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Arroz dourado (à esq.): total ausência de ceticismo jornalístico no noticiário científico na mídia mundial
O bom jornalismo examina suas fontes criticamente, não julga seu objeto superficialmente, coloca seus tópicos em contexto histórico e valoriza, acima de tudo, o interesse público. A maior parte das pessoas acredita que esse tipo de jornalismo é essencial em qualquer sistema de governo justo e aberto. Estas afirmações são particularmente aplicáveis à imprensa científica. Mas, embora a mídia em geral tenha recebido muitas críticas por trivializar as notícias e cometer vários outros erros, a imprensa científica, de algum modo, tem escapado do foco. Isto é uma pena, já que nenhum país no mundo tem uma imprensa científica saudável.
A batata-doce que desapareceu
Em 2001, um enviado especial dos Estados Unidos, Dr. Andrew Young, foi até o Quênia anunciar uma batata-doce GM resistente a vírus, desenvolvida pelo Dr. Florence Wambugu juntamente com a Monsanto. De acordo com a revista Forbes, sua produção era “impressionante”, o dobro da proporcionada pelas batatas-doces normais. Dr. Wambugu, que era o líder queniano do projeto na época, disse ao Toronto Globe and Mail que sua “batata-doce modificada poderia, por exemplo, aumentar a produção de quatro toneladas por hectare para 10 toneladas por hectare”.
Os elogios surgiram a despeito da ausência de qualquer confirmação científica das declarações. Mais tarde, em 2004, os jornais quenianos e o site GMWatch reconheceram que a resistência a vírus da Monsanto era ineficaz em testes de campo e um relatório oficial chegou a declarar que “colheitas não-transgênicas, usadas como controle, renderam muito mais por tubérculo do que os transgênicos”. Os cientistas quenianos envolvidos no teste de campo disseram:“todas as linhas testadas estavam sujeitas a ataques virais.” E “O material transgênico não conseguiu resistir aos vírus no campo”.
Na verdade, nenhuma variedade de batata-doce GM resistente a vírus ou publicação científica que a apresente veio a existir no Quênia ou em qualquer outro lugar. Presumivelmente, a notícia dada pelos jornais quenianos, de que o rendimento estava muito aquém da qualificação que lhe fora atribuída, “impressionante”, era a correta.
Arroz dourado
O arroz dourado contou com tanta publicidade que nem precisa ser apresentado. Em uma pesquisa no Google, o termo de busca (em inglês) “arroz dourado” + vitamina A gera 131 mil resultados. O arroz dourado conta com genes que produzem em seu endosperma modestas quantidades de betacaroteno, uma das formas de se obter vitamina A. O arroz dourado se tornou o estandarte para os defensores do uso humanitário e benéfico dos OGMs e foi capa da revista “Time”, além de ter inspirado 11 artigos só no “New York Times”.
A realidade científica do arroz dourado, no entanto, dificilmente poderia ser mais distinta daquela apresentada pela pesada campanha de relações públicas ao seu redor. Antes de 2005, toda a publicidade se referia ao arroz dourado 1 (GR1) (Ye et al. 2000). Em meio a uma quase total ausência de ceticismo jornalístico, apenas o Greenpeace e a física e ativista ambiental indiana Vandana Shiva salientaram o fato de que as reivindicações feitas em favor do produto eram falsas: o GR1 era incapaz de solucionar o problema da carência de vitamina A porque os níveis de betacaroteno apresentados eram muito baixos. Isto, na época, ainda era discutível, mas trata-se de um claro reconhecimento do fracasso do GR1 o fato de que a Syngenta tenha mais tarde desenvolvido um novo tipo de arroz (GR2) (Paine et al 2005).
A versão atual do arroz dourado (GR2) foi assunto de apenas três publicações científicas (Paine et al 2005; Tang et al 2009; Tang et al 2012). Nada se sabe sobre sua rentabilidade ou características agronômicas e, dificilmente, sabe-se qualquer coisa também sobre sua eficácia ou segurança. O GR2 não foi aprovado para uso comercial ou consumo público em nenhum país. Ele é, portanto, um produto ainda em desenvolvimento, e, na verdade, apenas recentemente o GR2 foi cruzado com a subespécie indica do arroz, que é a mais comida na Ásia. Existe, portanto, o que certamente é uma disparidade sem precedentes entre o número de artigos jornalísticos escritos sobre o arroz dourado e os seus verdadeiros méritos que, até o momento, inexistem.
Mas o ponto central, para além do fato de que os leitores do “New York Times” talvez sejam os mais desinformados do mundo, é que o arroz dourado não está sozinho, ele é apenas um exemplo dentre vários de uma pesquisa preliminar e duvidosa em OGMs sendo transformada em notícia positiva na mídia global.
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Destaque para os OMGs: exemplo de divulgação de pesquisa duvidosa transformada em notícia positiva
Ingredientes que faltam
Notícias ‘humanitárias’ sobre OGMs, frequentemente apresentadas sem deixar margem a dúvidas ou advertências, são encontradas literalmente aos milhares na grande mídia. Para compreender de maneira adequada a dimensão plena do problema jornalístico, no entanto, é necessário analisar brevemente as deficiências específicas, intelectuais e jornalísticas, que elas contêm.
Em primeiro lugar, estas notícias oferecem evidência robusta de que o noticiário científico sofre do mesmo problema fundamental que assola o restante do jornalismo comercial. O problema é sumarizado pelo jornalista Lord Northcliffe como: “Notícias são aquilo que não querem que você imprima. Todo o restante é publicidade”.
[Destaque para os OMGs: divulgação de pesquisa duvidosa transformada em notícia positiva]
No noticiário sobre biotecnologia, este problema é caracterizado pela falta de contexto. O jornalista científico pode, a qualquer momento durante o período de desenvolvimento daquela nova biotecnologia, colocar algumas perguntas fundamentais: “A tecnologia está pronta? Os reguladores são competentes? Por que é considerado apropriado que a indústria financie e conduza seus próprios estudos de segurança? Quais são os pontos de vista dos cientistas que não concordam?” E muitas outras. Ainda assim, apenas uma pequena parcela dos jornalistas científicos profissionais escapa do enquadramento estreito em que se costuma colocar o noticiário sobre um novo produto científico, o que deixa o leitor imaginando se há boas respostas para aquelas questões
A segunda falha é que o noticiário de falsas descobertas é simplesmente um tipo de fomento barato, cuja arte consiste basicamente em excluir informações vitais. Exceto pelo fato de que isto não é tão inócuo assim.
Por exemplo, quando a ONU publicou um grande relatório elaborado por centenas de cientistas propondo que a agricultura industrial e os OGMs sejam soluções inapropriadas para a agricultura e a pobreza, o New York Times não chegou sequer a mencionar o documento. Apenas anos mais tarde escritores convidados fizeram qualquer referência ao “artigo do relatório”.
A lacuna entre, de um lado, a cobertura global e o amplo reconhecimento que dela provém, e, do outro, a realidade em que duas destas grandes ‘descobertas’ falharam (ou nunca existiram) e o restante nunca progrediu, pode agora ser melhor compreendida. Infelizmente, como estas e outras notícias igualmente importantes mostram, esta abordagem acrítica e benevolente para com a indústria orienta quase todo o jornalismo científico hoje.
Os jornalistas científicos podem fazer melhor do que isso, no entanto. Michael Pollan (em seu artigo “Brincando de Deus no Jardim”, publicado na “New York Times Magazine” em 1988) evidenciou com habilidade as brechas na regulamentação de OGMs e, em seguida, criticou o arroz dourado, mencionando, durante o processo, o orçamento do projeto, de US$50 milhões saídos de recursos públicos.
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O jornalista científico Michael Pollan: evidências de falhas na regulamentação de OGMs
Controle da informação
A força fundamental por trás do noticiário científico ruim, portanto, não são apenas os jornalistas intelectualmente preguiçosos (embora eles ajudem). Ocorre que, para o “agrobusiness” e outras corporações poderosas, tudo está em jogo no jornalismo científico. Suas reputações, como organizações essenciais e éticas, estão constantemente em risco, e isto ocorre porque é na ciência que a hipocrisia se torna mais evidente: o financiamento de movimentos que negam o aquecimento global enquanto se defende a responsabilidade corporativa, a insistência em procedimentos idôneos enquanto se compra influência sobre o processo político, a tentativa de burlar a legislação ambiental e de segurança do trabalhador enquanto as empresas descrevem a si mesmas como pessoas jurídicas globais limpas e verdes, e assim por diante.
É por este motivo que BASF, Coca-Cola, Merck, L'Oreal, Monsanto, Syngenta, Smith & Nephew, a Associação da Indústria Nuclear e seus concorrentes hoje defendem tentativas coordenadas de gerenciar a cobertura midiática de ciência por meio do Centro de Mídia Científica do Reino Unido. E hoje, tendo decidido que o método de controle da informação é eficaz, ou talvez que a ameaça da Internet é séria demais, estão tentando adicionar algumas ramificações internacionais.
O que é novidade hoje, diferentemente do que ocorria há trinta anos, é que os setores individuais da indústria, como o da indústria de ciências da vida, são hoje suficientemente rentáveis, monopolistas e globais para poderem coordenar, em prol do benefício mútuo de seus mais poderosos membros, o fluxo de informação que passa por três domínios distintos, mas interconectados: o domínio público (TV, rádio, mídia impressa), o domínio científico (publicações revisadas por especialistas) e o domínio político (relatórios do governo e discussões burocráticas).
Nisto, contudo, a indústria da biotecnologia não é diferente de qualquer domínio da atividade econômica. Da indústria alimentícia à mineração, passando pelo mercado da guerra, poucas pessoas apoiariam essas atividades em sua presente forma se elas fossem plenamente compreendidas. Segue-se que a razão pela qual os negócios funcionam da maneira como funcionam hoje é que a imprensa falha em seu propósito fundamental. Em 1822, James Madison escreveu:“Um governo popular que não fornece informação ao povo ou o meio de adquiri-la é o prelúdio de uma farsa, de uma tragédia ou, talvez, de ambos”.
Esta afirmação certamente foi elaborada para ser tomada literalmente e, hoje, dois séculos mais tarde, quando chegamos ao estado vislumbrado por Madison, é hora de nos perguntarmos: “Será possível que resolver os grandes problemas de nosso tempo – mudanças climáticas, injustiça social e sustentabilidade ecológica – seja tão simples quanto criar uma mídia eficaz?” Ou, para colocar a questão em outras palavras, é possível fazê-lo sem uma mídia eficaz?
Tradução Henrique Mendes
Texto originalmente publicado em Independent Science News, site dedicado ao esclarecimento e correção de informações científicas divulgadas na mídia sobre saúde, alimentos e agricultura.
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