido o tempo de convívio entre os que vieram. Mas temos de ter um momento para debater realidades de cada organização e transmitir as experiências de cada grupo e de seu contexto social”, afirmou Mônica, em um rápido balanço da segunda edição.
Em 2014, enquanto o mundo futebolístico direcionará os olhos para o Brasil, na sombra de toda essa imensa movimentação, em alguma cidade do continente, essas equipes terão o desafio de remontar o multicolorido balão dos sonhos e continuar a escrever novas páginas na, até aqui, breve história do futebol alternativo latino-americano. Quem sabe com sua terceira edição em solo brasileiro.