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Há quatro meses que já rola quinzenalmente. São as primeiras festas apenas para lésbicas que acontecem no Chile e, até bem pouco tempo atrás, eram as únicas. Atendem pelo nome de “Realidade Paralela” e quem fala aqui é Flavia Gonçalves, sua criadora.
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Ela tem a sorte — ou azar — de ser brasileira e de se chamar Flavia. Na Bahia, há a loira do axé Flaviana. Flavia Gonçalves, no entanto, não é loira, cresceu no subúrbio do Rio de Janeiro, morou num orfanato e foi adotada. Não gosta de axé e se dedica a outras atividades. Faz produção de moda e festas como a “Realidade Paralela”, a primeira balada exclusiva para lésbicas, que nasceu em 2011. No Facebook da “Realidade Paralela”, todas as fotos são de meninas lindas. Flavia diz:
— Eu posto fotos de ladies, que são as novas lésbicas.
— Como é isso?
— Uma lésbica mais feminina, que curte ser bonita e tem bom gosto. Essa é a nova lésbica.
— Nada a ver com as bofes?
— Não, não é a bofe.
— E essa lésbica pertence às novas gerações?
— Sim. Sempre que abro o Facebook, há umas quatro ou cinco lésbicas com cabelão. Cara, de onde elas vieram?
— E por que você se interessa em postar esse tipo de garota e não as outras?
— Porque eu sou essa garota. Eu sou essa garota que não tem aonde ir aqui se eu quero pegar uma mulher. Entendeu? Sempre é feio, sempre é sujo, com meninas brutalizadas que parecem babacas. Então aonde uma garota como eu poderia ir? Inclusive comecei a produzir a festa quase por caridade, porque queria chegar junto.
— Rsrsrsrs.
— Não foi com a intenção de ganhar grana. Foi quase como um evento. Um lugar aonde ir. Onde podemos encontrar alguém se somos lésbicas, se somos femininas e gostamos de outras mulheres femininas. É isso.
— E essa nova lésbica rola só no Chile ou em todos os lugares?
— Rola em todos os lugares. Acho que há mais meninas saindo do armário, então a gente vê muito mais meninas assim. É uma nova mentalidade, de quem está abrindo um pouco mais a cabeça. Você pode ser gay e não necessariamente tem de ser um homem ou parecer um homem ou odiar os homens, que é um pouco o que acontece com as lésbicas. Eu acho que há uma confusão de identidade nessa história. Não se trata apenas de eu gostar do mesmo sexo. Há uma confusão de querer ser homem. Eu não tenho problema de identidade. Porra, o que eu estou te falando é pesado. Tá ficando bem complicado pra mim esse assunto até no Facebook. De repente estou criando inimigos com um tema tão específico, por eu estar postando fotos dessas garotas. Já me disseram que sou preconceituosa.
— Quem diz isso?
— Muitas ladies. O assunto sempre vem à tona. Outro dia eu anunciei no Face que numa festa não poderiam entrar homens por uma questão de conforto. E aí uma louca veio com a história de que por conta de uma lei, sei lá qual era, de que não existia no Chile o direito de só admitir um sexo, bom, tomara que seja só nessa festa, e que com garotas não dá, e que era discriminação, e sei lá mais o quê. Mas isso é um produto. E está focado para um público específico. Eu estou selecionando, não discriminando. Não estou na porta, dizendo “não, você não entra”.
— Bom, se uma bofinha decide ir, ela pode ser barrada?
— Claro que não. Elas também estão lá. Mas se eu estou postando para um tipo de grupo, não vou pôr música do tipo Reggaeton.
— E por que nessa festa homens não entram?
— Na primeira vez, eu deixei que homens entrassem porque as lésbicas são muito de grupo ou muito inseguras e têm uma dinâmica completamente diferente da dos homens…
— Como assim?
— As ladies gostam mais do esquema de barzinho. Gostam de sentar-se, ficar em mesinhas e bater papo.
— As lésbicas metem medo nos homens?
— Quem tem medo são os gays. Alguns amigos gays foram à primeira festa que eu fiz, e eles ficaram com medo. Porque isso acontece com as mulheres que acabam desenvolvendo seu lado masculino. Sem querer, elas ficam com a pior parte do outro sexo. Essa história agressiva de defender a lady, esse papo de que ela é minha lady. Elas ficam com essa parte que eu acho péssima, do babaca, então elas ficam babacas.
— Como são as lésbicas brasileiras em relação às chilenas?
— As de atitudes brasileiras são muito mais (eu, como uma que cola e chega junto, poderia dizer) diretas. Vão mais à caça. É assim que ela se identifica, vai, fala alguma coisa, oferece uma bebida. A chilena é muito mais passiva nesse sentido.
— Quando você saiu do armário?
— Quando eu nasci. Nasci e saí do armário ao mesmo tempo. Nunca tive confusão com isso. Minha família é superconservadora, mas isso nunca foi um problema para mim. Foi tudo tão natural. Eu sempre soube, desde criança, que gostava das meninas do colégio. Inclusive tive uns namorados, também de adolescente, já sabendo que gostava das ladies, mas isso não era um problema complexo: “Ah, não é que eu não goste disso”. Era, na verdade: “Ah, não, deixa eu experimentar”. Viver os processos que eu tinha que viver. Não era como: “Sou gay e tenho de ir a lugares gays, odeio homens, não gosto de pinto”. Eu não tive uma família liberal coisa nenhuma. Minha mãe me perguntava: “Quando você vai se casar e quando você vai trazer um namorado?” Até que um dia eu lhe disse: “Não vai ter namorado”. E ela: “Como assim? Quem vai te sustentar?”. “Ninguém. Eu vou me sustentar”. E eu até posso ser o homem da relação.
— Existe isso?
— Um pouco. Passivo, ativo…
— Mas na questão sexual? Ou em tudo?
— Em tudo. É que sempre tem que haver uma equação. Tem que haver um complemento, porque os dois iguais se bicam.
— E o que você é?
— Ativa. Definitivamente.
Tradução por Mari-Jô Zilveti
* Texto publicado originalmente na revista chilena The Clinic
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